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Pedro Cabrita Reis: "O regresso à arte antiga é uma viagem de encanto"

Parece um momento de abrir o olhar aos outros, aos grandes mestres, mas provavelmente ser comissário de uma grande exposição de Jorge Pinheiro e confrontar os seus próprios trabalhos com telas de Morandi é a a sequência natural das coisas.

Reinaldo Rodrigues/ Global Imagens


O centro da conversa é ele, no ateliê/casa feito à sua medida, grande, amplo, luminoso. Os gatos familiares não nos ligam nenhuma, estão a aproveitar o sol da tarde. Mas mais do que falar sobre ele próprio, Pedro Cabrita Reis fala sobretudo de arte e dos artistas que admira, de Caravaggio, Tintoretto, Picasso, Morandi, num encantamento completado por uma reflexão que se percebe constante. Descreve-se como um workaholic imparável, e isso mesmo se conclui da agenda dos próximos meses. Exposições de obras suas, de outros artistas, filmagens e "outras miudezas como conferências e workshops". Pelo meio há de arranjar tempo para verificar como estão as amendoeiras da casa do Algarve.

O que anda a fazer agora?

Estará até outubro no Atelier-Museu Júlio Pomar a exposição chamada Das pequenas coisas, que inaugurámos a 1 de julho e teve muita graça. Deu-nos imenso prazer aquilo juntos, é ótimo trabalhar com o Júlio. A 15 de setembro, em Serralves, tenho uma grande exposição antológica que estou a comissariar sobre a obra do Jorge Pinheiro, um artista com 85 anos que tem uma carreira interessantíssima. Tem um trabalho muito inspirador e tive sempre por ele muita admiração, enquanto pessoa e enquanto artista. Estou muito contente por poder estar a fazer isto com ele. A 28 de setembro, terei em Londres uma exposição com três trabalhos meus e três trabalhos do Giorgio Morandi, pintor italiano dos anos 1940, com uma obra que continua a levantar-me interrogações. É uma obra importante para a minha reflexão sobre a pintura e, acima de tudo, é um pintor extraordinário, excelente, discretíssimo, com uma obra absolutamente lapidar na história da pintura europeia. Sinto-me bastante orgulhoso, podia mesmo dizer vaidoso, de fazer esta exposição com ele. No dia 30 de agosto inaugura em Buenos Aires a Bienal Sur, que congrega artistas de onze países da América Latina, para a qual eu e outros dois ou três artistas europeus e americanos fomos convidados. Tenho uma peça muito grande na Faculdade de Direito, no centro de Buenos Aires. Em outubro começo a filmar com a Margarida Gil, pessoa que dispensa qualquer apresentação. É uma história muito interessante com cruzamentos e passagens pelas questões do tráfico humano e dos refugiados. É um plot muito engraçado. Sou eu, a Maria de Medeiros, a Catarina Wallenstein, o Nuno Lopes e mais dois ou três atores mais jovens que eu, por ser já demasiado velho, não me lembro dos nomes, espero que não me levem a mal. E depois tenho uma quantidade de miudezas para fazer, conferências e workshops.

É interessante nesses projetos o tributo a velhos mestres: Morandi, Jorge Pinheiro e Pomar.

Sem qualquer vaidade ou imodéstia, devo dizer que considero isso muito importante e sou bom a fazê-lo. Na história da arte não há ruturas. São anunciados alguns momentos como momentos-chave. Passam 100 anos desde que o Marcel Duchamp fez o urinol [Fonte]. Esse é um momento-chave na história da arte contemporânea. Contudo, por muito dramática que seja a interrupção do fluxo, a verdade é que em história de arte as feridas saram muito rapidamente e o que interessa é a continuidade. A continuidade é uma conversa que vem de trás, uma conversa que se faz entre artistas de várias gerações. Eu falo com o Jorge Pinheiro mas também falo com o Tintoretto, são pessoas com quem eu falo habitualmente e tenho imenso prazer. Acho que o meu trabalho é isso.

Creio que não tinha desenvolvido esta linha antes, trabalhar com outras pessoas em colaboração.

É novo no meu trabalho. Sempre me inclino mais a visitar museus de arte antiga do que outros museus. É uma inclinação pessoal, poderíamos encontrar muitas explicações mais ou menos subjetivas, mas tenho um prazer enorme em ver pintura, a chamada pintura antiga ou clássica. É para mim um motivo de grande alegria e bem-estar passar dias inteiros em museus a ver pintura dos séculos XVII e XVIII. E faço viagens mais rápidas a museus de arte contemporânea, provavelmente porque sendo uma coisa do que é meu, da minha experiência, do meu modo de estar no mundo, da forma como sou artista, aí as interrogações, as perplexidades, as curiosidades e os encantos são outros, não tão ligados ao fundo do pensamento e do coração. É mais aferir verdades, inverdades, relações, referências, são balizas, informações, de algum modo já conhecidas. É evidente que se pode dizer o mesmo do Tintoretto, por hipótese, ou do Caravaggio. São já conhecidos, mas o regresso a eles pressupõe uma viagem de encanto que, confesso - e serei por certo crucificado por causa disso - não tenho em relação às obras contemporâneas. Tenho, é verdade, em relação às minhas.


Picasso não o provoca?

Mas o Picasso não é um artista contemporâneo, é o último grande pintor do séc. XIX. É um artista pelo qual eu sempre tive uma grande admiração. Quando andava na escola, dividíamo-nos, com alguma ironia, humor e muitas piadas pelo meio, entre os picassianos e os matissianos. Não éramos nem uma nem outra das coisas, evidentemente, mas falávamos de interesse por. Havia um conjunto de colegas e amigos que se fascinavam pela obra do Matisse, enquanto eu tinha o mesmo tipo de encanto pela obra do Picasso.

E continua a ter?

Continuarei sempre a ter. Ainda recentemente estive no Museu Reina Sofia onde vi uma exposição notável, um conjunto de pinturas e de desenhos que vão criando o caminho para chegar a Guernica [Piedad y terror en Picasso, El caminho a Guernica]. Faz 80 anos que a Guernica foi mostrada pela primeira vez, na Exposição Internacional de Paris. Eu estava em Madrid para tratar de um assunto, tinha três horas livres e corri para o Reina Sofia. Havia outras coisas que me interessavam mas quis absolutamente ver aquela exposição do Picasso que é fabulosa. E aconteceu-me uma coisa extraordinária. Tinha visto a Guernica quando veio de Nova Iorque [em 1981], exposta com pompa e circunstância, numa imensa caixa de vidro antibala, dois guardas-civis, um de cada lado, no Casón del Buen Retiro, aquela espécie de pavilhão que o Prado tem no Retiro. Foi um momento emocionante da minha vida, ver aquilo ao vivo pela primeira vez, ainda que não me pudesse acercar porque havia aquela caixa-forte, a polícia, todo aquele aparato - nessa altura poderíamos prever ainda atentados fascistas contra a obra. A democracia espanhola era recente, e aquela gente escura ainda andava muito por ali. Agora vi outra vez e confesso que me pareceu mais pequena. Não está com a proteção do vidro, está exposta na parede como uma outra tela qualquer, sem moldura, felizmente, linda com apenas o objeto tela. E dei por mim a achar que o quadro era pequeno.

Mas mesmo assim faz um sobressalto, não é?

Aquilo faz um sobressalto, sempre. E não sabemos se faz o sobressalto por todas as contingências sociológicas ou históricas, todas as pequenas e grandes histórias, dramáticas ou não, toda a mitologia em torno da Guernica. Não sabemos se é por isso ou se é pela qualidade intrínseca da pintura. Eu, como pintor, prefiro ou inclino-me a acreditar que as obras de arte têm em si essa capacidade de criar emoção em quem as vê. Distingo-me nisso, enquanto artista, de outras pessoas que andam também no mundo da arte mas que têm uma aproximação mais de caráter sociológico ou crítico e insistem, como sabemos, que a perceção de uma obra de arte nunca pode ser plena se não no quadro de uma contextualização ou histórica ou sociológica ou política. Eu percebo as motivações e até admito que é sempre interessante saber.

Saber o quê?

Saber o território e o momento histórico de uma obra de arte. Contudo, é possível e é inevitável que se essa obra de arte tiver essa qualidade de induzir emoção e encanto junto da pessoa que a vê, essa perceção é suficiente para criar o laço necessário entre quem vê e o que é visto. O resto são anedotas de circunstância, são uns stickers amarelos ao lado, a dizer "não esquecer o bombardeamento da aldeia basca", "não esquecer a Guerra Civil". Ok, sabemos todos isso tudo, mas a Guernica tem, como muitos outros quadros de outros autores, uma vida própria, e é essa vida própria que a transforma numa obra de arte particular e que, tendo o tempo passado e as circunstâncias mudado, continua a induzir e a criar essa emoção. E é aí que temos de volver sempre. Se uma obra tem séculos de intervalo, desde a sua feitura até ao nosso tempo, por que é que ainda nos provoca emoção? Isso acontecia se ela fosse apenas entendível no contexto sociológico e histórico em que foi feita? Na Scuola Grande di San Rocco [Veneza], no primeiro andar, no refeitório, está uma crucificação lindíssima, maior, mais comprida, do que a Guernica. Essa obra foi pintada por Tintoretto em 1565 e não deixas de sentir um tremor na espinha quando chegas ao pé dela e a olhas. E não sabes de nada, não estás há 500 anos atrás, estás agora.

Não temos um historial como na Guernica?

Exatamente. E não temos preocupação, estamos a olhar e ao olhar há qualquer coisa que se estabelece entre ti e aquele quadro, ou entre ti e muitos outros quadros, que te provoca essa sensação emocional e que faz com que percebas que aquilo te disse alguma coisa, sem teres de andar com o dicionário atrás para perceber.

No caso do Morandi [Giorgio Morandi, Bolonha 1890-1964], por exemplo, não se coloca essa questão de haver uma intenção política e no entanto...

No Morandi clarissimamente não.

... e no entanto são obras que o comovem, de uma maneira diferente?

O Morandi sempre foi um autor muito discreto, teve aquilo que se chamaria hoje uma carreira discreta e contudo tem para mim uma qualidade particular. Nunca vi o silêncio em si, como uma entidade física, tão bem descrito como nas pinturas do Morandi. A sua paleta constrói uma luz irreal e parte de objetos que têm a grande dignidade dos objetos modestos - uma garrafa, uma latinha, uma caixa não sabemos de quê. Há ali a conjugação destes objetos na sua profundíssima simplicidade, a luz que sendo de dia é ainda uma luz fabricada, lunar, irreal, mas que banha e quase abstratiza todos os objetos que estão retratados na tela. As grandes dimensões em pintura existiram até ao séc. XIX mais do que nada por imperativo das encomendas ou dos temas. As batalhas, a glorificação das monarquias ou da Igreja, tudo isso era representado em telas de grande superfície, o que ajudava a implementar uma magnificência ideológica. A partir do impressionismo, as telas reduzem imenso, as telas impressionistas são bastante pequenas. Só depois, nos anos 1940, com o expressionismo abstrato americano, voltamos de forma incontornável a defrontar-nos com campos enormes de pintura, telas enormes. O Giorgio Morandi é ainda um pintor de pequeníssimas dimensões. Tem umas telas maiores que outras, é verdade, mas eu talvez preferisse dizer que tem umas telas ainda mais pequenas do que outras. E tem um universo que não é mensurável, é um universo de uma infinitude ligada a um silêncio materialmente construído por aquela paleta e por aquelas luzes, o que torna a pintura do Morandi, para mim, em algo de quase hipnótico. É uma pintura à qual eu volto sempre.

Como aconteceu ter agora a possibilidade de dialogar com a obra dele?

Aconteceu de uma forma muito engraçada. A minha galeria em Londres [Sprovieri Gallery] convidou-me para fazer outra exposição para a rentrée e eu disse-lhes que gostaria muito de fazer uma exposição com o Morandi. Eles puseram-se em campo e arranjaram quatro, dos quais eu escolhi. Vão estar expostos e eu vou fazer duas ou três peças.

Que tipo de diálogo pode ter com Morandi?

Vou ver, será a primeira vez que isso será levado à prática. Tenho algumas ideias, não posso ainda ter a certeza do que me apetece fazer. A única coisa que senti de imediato, provavelmente por uma questão de matéria ou de luz, é que me apetecia fazer uma coisa que há muitos anos não faço, que são esculturas em gesso. O gesso tem, enquanto matéria de escultura, uma mesmíssima qualidade que traz o silêncio e a imaterialidade da pintura do Morandi. A única forma que eu poderia ter de construir aqui uma relação interessante era pelo menos uma ou duas peças serem dessa natureza, serem esculturas em gesso. Mas ainda é cedo, é uma coisa que tenho andado a trabalhar, não tenho ainda certezas definitivas sobre o que me apetecerá propor neste diálogo. A única coisa que posso confirmar é que é emocionante, estou muito metido nisso.

A exposição Das pequenas coisas com Júlio Pomar, que também é um diálogo, apareceu por iniciativa do ateliê dele?

Sem dúvida. O ateliê Júlio Pomar teve já duas exposições de encontro entre o Pomar e a obra de outros dois artistas - o Rui Chafes e o Julião Sarmento. Recebi um convite da mesma natureza e desde logo lhes disse que aceitava e que era para mim bastante estimulante esse encontro, mas que o queria focar numa área particular da produção dele e da minha, ou seja, os pequenos objetos feitos com coisas encontradas, restos, etc.. Porque há muitos anos [1978] na Gulbenkian houve uma exposição com caráter retrospetivo da obra do Júlio e dessa exposição o que retenho ainda hoje, passados 40 anos, como algo que me tocou particularmente, são as colagens, assemblages, ou estas construções tridimensionais que o Júlio tem, feitas com coisas encontradas na praia.

E o Pedro também tem?

Exato. Eu tenho uma quantidade de pequenas peças com esse ambiente e achei que a forma mais rica e interessante de ir ao encontro do Júlio era mostrarmos os dois esse tipo de obra que tem tendência a ficar para trás. A seguir ao 25 de Abril, falava-se nas gavetas dos escritores, que depois se verificou estarem todas vazias, ou quase todas. Mas há um obra de estúdio que não sai do ateliê, obras que são feitas no encanto, no silêncio e na intimidade do ateliê que muitas vezes não vêm cá para fora, não são vistas. Achei que era um território que não estava ainda divulgado, sobre o qual era preciso fazer alguma luz, e propus ao Júlio, primeiro, e ao museu, a seguir, que toda a nossa exposição andasse em torno disso. Sugeri o título e fiquei muito contente de terem adotado - Das pequenas coisas.

Ele aderiu bem à ideia?

Ele aderiu lindamente. Esteve comigo três dias inteiros dentro do museu, com uma energia, um entusiasmo e uma alegria. Estivemos a montar a exposição e a escolher a sequência das obras. De repente percebeu-se que aquilo estava a dar-lhe uma energia, ele começou a ir a casa buscar mais coisas. E isso era um sintoma do empenhamento e do encanto que estava a ter por mostrar de novo essa parte da sua vida. Acho que aquilo correu muito bem. Gosto muito da exposição, tenho a certeza de que ele também.

Vamos falar sobre a exposição do Jorge Pinheiro em Serralves. É uma retrospetiva? É uma escolha sua?

É uma escolha minha com ele. É uma coisa que deu um grande prazer ao Jorge, ele não estava habituado.

De quem foi a iniciativa?

Eu estava uma vez a jantar com as pessoas de Serralves e dei por mim a descrever com entusiasmo e a analisar a obra do Jorge Pinheiro. Ouviram-me atentamente e quando me calei perguntaram: quer fazer uma exposição do Jorge Pinheiro para nós? Logo, na hora, disse que sim, ficou aceite. A exposição terá pintura, escultura, alguns trabalhos sobre papel e convidei o Eduardo Souto de Moura para fazer uma intervenção de índole arquitetónica, porque as exposições precisam sempre de um pouco de arquitetura.

Porquê?

A arquitetura cria trajetórias de visibilidade mais inteligentes, rentabiliza o espaço que pode não ser o suficiente para mostrar tudo o que é preciso. Tivemos imensas conversas - ele, o Jorge e eu. Quando, no princípio de setembro, formos montar a exposição ela já está toda montada nas nossas cabeças, nas maquettes que fizemos no ateliê do Eduardo, e aquilo agora é martelo e pregos para a parede. Evidentemente, haverá, porque há sempre, outro olhar, transformações e mudanças, mas o processo preparatório foi muito engraçado e muito rico. Sempre tive uma grande admiração pelo Jorge Pinheiro.

Foi seu professor?

Não. Cruzámo-nos na escola mas não chegou a ser meu professor. Contudo, houve um momento em que eu criei uma revista que se chamava Arte/Opinião [1978]. Jorge Pinheiro nessa altura estava em França, na Escola de Altos Estudos, e eu tinha-o conhecido na escola e pedi-lhe se escrevia umas coisas para a revista, ao que ele acedeu imediatamente. Isso fortaleceu ainda mais a relação que tínhamos e a minha admiração por ele. É um tipo com um pensamento denso, um homem extremamente inteligente e um artista dotado de um rigor e de uma impiedade no olhar e na forma como vê o seu próprio trabalho e como trabalha. Isso transforma-o num caso que me parece particular dentro da história da arte portuguesa desses tempos. Ainda por cima, depois de ser conhecido como artista eminentemente abstrato, há um momento na sua vida em que nos traz uma quantidade de pinturas figurativas de grande qualidade e carregadíssimas de significado. As pessoas, de uma forma simplificada, dirão que são pinturas figurativas e eu acho que nem as pinturas abstratas dele são tão abstratas quanto isso, nem as pinturas figurativas o são. Ou seja, umas e outras, a meu ver, são mais pinturas abstratas do que outra coisa qualquer. Mas isso está debatido na conversa que tivemos [para o catálogo] e as pessoas irão ler, apreciar e farão os seus raciocínios.

Nunca tinha feito trabalho de comissariado com outro artista?

É a primeira vez e é também é a primeira vez que ele faz isto. Ele tem uma experiência diferente da minha, é um homem de outra geração, tem outra prática, e também estava muito contente com o processo e repetidas vezes acentuou este lado positivo de dois artistas trabalharem na obra de um deles para fazer uma exposição. Eu senti-me extremamente lisonjeado e honrado por ele ter aceitado o meu desafio. Ele tem 85 anos mas tem uma lucidez e uma atenção vivíssimas, embora se intitule mais mestre-escola do que artista, o que quer dizer que dá à sua vida como professor uma importância muito grande - e é verdade. Estou muito satisfeito por Serralves ter decidido fazer a exposição porque acho que a seguir virão exposições de reavaliação de outros artistas da história da arte portuguesa do meio do século - anos 1950 a 1970. É importante mantermos em permanente revisão o trabalho das gerações anteriores, porque isso ilumina o trabalho das gerações atuais.

Porque há uma continuidade e há ruturas?

As recusas fazem parte do processo da continuidade. Na história da arte, as ruturas são importantes, ciclicamente há cortes, é inevitável, mas têm tendência a sarar com uma grande rapidez. As gerações mais jovens transformam as diferenças de perspetiva em matéria de pensamento, em inteligência criativa e, como tal, reinserem-nas na "normalidade" do processo criativo. Tudo continua. Há artistas com maior propensão para as ruturas na praxis ou no pensamento e são importantes. Numa posição mais conservadora mas também de maior continuidade, interessa-me mais a reconstrução do território após o momento efémero da destruição. Interessa-me a continuidade e interessa-me essa espécie de vibração de altos e baixos.

Isso acontece também dentro da sua obra?

Na minha obra tenho isso, exatamente. Volto atrás e faço coisas diferentes, depois vou para os lados e volto outra vez a um qualquer centro que não existe mas a partir do qual olho novamente para qualquer coisa diferente. Não creio que haja artista nenhum que não faça isso. Mesmo aqueles artistas que se infere da observação da sua obra que têm um ritmo sem sobressaltos, e o Morandi é disso um caso exemplar, tudo o que está subjacente a ela, ao seu processo de construção e de pensamento, passa seguramente por uma vibração qualquer que depois ou é patente na obra ou é retransformada e apresentada de uma forma que nos dá ideia que nada se passou. Mas em arte não existe isto do "nada se passou", porque em cada quadro ou desenho ou em cada escultura, mesmo esse período de tempo mais curto, mais longo, é um período de grande tensão. Essa tensão é comparável, historicamente, às ruturas históricas que são cortes numa continuidade qualquer. Cada obra é uma espécie de microcosmos do processo de toda a história da arte. Tem vibrações, tem cortes, tem recuos, tem avanços, tem vitórias, tem derrotas, tem momentos de suspensão, de paragem em que nada parece acontecer. Depois quando a obra está pronta ela incluiu isso tudo.

O resultado é um objeto físico, mas é um trabalho mental?

Lá dizia o Leonardo da Vinci. É absolutamente verdade: "La pittura è una cosa mentale" [Tratatto de la Pittura]. Toda a criação artística é, em si própria, a materialização de um processo de pensamento. A arte tem uma inteligência como a matemática, como outra forma qualquer de pensamento humano, de ciência. Por muito que alguns artistas o queiram recusar ou nem tenham disso consciência, mesmo as obras de maior simplicidade ou ingenuidade, ou mais superficiais ou levianas ou ligeiras, mesmo essas obras incluem uma qualquer forma de inteligência reflexiva, um pensamento, que tu fazes ou de uma forma metodologicamente clara e estruturada, ou é uma coisa que anda ali no córtex cerebral e que tu, com um impulso mais ou menos emocional, trazes para a tela. Mas o certo é que não há arte que não seja resultado de um processo de pensamento. A própria arte é um processo de pensamento.

É um homem de cidade e de repente tornou-se quase um homem do campo, na sua casa da serra algarvia.

É um jardim muito especial.

Jardim?

Jardim, com as verdadeiras plantas de jardim e com as mais bonitas de todas, as árvores de fruta e outras. Não tenho particular inclinação para roseirais ou jardins de plantas decorativas. Abro uma exceção para catos. Os catos são mais do que plantas, são uma demonstração de resiliência, de resistência às condições adversas. São a coisa mais parecida com o retrato do que deveríamos ser: um reservatório interior de riqueza, de água, um ou outro pico para afastar intrusos e devassas, e uma resistência às adversidades do exterior que os agarra à terra e os transforma numa coisa que não é fácil de derrotar. Os verdadeiros jardins são os de laranjeiras, de amendoeiras, são as vinhas, são as oliveiras com o seu verde cinza tão bonito. Eu, que sou um homem de cidade e o fui bastante nos anos 1980 e nalguns dos anos 1990, encontro-me hoje com mais vontade de regressar ao campo do que, do campo, voltar para a cidade. Vivo na cidade por circunstâncias inevitáveis mas espero um dia, em breve, poder dizer "vivo no campo e venho à cidade".

Que filme vai fazer com a Margarida Gil? Vai ser ator?

Por qualquer razão que só ela saberá, recebi um telefonema dela a dizer que tinha uma proposta para me fazer. Não a conhecia pessoalmente, sabia quem ela era e que fazia filmes e documentários. Veio a minha casa e falou-me longamente do projeto e descreveu-me o personagem que gostaria que eu interpretasse. De imediato disse: sim senhora. Gosto desta história do cinema, acho graça. Não é a minha vida, longe disso, mas coloco-me como um... nem sequer um compagnon de route, é anda menos do que isso. É um momento que me dá um grande prazer e depois o cinema segue per se e eu volto para o ateliê antes que as tintas sequem. No caso deste personagem era engraçado, tinha um perfil curioso. Participei nuns filmes nos anos 1980 e 1990, com o João Botelho [Tempos Difíceis, 1988; Três Palmeiras, 1994), com o Serge Tréfaut [Alcibíades, 1992] o José Nascimento (Repórter X, 1987], a Teresa Villaverde [Três Irmãos, 1994]. Quando a Margarida Gil me entra aqui com o guião na mão e a contar-me a história fiquei muito contente. Vou fazer isto, vai ser um desastre mas vou fazer porque gosto da ideia. Ela quer tocar questões muito sensíveis, como os refugiados, o tráfico de pessoas.

É uma intromissão sua num tema atual?

Tal como por muito serena e formalista que uma obra de arte possa ser ela tem sempre um processo de tensões interiores, também acredito que em arte não tens necessariamente que produzir obras de cariz propagandístico para estares envolvido. Se calhar a forma de estar envolvido é criando obras de arte que sejam elas próprias uma permanente de renovação do pensamento. Porque isso traz a necessária atitude política ou filosófica que é estar com uma permanente atenção à transformação do mundo. Tens que pintar o que tens que pintar no ateliê e depois podes ir fazer o que quiseres na rua, e isso faz parte de estar atento e vivo. Não acredito em criar obras de arte medíocres que se propõem ou ambicionam, e sempre com péssimos resultados, uma atitude propagandista ou politicamente envolvida. Podes estar no ateliê a pintar o que tens de pintar, com a atenção toda com que tens de o fazer, e podes dedicar-te a outras atividades de índole solidária, revolucionária. Podes sempre ter um pincel e uma pistola em casa.

Desfez-se da sua coleção, vendeu-a à EDP. Faz-lhe falta?

Não, antes pelo contrário, estou bastante contente que ela esteja na EDP. A coleção atingiu uma dimensão que começou a ser difícil manter com a qualidade que as obras requeriam. Para poder mostrá-la ainda tinha que esperar muitos anos até ter um espaço meu. O MAAT [Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia] era o sítio ideal para colocar uma coleção e dar-lhe a visibilidade que os artistas que a integram merecem. Deu-me um grande prazer foi entregá-la a um sítio onde pode ser conservada e mostrada.

Deixou de comprar?

Deixei de comprar. Foi um momento da minha vida que teve um cabimento particular, entre meados de 1990 e meados de 2000. Tinha quase 400 obras. De repente apareceu esta oportunidade e pareceu-me que era o melhor para a coleção.

No meio de todas estas atividades, todas elas relacionadas com o trabalho de outras pessoas, o teu trabalho, que é mesmo seu e o obriga a viajar pelo mundo inteiro. Como é que acontece?

Eu sou um workaholic, ou seja, trabalho muito, não faço outra coisa, não tenho hobbies de tipo nenhum. O trabalho dá-me um prazer enorme, e trabalho a toda a hora. Tenho a capacidade de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Passe a ingenuidade ou o provincianismo da imagem, é como um maestro, um condutor de orquestra, com todos aqueles naipes de madeiras, de metais, e eu tenho que tomar atenção ao primeiro violino, ao pianista e ao coro que está escondido atrás da cortina. Isso para mim não constitui qualquer problema. Estou sempre a fazer coisas. Ainda hoje de manhã fiz quatro ou cinco desenhos. Levanto-me a meio da noite, vou fazer qualquer coisa, tomo notas nestes cadernos que estão cheios de coisas para fazer. De manhã tenho uma lista de coisas e os meus assistentes começam a prepará-las. Quando chega a altura de eu fazer, entro eu, faz-se, vem o fotógrafo, fotografa, arquiva-se, vai para a base de dados. Gosto muito da vida que tenho. Desta vida que tenho só me vem iluminação, não me canso. E faço uma vida absolutamente desregrada, graças a deus, e nesse desregramento da minha vida estou sempre a encontrar coisas novas. E como as obras de arte não nascem de nada mas nascem sempre de qualquer coisa que alguma vez na vida terei visto, a verdadeira ferramenta de um artista, o seu verdadeiro ateliê é um espaço qualquer entre o olhar e o pensamento. Tudo o que eu vejo à minha roda é matéria de obras de arte. Não sou daqueles artistas que fazem esboços. Guardo tudo na cabeça, chego a casa e faço um processo quase inevitável de seleção e depois faço uma ou duas esculturas que têm a ver com uma coisa que vi na rua. Trabalho assim.


por Ana Sousa Dias, in Diário de Notícias | 11 de agosto de 2017

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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