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Casa da Arquitetura | Como os arquitetos guardam as suas ideias

A Casa da Arquitetura, em Matosinhos, inaugura um lugar dedicado em exclusivo ao arquivo e exposição de arquitetura.

"Arquivo" era o nome e título da exposição dos ARX Portugal no Centro Cultural de Belém Foto Gustavo Bom/ Global Imagens Fernando Távora, colecionista e arquivador, guardou as sandálias com que subiu ao Partenon Foto Arquivo DN "[O arquivo] É muito importante, o projeto é um documento para construir uma obra que vai ficar pronta e estar sujeita a transformações" Foto Global Imagens "Arquivo" era o nome e título da exposição dos ARX Portugal no Centro Cultural de Belém Foto Gustavo Bom/ Global Imagens "Arquivo" era o nome e título da exposição dos ARX Portugal no Centro Cultural de Belém Foto Leonardo Negrão/ Global Imagens Ana Tostões, professora da licenciatura de Arquitetura, lembra o resgate do arquivo de Ruy Athouguia Foto Reinaldo Rodrigues/ Global Imagens "Arquivo" era o nome e título da exposição dos ARX Portugal no Centro Cultural de Belém Foto Igor Martinho/ Global Imagens


Arquitetura e arquivo não vivem um sem o outro. Do trabalho do arquiteto sobra sempre um rasto. "Obrigação burocrática, mas também cultural", classifica José Mateus, dos ARX Portugal e presidente da Associação Trienal da Arquitetura. Há os meticulosos como Fernando Távora que desenhou os armários onde se guardavam os seus projetos no ateliê e até as sandálias que calçou para subir pela primeira vez ao Parténon e os menos preocupados como os irmãos Aires Mateus, cujo arquivo "não está rigorosamente nada organizado", responde, de imediato, Francisco.

"Há cadernos arrumados, há maquetes, mas umas ficam outras não, algumas apanham humidade e vão fora", explica o arquiteto, que à sua volta guarda maquetes do Centro de Criação Cultural Olivier Debré, em Tours, a escola António Arroio (nunca construída) e à entrada o farol de Cascais. Ao mesmo tempo, "estamos a pensar se tratamos de tudo com um bocadinho mais de cuidado, temos feito exposições, convém guardar algumas coisas". A missão coincide com o momento em que Manuel se muda para o Príncipe Real e deixa vago o anterior ateliê em Campo de Ourique.

São mais de 20 anos de prática da arquitetura dos dois irmãos depois de terem deixado o ateliê de Gonçalo Byrne. "Os projetos estão guardados numa pasta com o nome do projeto e não como arquivo". Aos papéis obrigatórios juntam-se os cadernos, muitos, com que andam sempre. "Mas nada sacralizados. Podem ter tarefas e trabalhos de alunos."

Em Portugal, desenhos, documentos e toda a produção dos arquitetos, nomeadamente os já desaparecidos, está dispersa por várias instituições. A Casa da Arquitetura (CA), que inaugura na sexta-feira na antiga Real Vinícola, em Matosinhos, é a primeira cuja missão, única, é mostrar e conservar o arquivo de arquitetura. "O critério é a qualidade, não a quantidade", refere o diretor-executivo, Nuno Sampaio. Aqui ficará toda a documentação do Metro do Porto (conforme acordo celebrado ontem) e está também uma parte do acervo de Eduardo Souto de Moura, tal como os projetos mais relevantes desta autarquia. Da renovação da Quinta da Conceição, por Fernando Távora, às piscinas da Marés e a Casa de Chá da Boa Nova, de Álvaro Siza, que aqui nasceu e cresceu, e cujo trabalho se encontra à guarda do Canadian Centre for Architeture.

"Num país com uma cultura da arquitetura como o nosso, haver uma Casa da Arquitetura, tal como, sou suspeito, uma Trienal da Arquitetura, faz todo o sentido. É uma das áreas em que somos mais reconhecidos, diz José Mateus ao DN.

Ana Tostões, professora da licenciatura de Arquitetura e presidente da organização internacional Docomomo, destinada à conservação e promoção da arquitetura moderna, defende a preservação da memória dos edifícios. Recorda-se bem daquela noite, nos anos 90, em que estava a dar o jantar ao filho, bebé, e percebeu que o prédio que conservava o arquivo do arquiteto Rui D"Athouguia tinha colapsado. "Tinha sido aluno do Colégio Militar e era o arquiteto com a coisa mais bem organizada. Abria-se a gaveta e saía a obra", conta a professora de Arquitetura do Técnico, então a fazer o seu doutoramento.

Depois de saber que estava tudo bem com Ruy d'Athouguia, a preocupação foi com esse arquivo tão meticulosamente conservado. "Aqueles desenhos tinham de ser salvos", conta ao DN. Só a deixariam entrar naquele palacete no Bairro Alto, dias depois. "Foram três ou quatro horas a enrolar projetos e tirá-los". Entre eles, o Bairro das Estacas ou as escolas primárias do Bairro de São Miguel e a sede da Fundação Calouste Gulbenkian. Hoje, este material encontra-se no Arquivo Municipal de Lisboa, onde também estão Cassiano Branco ou Keil do Amaral.

A lista de instituições que guardam espólios de arquitetura em Portugal é vasta. A maior, e com protocolo já assinado com a CA para troca de informação é o SIPA - Sistema de Informação para o Património Arquitetónico, conhecido simplesmente por Forte de Sacavém. "Arquivamos da mesma forma, as mesmas coisas", segundo Nuno Sampaio.

Aqui estão, por exemplo, projetos da autoria de Nuno Teotónio Pereira, Pardal Monteiro, Cottinelli Telmo ou Daciano da Costa, arquiteto e designer, cujo arquivo também está depositado no MUDE - Museu do Design e da Moda e no ateliê com o seu nome, liderado pela filha, Ana. "A minha prática reflete muito a herança do ateliê do meu pai: da prática do projeto de interiores, do uso da cor, da busca dos materiais, do gosto pelo detalhe". O que guarda? "Desde amostras de materiais de revestimento, tecidos e até os protótipos das alcatifas desenhadas para os diversos projetos de hotéis", explica Ana Costa, mais arquiteta do que designer ao contrário do pai.

Daciano da Costa dizia que "o ateliê funcionava como uma mercearia de projetos". "Tudo era etiquetado à mão pelo senhor Aristides e guardado nos arquivos próprios. Como se faziam muitos protótipos em tamanho real, foi-se acumulando ao longo dos anos ao ponto de termos de ter selecionado apenas aqueles que são testemunho da "marca da casa"." E a estes objetos juntam-se outros: "documentação técnica, livros diversos, maquetas várias, desde os espaços interiores de alguns projetos como também de mobiliário. Temos guardados religiosamente os esquissos que entretanto foram digitalizados. Também ainda temos mobiliário em versão de protótipos. Toda a biblioteca técnica do meu pai está ainda no ateliê".

Francisco Aires Mateus, ao contrário de Ana, diz que não é costume voltar atrás, rever o que fica guardado. "Procuramos partir o mais possível do zero", aceita. O que fica, ou ficará, não o preocupa. "O tempo é impiedoso e fica sempre menos do que a gente pensa". E, conclui, "o que fica não depende da qualidade do arquivo", diz Francisco.

Manuel Graça Dias por outro lado, vê no arquivo "uma tarefa para os vindouros". Na arquitetura desde 1978, o arquivo é uma cronologia de maneiras de fazer. "Há um grande período que não era informatizado, mas mesmo agora acumulamos muito papel, a ponto de além do ateliê ter um armazém destinado a conservar essa memória. Há sempre necessidade de consultar".

O que fazer com essa produção foi em 2013 o assunto de Arquivo , título da exposição dos ARX Portugal - Nuno e José Mateus - que inaugurou a Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, onde ainda está depositada. "Desenvolvemos um sistema de arquivamento de caixas de casquinha e esferovite no interior com diversas profundidades para irmos arquivando o que foi aberto ao público, desde uma maquete mais embrionária até maquetes muito detalhadas". Mesmo de projetos, como o Pavilhão do Sporting ou o Museu da Língua Portuguesa, que não saíram do ateliê. São informação a que continuam a recorrer. "Ter o arquivo organizado é a melhor forma de isso acontecer. Temos um índex com o conteúdo de cada caixa e cada caixa fotografada. Nelas há um percurso cronológico e histórico que nos interessava preservar. Chegou um momento que havia maquetes nas paredes até no teto", recorda.

Gonçalo Byrne destrinça o arquivo do arquiteto e outro, aberto à investigação. "É muito importante como ferramenta de trabalho, o projeto é um documento para construir uma obra, que vai ficar pronta e estar sujeita a transformações. Esse arquivo é fundamental para acompanhar a vida da obra", explica. No seu arquivo, cujos inícios remontam a um tempo em que se usava papel vegetal, podem estar desenhos, troca de correspondência, cópias de atas de reunião de obra e "partes menos publicitadas com medições e orçamentos". "E que os arqueólogos e historiadores já descobriram que pode ser útil."

Outra coisa, segundo o autor do projeto de requalificação do Mosteiro de Alcobaça, "é o arquivo como algo aberto a investigação futura. Extravasa o arquivo do ateliê, esse é uma das funções da Casa da Arquitetura". "Há critérios seletivos e tem critérios de avaliação", refere.

Pode tornar-se mais acessível, como acontece na Fundação Calouste Gulbenkian, guardiã dos espólios de Luís Cristino da Silva e Raul Lino, ou da Faculdade de Arquitetura do Porto em parceria com a Fundação Marques da Silva, detentora do arquivo do próprio e, desde 2011, do acervo de Fernando Távora. Desenhos, maquetes, fotografias e até os armários de muitas gavetas que concebeu para este fim: guardar a ideia.


por Lina Santos, in Diário de Notícias | 13 de novembro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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