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Mais de 20 anos depois, o São Carlos está de regresso aos Coliseus
Pode o único teatro nacional de ópera ser popular? A Turandot que esta quinta-feira se estreia em Lisboa e dois dias depois chega ao Porto põe à prova uma nova estratégia, apontada às grandes salas de espetáculos.
Vinda de Londres, Annabel Arden acabou de chegar ao Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, onde se prepara um concerto encenado de Turandot, a última ópera de Puccini, e diz que adora tudo o que acaba de ver no ensaio corrido desta segunda-feira de manhã em que participam todos os solistas. “Está brilhante. Adoro. A única coisa que é preciso trabalhar é a finesse”, comenta a encenadora britânica.
Esta produção da Opera North, que se estreou em Leeds este ano, é o arranque da temporada lírica do teatro nacional de ópera e está repleta de simbolismo – para além dos enigmas que o herói tem de resolver –, porque significa o regresso do São Carlos às apresentações nos Coliseus de Lisboa e do Porto. No primeiro já não entrava há 23 anos, no segundo vão em 33 os anos passados sobre a última récita. As estreias nestas grandes salas de espetáculos, que juntam milhares de espectadores, estão marcadas para dia 19 em Lisboa e para 21 no Porto, sempre às 20h.
Annabel Arden avança pela plateia e começa a introduzir a sua finesse nesta ópera de Puccini originalmente estreada em 1926 em Milão: mais calor humano entre os cantores e, lá para a frente, uma Turandot, a filha do imperador da China, mais delicada. “Toda a gente começa a vir na direção dele”, apela a encenadora. Ele é Calaf (Rafael Rojas), o príncipe que desafia Turandot. Toda a gente é Liù (Dora Rodrigues), a escrava dedicada, Timur (Stephen Richardson), pai de Calaf e rei exilado dos tártaros, e Ping (Diogo Oliveira), Pang (Sérgio Martins) e Pong (João Pedro Cabral), ministros do imperador da China.
Liù, que há-de suicidar-se para que Calaf sobreviva, deve mostrar em palco “o poder da escrava”, sugere Annabel Arden: “Tens dois homens grandes à tua volta… ocupa o teu lugar.” Quanto a Ping, Pang e Pong, é preciso que obedeçam com os corpos à exclamação de Calaf, na voz do tenor que integrou a produção original de Leeds: “Deixem-me!”
No segundo ato, chega finalmente ao palco Elisabete Matos, a mais internacional das cantoras portuguesas, que se junta aos outros solistas, pois até lá a voz da princesa Turandot não consta do libreto (no outro ensaio a que o PÚBLICO tinha assistido, a cantora, envolvida no programa de encerramento das comemorações do centenário das aparições de Fátima, não estava presente). Annabel Arden sinaliza a entrada da diva com um beijo soprado da plateia.
Com um toucado de penas, Turandot coloca-se, imperial, debaixo de uma enorme cadeira-trono suspensa sobre o palco, o adereço principal da cenografia de Joanna Parker. A princesa provoca algum rebuliço quando se começa a mover, mostrando que é preciso fazer alguns ziguezagues para chegar à boca de cena, já perto do momento em que dirá por que não acredita no amor, cantando a ária In questa reggia. É que há muitas cadeiras vazias a marcar o espaço que a Orquestra Sinfónica Portuguesa e os dois coros (São Carlos e Coro Juvenil de Lisboa), dirigidos por Domenico Longo, vão ocupar no palco. Mas os solistas podem ficar descansados, não se cansam de prometer vários membros da equipa durante os ensaios, porque nos Coliseus haverá muito mais espaço para tudo.
No intervalo entre o segundo e o terceiro atos, a encenadora sobe ao palco para esclarecer algumas dúvidas sobre o papel de Turandot. Já no camarim, mais tarde, Elisabete Matos conta um pouco do que se passou nesses bastidores: “O carácter de Turandot no segundo ato é sempre muito hirto, ela tem medo do amor por causa de toda a lenda que existe sobre a sua avó. A Annabel achava que a minha postura já era suficientemente imponente e sugeriu que eu podia quebrá-la depois com as mãos, mostrando uma certa fragilidade.” Por exemplo quando a soprano canta “quel grido”, o grito proferido pelos antepassados de Turandot, que a encenadora queria que fosse mais desesperado e menos heróico.
O mito de Turandot conta a história de uma mulher que perdeu o reinado por se ter entregado ao amor. “Como ela tem isso presente, recusou inúmeros príncipes candidatos a desposá-la. Eles nunca conseguiram passar a prova que ela inventa para os pretendentes: descobrir três enigmas [ou morrer].” E quando Calaf descobre os três enigmas, continua a soprano, Turandot já não tem grandes alternativas a não ser cumprir a promessa de casar com o príncipe. Mas Calaf ainda lhe dá outra possibilidade, propondo-lhe que também ela resolva um enigma – se descobrir o seu nome, até então desconhecido, Turandot pode cortar-lhe a cabeça.
O terceiro ato arranca com a famosa tirada dos arautos de Turandot: que “esta noite ninguém durma em Pequim!”, porque é preciso descobrir o nome de Calaf. É o momento do tenor Rafael Rojas e da ária Nessun dorma ("ninguém durma"), em que Calaf canta que o segredo está preso dentro de si e que só ele pode revelá-lo.
Segue-se a cena da tortura, que foi muito trabalhada pela assistente da encenadora no primeiro ensaio a que assistimos no São Carlos, a uma semana da estreia. Sobre o palco está uma corda que serve para Ping, Pang e Pong tentarem arrancar o nome de Calaf à escrava Liù e ao pai Timur. “Já não estás a lutar, mas ainda estás viva”, aponta Rosalid Parker a Dora Rodrigues. “Se puderes também torcer o corpo e parecer mais torturada…” A música de Puccini, que morreu em 1924 durante a composição de Turandot, acaba aqui, com a morte de Liù, tendo Franco Alfano completado a obra inacabada para a estreia de 1926 no Scala.
No final do ensaio de segunda-feira, Annabel Arden decide que Dora Rodrigues-Liù já não vai abandonar o palco depois de morta. Ficará sentada à boca de cena, a olhar em diagonal para fora do palco, testemunha e vítima do encontro entre Turandot e Calaf. “A Turandot acaba por ceder ao amor no dueto final. Deixa de ser a princesa de gelo e passa a ser muito mais humana”, explica Elisabete Matos.
Puccini e as mulheres
Comparando-a com as outras protagonistas femininas do reportório operático, Elisabete Matos diz que Turandot representa a mulher forte, o quero-posso-e-mando. “Acho que Puccini tinha uma relação estranha com as mulheres. Quase todas as mulheres de Puccini acabam mal. Manon Lescaut acaba sozinha, perdida e abandonada, como diz a própria ária.”
Para qualquer soprano dramático, o papel de Turandot “é dificílimo”: “É concentrado, e essa rigidez, essa fortaleza, está quase sempre presente. Aparece logo na ária do princípio, tendo só umas variantes mais suaves quando a princesa fala da avó. É numa tessitura sempre muito exposta, muito aguda. É um papel que expõe a cantora a uma grande responsabilidade.” Depois, no final, é preciso trabalhar exatamente o contrário: “Quando Turandot começa a descobrir o amor, a paleta de cores é muito mais suave.”
O regresso do São Carlos aos Coliseus é visto com alguma cautela pela grande soprano portuguesa, que já não atua na sala do Porto há dez anos e na de Lisboa há 13. Matos, que se candidatou à direção do único teatro nacional de ópera no processo que resultaria finalmente na escolha do atual diretor artístico, Patrick Dickie, diz que o São Carlos é um teatro "emblemático" que tem que viver para a sua casa e para o seu público. “Evidentemente que gostava mais de fazer a Turandot no São Carlos. Por questões acústicas e do intimismo que se gera.”
Mas se as necessidades de manutenção da sala histórica do São Carlos explicam um pouco a estratégia de saída para fora de portas, fazer ópera nos Coliseus também pode ter algumas vantagens, concede: “É um lugar maior, que vai com certeza levar mais gente, mas também temos muito menos récitas. Como [esta Turandot] é uma versão semi-encenada, ainda não sei como é que vai funcionar. Como se viu no ensaio, nós saímos pelo meio da orquestra e temos o maestro sempre atrás de nós, o que é um handicap. A orquestra, que normalmente está no fosso, aqui surge no palco, podendo desequilibrar muito mais facilmente a voz.”
Para Elisabete Matos, faz mais sentido o São Carlos apresentar-se no Coliseu do Porto do que no de Lisboa. “Faz parte das funções de um teatro nacional, como teatro de todos, levar ópera a outros pontos do país. Aqui, havendo o teatro de São Carlos, e estando ele livre, não acho assim tão especial ir ao Coliseu dos Recreios, porque a acústica, desde que teve obras, não ficou tão boa como isso.” Ainda assim, diz, esta operação pode ser uma surpresa: “É sempre bom abrir horizontes e chamar outros públicos que se calhar não estão habituados a vir a São Carlos.”
por Isabel Salema in Público | 18 de outubro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público