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Escher superstar

Grande antológica de M. Escher, o artista das perspetivas imaginárias, é inaugurada no Museu de Arte Popular, em Lisboa.


Estamos no Museu de Arte Popular, em Lisboa, localizado em Belém, junto ao Padrão dos Descobrimentos. Não se trata de um museu qualquer. Foi fundado em 1948, dando continuidade a uma “secção da vida popular” existente na grande Exposição do Mundo Português ocorrida oito anos antes. Com o projeto assinado por Jorge Segurado e colaborações decorativas de um leque impressionante de artistas da época, o museu mostrava uma coleção etnográfica organizada segundo núcleos correspondentes às antigas províncias portuguesas. Hoje vazio, abre esporadicamente para exposições, enquanto volta e meia se ressuscita a polémica sobre o seu possível destino.

Encerrá-lo ou não? Se o museu, por si só, materializa todo o conceito que uma época e um regime político encerravam no termo “popular”, o que é certo, por agora, é que este foi o local escolhido pela equipa de curadoria e produção da exposição Escher para mostrar o trabalho deste artista holandês que atravessou praticamente os três primeiros quartos do século XX. Paulo Ferreira da Costa, o atual diretor da instituição, conta como foi abordado pela equipa da Arthemisia, a empresa promotora da mostra, e como resolveu aceitar o convite. Afinal, Escher é seguramente um dos artistas mais populares da contemporaneidade.

Entre puzzlest-shirts, cartazes, postais, canecas, magnetes de frigorífico e qualquer outra parafernália que as lojas de recordações dos museus europeus se lembrem de vender, múltiplas são as oportunidades para divulgar esta obra centrada no desenho gráfico, ávida de efeitos surpreendentes obtidos pela manipulação da perspetiva linear.

De tão vista, poucos a conhecem a fundo. Não será o caso do curador, o italiano Federico Giudiceandrea, que é também o maior colecionador privado de obras deste autor, nem da Fundação Escher, que dos Países Baixos orquestra com mestria qualquer reprodução não autorizada que possa surgir na atualidade. “Nem sempre foi assim”, explica Giudiceandrea, acrescentando que, nos anos 1960 e 70, o movimento hippie descobriu com deleite as perspetivas fantásticas da obra escheriana, tratando de as reproduzir sobre todos os suportes de que se lembrasse sem pagar quaisquer tipo de direitos de autor. Há até o caso de uma capa de LP dos Pink Floyd que inclui uma reprodução de uma xilogravura de Escher – e neste caso nem o autor, nem sequer a própria banda foram questionados sobre a mesma.

Voltemos a este artista, de vida bem menos conhecida do que a sua obra. Mauritius Escher nasceu em 1898 em Hilversum, na Holanda, numa família desafogada. Pouco dotado para os estudos académicos, viria a ter lições de gravura com Samuel Jessurum de Mesquita, judeu de origem portuguesa, que viria a ser uma figura importantíssima no desenvolvimento da obra de Escher até à sua morte, em Auschwitz, em 1944. Escher, de facto, desenvolveu toda a sua obra com base na criação de múltiplos, ora xilogravuras, ora litografias, ora meias-tintas. Sempre se considerou um artista gráfico, apenas tocando nos pincéis para realçar a peça gravada, quando era caso disso.

Durante a juventude, realizou diversas viagens a Itália, onde se casou e de onde saiu definitivamente em 1936, horrorizado com o regime fascista que aí vingava. Nesta altura, desenhava paisagens, aperfeiçoando um traço preciso, herdeiro dos mestres do gótico e do Renascimento que o inspiravam. Sem grandes surpresas para nós, que hoje olhamos para a sua obra, Escher admirava Jheronymus Bosch mais que qualquer outro artista. Mas do seu panteão privado faziam também parte o Leonardo das invenções técnicas, por exemplo, Dürer e mesmo, noutro registo, Modigliani.

Em 1954 uma exposição sua na Holanda é visitada pelos participantes num congresso de matemática que ficam maravilhados com as invenções de Escher. Giudiceandrea conta que, sem o saber, de um modo completamente empírico, o artista ecoava as pesquisas científicas da época. Foram estes os primeiros entusiastas da obra do holandês e também os primeiros responsáveis pela sua divulgação junto dos campus universitários norte-americanos.

A exposição dá conta deste percurso biográfico, dividindo as cerca de 200 obras presentes em sete núcleos: “Período inicial”, “tesselações”, “estrutura do espaço”, “metamorfose”, “paradoxos geométricos”, “obras por encomenda” – com inúmeras peças feitas para artes gráficas, por exemplo, ou para clientes publicitários – e “Eschermania”. Se as metamorfoses e os paradoxos são bem conhecidos, talvez seja uma surpresa para todos aprender que as tesselações tiveram a sua origem numa visita ao Alhambra, em Granada. De facto, neste palácio muçulmano, como em quase toda a arte oriunda desta cultura, a representação da figura humana é completamente proibida, pelo que os artistas desenvolveram uma prática centrada no arabesco decorativo e na repetição de motivos geométricos. As tesselas, nome que era dado aos quadradinhos de pedra colorida dos mosaicos romanos, são aqui na realidade elementos de lajeados ou revestimentos murais que se encaixam perfeitamente uns nos outros, à maneira de um puzzle. E Escher vai pegar neste processo e explorá-lo à exaustão em alguns dos seus trabalhos.

“Para Escher, o mundo não tem só uma perspetiva”, afirma Giudiceandrea. Nós acrescentaríamos que todas as perspetivas que ele pode ter, para este artista, apenas se materializam na folha de papel. São perspetivas virtuais, imaginárias, fantasiosas. Têm algo que ver com o sonho, e com uma possibilidade de evasão que o homem contemporâneo nem sempre pode ter.  E, no final desta visita, que inclui divertidos dispositivos interativos que simulam obras do artista, resta-nos a interrogação sobre o lugar de Escher na história da arte. É decerto um artista original e criativo, que serviu de inspiração e modelo para muitos outros, nomeadamente dos surrealistas. Encontramos muitos ecos deste gosto pela declinação da metamorfose das coisas e dos espaços numa arte nova, por exemplo, mas também, e apenas para falar em casos mais recentes, em boa parte da street art que trabalha o espaço urbano por vezes através do hiper-realismo mais académico.

De qualquer modo, Escher, que apenas conseguiu fazer algum dinheiro no final da vida, é hoje uma estrela para muita gente, que ainda o identificam com o virtuosismo que já deixou há muito de ser um requisito da arte. Por isso, este talvez seja, afinal, um artista genuinamente popular.

A obra de Escher pode ser vista até 27 de maio de 2018.


por Luísa Soares de Oliveira, in Público | 24 de novembro de 2017
Fotografias de Ricardo Lopes
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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