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A voz de uma utopia chamada Lisboa
Beatriz Batarda e Marco Martins quiseram levar para palco os habitantes de uma nova Lisboa.
São 20 em palco. Nenhum nasceu em Lisboa, mas cada um tem a sua história de como foi parar à cidade e às ruas em redor do Martim Moniz e da Mouraria – a zona onde foram descobertos há alguns meses numa fase de pesquisa para o espetáculo que agora coloca os seus percursos pessoais em cena. Chegaram há dois meses ou há 45 anos, foram levados por arrebatamentos amorosos, pela promessa de se juntarem à família, pela possibilidade de encontrarem trabalho, por ter sido o destino que lhes saiu em sorte ao fugirem apressadamente e sem direito a escolha de um país em guerra. Nenhum relato se repete, coincidindo talvez apenas no facto de palmilharem as mesmas ruas e darem corpo a uma comunidade que tem em comum habitar Lisboa em 2017, cruzando proveniências diversas, e histórias que costumam jazer enterradas debaixo do silêncio e do anonimato.
Foi em busca destas pessoas que Beatriz Batarda e Marco Martins (partes da família Arena Ensemble) partiram depois de desafiados por Inês de Medeiros (anterior diretora do Teatro da Trindade, atual presidente de câmara em Almada) a criar uma peça comemorativa dos 150 anos da sala lisboeta gerida pelo INATEL. E são estas pessoas que encontraremos no palco do Trindade entre 17 de novembro e 10 de dezembro. São, por exemplo, António Gama, português, na cidade há 45 anos, e António de Vasconcelos, angolano, chegado pouco depois. O primeiro António foi “mecânico da força aérea, lava pratos, lava garrafas, assistente de Miss Lebowski num circo, rececionista, cabeleireiro, depilador de mulheres, barman, campeão de yo-yo e crítico de cinema”.
O segundo António é mais conhecido por Ninja, porque aparece e desaparece “com muita facilidade”, viveu na rua e dançou a troco de dinheiro, e recorda como um dos seus momentos de glória o triunfo num campeonato de breakdance na Trafaria.
Não é, no entanto, a acumulação ou encadeamento destes factos ou episódios que faz de Todo o Mundo É Um Palco um espetáculo. Se num primeiro impulso, e tendo em conta o perfil do Teatro da Trindade como a sala de vocação mais popular no eixo Baixa-Chiado, a ideia dos dois encenadores foi a de “trazer o público para dentro do teatro e colocar as suas histórias no centro do acontecimento”, a constituição de um grupo selecionado a partir das entrevistas de rua havia de sugerir a referência da peça de Shakespeare (As You Like It) citada no título – e que Batarda dirigiu em 2014, no Teatro São Luiz. Na comédia pastoril shakespeariana, a floresta para onde as personagens se recolhem aparece como miragem de liberdade, de construção de uma vida nova e de invenção de uma comunidade – algo que se poderia dizer também da relação de cada um destes indivíduos com Lisboa e, em concreto, com a área onde se situa o espaço do INATEL em que decorrem os ensaios (Colégio dos Meninos Órfãos, na fronteira entre o Martim Moniz e a Mouraria).
Essa ideia de uma nova Lisboa, uma cidade composta por gente que nela projeta desejos e anseios, que nela busca um cenário para a concretização de sonhos e edificação de projetos pessoais ou familiares, acabaria por emergir naturalmente das entrevistas levadas a cabo durante dois meses por Zé Pires. “Foi através dessas entrevistas que fomos descobrindo o novo tecido dos habitantes daquela zona e percebendo o que queríamos para o projeto”, diz Marco Martins.
A seleção inicial, ainda intuindo apenas aquilo que o espetáculo poderia vir a ser, incidira sobre 30 pessoas, com as quais Marco Martins, Beatriz Batarda, Victor Hugo Pontes, Romeu Runa, Romeu Costa e Nuno Rafael realizaram workshops de música, movimento e improvisação. Era não apenas um semear de ideias e de um contexto criativo, mas também uma forma de conhecerem os potenciais intérpretes futuros. Destes, deveriam depois escolher um grupo mais restrito de nove ou dez em torno dos quais pudessem construir uma peça consistente. Só que foram atropelados pela realidade e pelos estímulos que andavam a provocar e a instigar naquele grupo. Aos poucos, os representantes de uma Lisboa mais tradicional, participante nas marchas populares e com uma vida entranhada nos bairros circundantes, todos esses se foram afastando do projeto sem uma razão muito clara – embora Marco arrisque que “normalmente, nestes projetos as pessoas têm uma urgência em falar, e talvez nesses casos não houvesse tanta urgência”.
O que ficou, assim, foi um grupo unido pela procura de uma cidade utópica. E tão unido, de facto, que Beatriz e Marco confessam que foram incapazes de desmembrar aquele coletivo – ao longo dos meses de oficinas criaram uma tal dinâmica grupal que prescindir de alguns elementos ameaçava fazer ruir essa construção conjunta. “Então abdicámos de algumas ideias que tínhamos para a cenografia e para outros aspetos da peça e ficámos com o grupo completo de 17 não-atores”, dizem. Aos 17 juntaram-se depois três intérpretes profissionais: Miguel Borges, Carolina Amaral e Romeu Runa (o anfitrião do espetáculo).
Palavras e gestos
Romeu Runa senta Bruno Massy no colo, coloca a mão por dentro da roupa do francês, agarra-o pela cabeça e faz um número de ventriloquismo que, à primeira vista, parece cómico. Mas a comicidade da cena torna-se sufocante, agride o espectador, coloca em palco a manipulação de um homem pelo outro, de um homem mais velho por outro mais novo, de um imigrante por um autóctone. “É uma imagem quase de uma violação moral, de discurso, das palavras e do corpo”, descreve Marco Martins. Quando esse momento termina por fim e Romeu parece reconhecer, afinal, a existência e a vontade do outro, fecha-se uma metáfora (extensível a todo o espetáculo), completada pela súbita reclamação de Massy dos seus movimentos e das suas palavras, de alguém que volta a encontrar o controlo sobre aquilo que faz, diz e pensa.
Fala-se de metáfora porque aquele que é o exemplo mais extremo do exercício de tradução que atravessa Todo o Mundo É Um Palco e em que não se limita a interpretar, distorcer ou adulterar o discurso de quem fala – por vezes em línguas pouco inteligíveis para qualquer nado em Portugal –, roubando por completo a voz de quem tenta falar. Como se a sua identidade lhe fosse totalmente sonegada e alguém lhe impusesse sem discussão aquilo que Bruno deveria fazer, dizer, pensar. É a exploração cruel e humilhante de um estado de fragilidade natural em quem parte para um novo lugar e procura esconder-se sob o peso das regras e dos costumes.
O espetáculo montado por Beatriz Batarda e Marco Martins avança em contramão relativamente a esta imagem de apagamento forçado e funciona como a reclamação de um espaço individual no meio de um coletivo. “Passa muito por essa ideia de que uma sociedade e uma cidade não são feitas de sujeitos todos iguais, mas de pessoas muito diferentes e que, por vezes, não têm espaço”, reforça Marco Martins. “O espetáculo funciona como afirmação dessa individualidade que, se calhar, no dia-a-dia não tem outra forma de se expressar.” Mas na história destes indivíduos o encenador e realizador encontra também “uma rejeição da marginalização” na forma como muitas destas pessoas se viram empurradas para fora daquela zona da cidade onde construíram a sua vida ao não conseguirem mais habitá-la, tendo de aceitar instalar-se mais longe daquele seu centro. Só que é ali que a sua vida continua a acontecer – podem já não conseguir habitar aqueles bairros, mas é por ali que gastam os seus passos.
Ao centrarem o espetáculo na questão da interpretação e da tradução, Beatriz e Marco criam quase de imediato uma lógica de cumplicidades entre os intérpretes, mas apontam também para “estruturas de pensamento distintas” ditadas pelas diferentes línguas. A tradução e a interpretação implicam também um olhar dirigido para o outro, uma tentativa (mais ou menos esmerada, mais ou menos honesta) de compreender o outro. Mas aquilo que Todo o Mundo nos mostra é também o quanto a adulteração não sentencia necessariamente um ato de sabotagem e um jogo de poder (embora isso também esteja presente), apontando de igual maneira para o quanto cada código de referências e de valores, e quanto cada indivíduo projeta de si ao ouvir um terceiro.
A tradução e a interpretação, como se depreende da gravação áudio inicial de uma passagem pela televisão francesa em que Serge Gainsbourg diz a Whitney Houston com todas as letras aquilo que gostaria de lhe fazer e o apresentador atarantado tenta suavizar-lhe o discurso, pode ter tanto de exposição quanto de proteção. Mas aquilo que corre permanentemente em fundo no palco do Teatro do Trindade, janelas abertas para a rua e a cidade a imiscuir-se nestas histórias, é o quanto as palavras e os gestos se inscrevem num espaço e a ele pertencem. Mesmo que alguém escolha ignorá-los.
por Gonçalo Frota, in Público | 17 de novembro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público