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Escritores revoltados e rebeldes na vila de Óbidos

A terceira edição do Folio está a levar dezenas de escritores a Óbidos até ao dia 29, sob o tema "Revoluções, revoltas e rebeldias".

Henriques da Cunha/Global Imagens


Uma viúva põe-se à frente das pessoas que passeiam pela vila literária de Óbidos e confessa-lhes que tem muita pena do homem que morreu, mas talvez não fossem assim tão conhecidas algumas coisas da sua vida que mostrariam como era diferente do que parecia. A situação parodiada por essa mulher, acompanhada de um padre, de um caçador e de uma poetisa, que andam pelas ruas da povoação a representar, pode ser a metáfora para esta terceira edição do Folio, Festival Literário Internacional de Óbidos, pois é neste tipo de encontros que se conhecem melhor os lados mais pessoais dos escritores que ali vão. A "acusação" da viúva pode abrir o apetite aos espectadores para irem mais além do que assistir às muitas sessões de autores conhecidos e interrogá-los sobre os lados menos divulgados da sua obra ou da própria pessoa.

Foi o caso do músico Luís Cília, um compositor que anda muito arredado do público e que aceitou sentar-se em frente ao altar da Igreja de Santiago com as tradutoras de um poema lançado em livro no Folio do cantor francês Léo Ferré numa conversa quase pessoal. Não é coisa fácil ouvir Cília falar do passado e ainda menos de um presente eremita, mas quem lá esteve pôde questioná-lo e saber mais deste protagonista de outros tempos. Tal como perceber como é que se exilou em França em 1964, apaixonado pelas canções de Georges Brassens e foi tocado por Ferré, com quem construiu uma amizade que acabou por resultar na vinda do cantor a Lisboa para atuar no Coliseu, enganado e surpreendido, pois pensava que se tratava de uma sala intimista e não de um enorme espaço.

O tema deste Folio é "Revoluções, revoltas e rebeldias", sugerido pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, durante a segunda edição, devido a estar-se a evocar o centenário da Revolução Russa de 1917. Por essa razão, a maioria das mesas orienta-se por temas diversos, mas sempre com a palavra "revolução" como pretexto.

Foi isso que aconteceu na mesa que abriu o Folio, com Pacheco Pereira e José Neves a apresentarem o livro de Sheila Fitzpatrick A Revolução Russa, na qual Neves explicou a importância da interpretação da autora sobre a evolução da perceção sobre as investigações a propósito da revolução soviética após a abertura dos arquivos russos. Pacheco Pereira falou do domínio da Guerra Fria sobre a análise histórica da União Soviética e de como a ausência de arquivos levava a que as fontes iniciais fossem dominadas por memórias e pelos arquivos de Smolensk, que os alemães obtiveram quase intactos.

Só com a abertura dos arquivos soviéticos, acrescenta, é que se puderam ter outras perspetivas e olhar para a história dos partidos comunistas sem ser unicamente testemunhal. Apesar do fecho parcial desses arquivos, ficou facilitada a compreensão dos fundos entregues a Humberto Delgado e ao PCP, referiu ainda Pacheco Pereira.

Numa direção diferente foram os escritores Dolores Redondo e Valério Romão, uma das duplas mais inesperadas do Folio, que fizeram as suas orações junto ao altar da Igreja da Misericórdia, sob o tema "Revoltas interiores. Que fazer?"

Redondo é autora de thrillers e, perante o olhar de Jesus Cristo numa pintura perto, falou de crimes e de criminosos, como o de existirem 500 serial killers em atividade nos EUA e de como a literatura policial pode ser uma ponte para compreender essa realidade. Romão falou da componente dos seus livros e até que ponto um deles, Autismo, é autobiográfico e também uma ponte com os leitores.

A revolução que é preciso fazer interiormente para chegar ao leitor foi outra das questões, e Redondo disse que se pode escrever sobre tudo desde que se seja verdadeiro. Por seu lado, Romão, que nasceu em França, contou como queria fugir de lá e da caricatura que os franceses faziam dos portugueses, e que só recentemente, ao publicar um livro em França, é que sentiu chegar o momento de se reconciliar.

A primeira noite fechou com o músico Júlio Pereira a interpretar temas que homenageavam Zeca Afonso, numa sala em que as paredes evocavam os cartazes pós-25 de Abril, da Coleção Ephemera.

Um dos momentos altos do segundo dia foi a presença do investigador Victor Sebestyen, que acabou de publicar em Portugal a edição do seu mais recente estudo, Lenine, o Ditador, numa conversa em que fez revelações inesperadas, como a de o governante russo ter sido o "padrinho da pós-verdade". O autor comparou a importância de 1917, a grande revolução do século XX, com outras datas, como a do fim do Muro de Berlim ou o 11 de Setembro, e lamenta que no país onde vive, a Inglaterra, se dê pouca importância à data.

Muitos livros novos

São muitos os autores que vão ao Folio apresentar os seus livros novos e um deles foi André Canhoto Costa, que lançou recentemente Os Vícios dos Escritores, em que revela o outro lado dos autores que conhecemos. É o caso de Eça de Queirós e o seu lado mulherengo, ou o de Camões enquanto corrupto. Canhoto Costa não quis ninguém a apresentar o seu livro e preferiu enfrentar só os que ali foram saber o que diz de muitos escritores com alegada vida dupla. Afirma que não pretendeu fazer uma história mundial da literatura, antes dar a conhecer até que ponto o estilo foi influenciado pelas transgressões morais. Considera que o perfil mais difícil de escrever foi o de Fernando Pessoa e o mais fácil o de Oscar Wilde. Também o cronista brasileiro Antonio Prata esteve ontem em Óbidos para apresentar a coletânea de textos Nu, de Botas, em que faz um relato autobiográfico da sua juventude e de um Brasil menos polémico do que o atual.

Quanto ao que se segue até dia 29 no Folio, o responsável José Pinho considera que as perspetivas são as melhores devido ao programa extenso e à existência de muitas parcerias nacionais e estrangeiras: "Apesar dos constrangimentos financeiros, temos um Folio tão bom como os anteriores e agora tudo depende do público e não do esforço sobre-humano de quem o organiza. Só faltou a bandeirinha do escritor nobel prometido, mas nenhum estava disponível."

Quanto ao número de eventos, refere que é "quase o dobro do ano passado e há mais dias com concertos". Falhados os apoios financeiros habituais ao terceiro ano do Folio, pode dizer-se que os primeiros dias foram repletos de histórias. E é isso que os leitores mais desejam.

 


por João Céu e Silva, in Diário de Notícias | 23 de outubro de 2017

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Diário de Notícias

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