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Museu do Chiado pode perder coleção de arte "crucial"
Expirado o depósito da coleção privada de Isabel Vaz Lopes, o MNAC pode ficar sem as suas únicas obras de Pedro Cabrita Reis ou Paulo Nozolino. Diretora diz que o processo ainda está em aberto.
Descrita como “um núcleo importantíssimo” para o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, a coleção Isabel Vaz Lopes pode estar de saída da instituição. O acervo, que ali está em depósito desde 2003, inclui obras de artistas-chave como Pedro Cabrita Reis ou Paulo Nozolino que não estão representados no museu. A colecionadora, em parte descontente com a política museológica e com a orientação da instituição, já pediu a desafetação das obras, mas a diretora do museu sublinha: “Desejamos que [a coleção] permaneça no MNAC”.
A coleção Isabel Vaz Lopes está há 14 anos no único museu nacional dedicado à arte contemporânea – a instituição de referência nesse domínio, o Museu de Serralves, tutelado pela fundação com o mesmo nome (uma instituição privada de utilidade pública), tem outro estatuto jurídico. Dela fazem parte obras de Rui Chafes, Jorge Molder, José Pedro Croft, José Luís Neto ou Hugo Canoilas, da pintura à escultura, passando pela fotografia. Aida Rechena, diretora do MNAC-MC desde 2016, reconhece o “interesse crucial para o museu” que tem este espólio, como o de outros depósitos em vigor – o Museu do Chiado conta com importantes depósitos do colecionador António Cachola, por exemplo, ou do Ar.Co.
Em resposta ao PÚBLICO, por email, sobre a relevância da coleção Vaz Lopes, Rechena destaca a “qualidade e o valor artístico das obras que o constituem", argumentando tratar-se de "um núcleo coerente e representativo da produção artística nacional do período cronológico que abrange" e lembrando que ali estão contidas "obras de autores não representados no acervo do museu", constituindo por isso "um núcleo importantíssimo para a realização de exposições e para a investigação em arte contemporânea”.
Mas Isabel Vaz Lopes diz querer encerrar uma fase da sua vida. Falando de cansaço, elogia curadores e o trabalho feito sem verbas, mas também defende que o "papel cívico" dos colecionadores não está a ser devidamente enquadrado na política do museu. “A minha intenção é trazer algumas peças para casa. Porque não estão comigo há 14 anos. E, grande parte, vender. Está na altura de acabar esse protocolo. Quando fiz o primeiro protocolo, com o dr. Pedro Lapa [diretor do museu entre 1998 e 2009], a intenção de ambos era dar uma espécie de exemplo a vários outros colecionadores que poderiam fazer depósitos no museu”, recorda.
Considera que “se perdeu essa ideia” e lembra que “o Estado não se preocupou em ampliar o espaço para o próprio museu poder ter mais acervo”. Hoje “não há qualquer política cultural para exposições” que a façam ponderar manter a sua coleção ali, diz ao PÚBLICO.
Vaz Lopes coleciona desde 1987. “O meu intuito era comprar obras de artistas da minha geração”, explica – artistas que se afirmaram nas décadas de 1980 e 1990. O depósito da sua coleção no museu lisboeta e a respetiva exposição no Chiado acenderam mesmo uma pequena polémica na Primavera de 2003, com o crítico de arte João Pinharanda e o então diretor Pedro Lapa a dirimirem argumentos nas páginas do PÚBLICO. Pinharanda considerava-a meritória do “maior respeito”, mas também uma “coleção doméstica” composta por nomes relevantes, embora não através das suas obras mais representativas. Lapa, por seu turno, defendia que esta “vinha aprofundar alguns núcleos autorais já existentes ou integrar nomes que ainda não haviam encontrado representação na coleção do museu, pela incúria de muitas direções retrógradas e do seu pesado legado”. Contactado pelo PÚBLICO, Pedro Lapa não quis prestar declarações.
Sem data prevista
Este Verão, o museu “pretendia a renovação” do protocolo que mantém a coleção ali depositada, explica Aida Rechena, mas Isabel Vaz Lopes diz ter contactado o museu em junho, antes da renovação automática do acordo de depósito por mais cinco anos, para comunicar do seu interesse em retirar algumas peças. Entre elas, escultura de Croft, Cabrita Reis e Chafes e fotografia de Molder, Nozolino e José Luís Neto. “Eles aceitaram.” Já em setembro, a colecionadora comunicou a sua vontade de retirar do MNAC a totalidade do acervo, mas, detalha, “nada foi assinado”.
Aida Rechena alerta porém que “o processo está em aberto", considerando a receção de "dois pedidos de desafetação distintos”. A desafetação pedida em julho, explica a responsável do museu, foi feita “no prazo e nos termos do protocolo”. Mas “a possibilidade de desafetação da totalidade” da coleção, feita já em setembro, “terá de ser analisada juridicamente”, remata. Perante este impasse, Isabel Vaz Lopes diz manter a sua intenção de retirar o que resta da coleção do MNAC-MC.
Aida Rechena, que na sua resposta ao PÚBLICO fez questão de “agradecer” a Isabel Vaz Lopes a “generosidade para com o museu, os seus visitantes e investigadores da arte, ao disponibilizar a sua coleção”, e aos restantes colecionadores com o mesmo papel, acrescenta ainda que “não há nenhuma data prevista para a saída das obras”. Questionada sobre se a permanência de outros depósitos está em causa, afirma que “não há nenhum outro processo em curso de saída de obras”.
O protocolo original com Isabel Vaz Lopes data de 26 de fevereiro de 2003 e contemplava então o depósito de 36 peças no MNAC-MC. O elenco foi-se alterando com os anos, ampliando-se em 2005, por exemplo, com o depósito de mais 11 peças, ou sendo objeto de renegociação, com a venda ao museu de cinco peças (de João Pedro Vale, Jorge Molder e Augusto Alves da Silva) ou a saída de algumas obras em 2012; nos últimos dois anos foram sendo retiradas mais algumas peças, de Croft, Pedro Calapez, Rui Sanches ou Julião Sarmento. Em junho último, diz Isabel Vaz Lopes, nem o museu nem a tutela, a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), “mostraram interesse” em comprar obras da sua coleção e “o Estado prescindiu” formalmente do direito de preferência na compra de peças.
As reconhecidas lacunas no acervo do museu, sobretudo relativamente ao período 1960-1980, e sua a história recente, nomeadamente a saída do anterior diretor e atual subdiretor-geral do Património, David Santos, cruzam-se com a discussão em torno do destino ideal da Coleção SEC, que o ex-secretário de Estado da Cultura Jorge Barreto Xavier chegou a afetar ao MNAC (para logo depois revogar o despacho que formalizava esse depósito). O importante espólio público de mais de mil obras, agora sob a alçada da DGPC, que recebeu em julho a missão de o inventariar, está disperso por várias instituições, entre elas Serralves, e inclui obras de Almada Negreiros, Julião Sarmento, Cabrita Reis, Croft, Júlio Pomar, Paula Rego, René Bertholo, Lourdes Castro, Helena Almeida ou Vieira da Silva e Cesariny. Sobre o tema “para já não haverá declarações por parte da DGPC”, disse ao PÚBLICO a assessora daquele organismo.
com Isabel Salema e Lucinda Canelas, in Público | 29 de setembro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público