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"Os azulejos estão em frente ao nosso nariz e nós não os vemos"

Há dez anos, no pico do furto de azulejos, o Museu da PJ decidiu criar um projeto para sensibilizar um povo distraído do tesouro que tinha em mãos. 

Leonor Sá espera que o Parlamento possa fazer mais para limitar venda de azulejos. [Foto: Rui Gaudêncio]


O SOS Azulejo conseguiu recentemente uma das suas maiores conquistas.

Foi como um daqueles presentes de aniversário que se cobiçam durante muito tempo. No ano em que o projeto SOS Azulejo celebra uma década de atividade, o Parlamento pôs finalmente em lei aquilo que há muito era visto como uma necessidade imperiosa por todos os defensores dos pequenos mosaicos que decoram Portugal de norte a sul. Desde a semana passada que é proibido demolir prédios com fachadas azulejadas e também retirar azulejos das mesmas.

Não bastava só proibir as demolições, era preciso prevenir também os subterfúgios usados por quem se quer ver livre daqueles pedaços de cerâmica. “Há sempre aquelas pessoas que pensam ‘se não vai abaixo com azulejos, tiro-os e já pode ir abaixo’”, explica Leonor Sá, coordenadora do SOS Azulejo, projeto criado há dez anos pelo Museu da Polícia Judiciária e o principal responsável pela recente alteração legislativa.

Se dependesse das câmaras municipais, esta proteção aos azulejos tarde ou nunca chegaria. Em 2013, depois de Lisboa ter inscrito no seu Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação (RMUEL) as interdições agora nacionais, o SOS Azulejo tentou, através de uma parceria com a Associação Nacional de Municípios, que outros concelhos seguissem o exemplo. “Mas em três anos houve só três pequenos municípios que aderiram e nós vimos que íamos ficar vinte anos à espera” até que todas as câmaras mudassem as regras, diz Leonor Sá. “Ao fim de vinte anos já não teríamos se calhar metade do património azulejar que temos hoje”, pelo que era urgente agir. “Para grandes males, grandes remédios. Decidimos que íamos ao Parlamento apresentar o projeto e algumas propostas muito concretas.”

Os deputados aprovaram duas propostas – as proibições já mencionadas e a criação do Dia Nacional do Azulejo, assinalado a 6 de Maio –, mas há outra que continua na gaveta. Aquela que prevê limitar a venda de azulejos antigos a um grupo restrito de comerciantes. “Hoje já há uma obrigatoriedade legal de determinados estabelecimentos, sobretudo antiquários e lojas de velharias, enviarem à polícia mapas mensais das suas transações”, sublinha Leonor Sá. Só esses espaços, defende, é que deviam ter autorização para vender, uma vez que “são controláveis” pelas autoridades. “Deixava de haver esta venda descontrolada”, acredita a responsável do projeto. 

O lento caminho da abertura de olhos

Talvez uma lei desse género chegue como presente para o décimo primeiro aniversário. Até lá, Leonor Sá quer que o SOS Azulejo se empenhe no que sempre o moveu durante estes anos: a sensibilização dos indiferentes. “Grande parte da população portuguesa, como vive rodeada de azulejos, não lhes liga grande coisa. Mas existem grupos de pessoas – historiadores de arte, cientistas, museólogos e até delinquentes, amigos do alheio – que sabem muito bem o valor dos azulejos.”

Entre as décadas de 1980 e 2000 desapareceram 25% dos azulejos artísticos existentes nos prédios de Lisboa. Dentro e fora de portas. No resto do país, a perda é praticamente incalculável. “No final dos anos 90 e no princípio do século XXI houve, de facto, um aumento exponencial de furtos”, recorda Leonor Sá. E isso devia-se, em grande parte, a “uma indiferença generalizada” da população, autarcas incluídos, talvez iludida por uma certa ideia de progresso que olhava para os azulejos como objetos kitsch sem lugar no Portugal moderno.

Foi para combater ideias deste tipo que o SOS Azulejo nasceu, em 2007. “Os azulejos estão em frente ao nosso nariz e nós não os vemos.” O que fazer? Valorizar, sensibilizar, conservar. “Nós preocupámo-nos em ter uma abordagem interdisciplinar, ou seja, abordar não apenas a questão dos furtos, mas também a falta de conservação e a falta de valorização”, explica a coordenadora. Para além da publicação constante de fotografias de azulejos roubados, o site do projeto tem conselhos práticos e exemplos de boas práticas. Porque “a sensibilização é uma batalha difícil e lenta” e não pode viver só de mostrar os maus exemplos. “Nós quando lançámos o projeto só abordávamos coisas negativas: furtos, vandalismo, maus tratos, era tudo negativo. De repente começámos a ver que também havia boas práticas, que não tinham praticamente nenhuma visibilidade, que ninguém sabia que existiam.” Surgiram assim os Prémios SOS Azulejo, de que já houve sete edições e que galardoaram dezenas de projetos, artistas e arquitetos.

Aqui chegados, Leonor Sá não tem dúvidas: “Os azulejos são encarados hoje de uma maneira muito diferente do que eram há dez anos. Temos muito mais gente a ligar ao património, muito mais gente apaixonada pelo património e pelos azulejos, isso até se vê nas redes sociais, há n páginas no Facebook” sobre este tema.

Entre o ativismo atrás do ecrã e a realidade há, ainda, contudo, uma distância que vai demorar mais algum tempo a percorrer. A legislação agora publicada é importante, até para limitar a venda, dado que muitos dos azulejos que se encontram em feiras e lojas de velharias provêm de demolições – que agora são ilegais. Mas, ainda assim, a proteção dos pequenos mosaicos artísticos e históricos continua a depender da sensibilidade dos técnicos camarários. A lei proíbe demolições e remoções, “salvo em casos devidamente justificados, autorizados pela câmara municipal em razão da ausência ou diminuto valor patrimonial relevante destes”.

Por outro lado, os painéis que se escondem atrás de portas, por vezes em edifícios que por fora pouco chamam a atenção, continuam sem uma proteção específica. Leonor Sá acredita a via legislativa não é a solução para este caso. “Uma lei que protegesse também os interiores ia ser complicadíssima, muito burocrática”, diz, alegando que “teríamos de ter cem vezes mais fiscais do que temos, ou mil vezes mais” para fazer cumprir as regras. Por isso, também aqui, é à sensibilidade de arquitetos, empreiteiros e proprietários que ficam entregues os azulejos.

A receita, sublinha Leonor Sá, é a de sempre. “Estamos convencidos de que, com as campanhas de sensibilização que temos vindo a fazer, cada vez mais pessoas vão olhar para os azulejos dos interiores com outros olhos e protegê-los, não os retirando com a facilidade com que têm vindo a retirar.”

 


por João Pedro Pincha, in Público | 27 de agosto de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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