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Paula Rego "meets" Bordallo Pinheiro
Colaboração entre a marca centenária e a artista plástica resultou num figo "húmido" que está a sair da fábrica nas Caldas da Rainha.
A corte foi longa – Paula Rego tem uma memória de infância em torno de Bordallo Pinheiro, um apego a essas figuras que viviam na parede dos avós, e as Faianças Artísticas Bordallo Pinheiro queriam muito começar parte da sua nova vida com uma das mais internacionais e importantes artistas plásticas portuguesas da atualidade. Mais de dois anos depois, já se ouve na fábrica, nos arredores das Caldas da Rainha, a pergunta sumarenta “Há algum Figo a sair do forno?”. A nova peça, que põe o nome de Paula Rego na cerâmica e a Bordallo em diálogo com um nome maior das artes, “é o casamento perfeito”, diz Elsa Rebelo, diretora criativa da Fábrica Bordallo Pinheiro.
Lançado em maio, o Figo é uma adaptação em cerâmica de uma obra têxtil de Paula Rego e a primeira peça da nova coleção WWB - WorldWide Bordallianos, que pretende juntar artistas internacionais em torno de Bordallo, desta feita com edições numeradas de 125 exemplares, por encomenda. No meio da fábrica, nem sempre se destaca apesar das suas dimensões, porque a cor e a natureza vidrada são uma constante neste cenário. Por vezes está-se com Mário Soares à sombra de um cravo, noutro momento um sardão ganha patas. Entretanto o Figo tinha ido ao forno com folhas de bananeira, pimentos ou parras.
“Na Quinta da Ericeira”, recorda Paula Rego sobre a casa dos avós num vídeo feito pelo filho, Nick Willing, para o Museu Bordallo Pinheiro, “havia um quarto pequenino onde a minha avó estava sentada dias e dias inteiros”. É desse quarto, onde anos mais tarde iria dormir Nick, ainda bebé, que vêm as memórias da artista plástica sobre as tradicionais peças Bordallo, enfeites e utilitários do século XX que entraram e saíram de moda ao longo de décadas. “Havia imensos pratos pendurados, que eram Bordallo Pinheiro. Pratos com lagostas, pratos com galinhas, pratos com tudo. Até tinha couves. Estava tudo coberto de pratos Bordallo Pinheiro.” Paula Rego, menina, “gostava muito e queria fazer festas aos pratos, porque pareciam mesmo os bichos”.
Décadas mais tarde, e confessado esse apreço pelo bordalliano, a Visabeira, que adquiriu as Faianças Artísticas Bordallo Pinheiro em 2009, começou o namoro. Depois de alguma resistência e falta de tempo, “ela sugeriu: ‘porque não fazem o meu Figo?’”, relata Nick Willing ao PÚBLICO.
O Figo é uma peça que surge “como uma colaboração, como um apoio”, explica o realizador e filho da artista, dias depois de o PÚBLICO ter estado na fábrica, de roda dos cinco moldes que o permitem fazer, da sua folha ao caule passando pelo gomo e pelo pingo reluzente. O Figo de Paula Rego é “um bordado”, como explica Willing, numa fase em que trabalhava nesse meio que é a tapeçaria. “Nessa época eu fazia muitas tapeçarias bordadas, e almofadas também, e de repente tive uma ideia de fazer um figo gigante. Penso que o fiz em 1967, logo depois de ter feito a Tapeçaria Alcácer-Quibir”, diz Paula Rego sobre a peça original.
Willing frisa que não se trata nem de uma influência de Raphael Bordallo Pinheiro (1846-1905) sobre o corpo de obra de Paula Rego — “O trabalho e Bordallo Pinheiro não entrou na cabeça da minha mãe” — e que “têm trabalhos muito, muito diferentes”. Por isso este Figo é uma transposição, uma adaptação de uma obra Paula Rego em cerâmica, com a sua alquimia apaixonante — “estamos a pintar com uma coleção enorme de cinzentos e de brancos e essas cores, ao misturarem-se, ao fundirem-se no fogo, é que fazem as cores que queremos”, explica Elsa Barreto enquanto fala de chacota (o barro que resulta da primeira cozedura), de banhos ou ornamentação. Rodeiam-nos os homens e mulheres da fábrica, que açoitam pratos, empurram carrinhos cheios de melancias ou fazem tinir tigelas.
É à diretora criativa que cabe a pintura das provas de autor das peças de artistas convidados para colaborar com a marca. “No caso da Paula Rego sentei-me e…”. Suspira. “Sente-se um peso de responsabilidade muito grande.” A primeira prova foi mostrada a Nick Willing, mas a ceramista achou que conseguia fazer melhor. A segunda, com “mais contraste, puxando umas cores mais fortes que a tapeçaria também tinha”, foi escolhida. “Quis converter aquela força para a escultura”, explica Elsa Barreto ao PÚBLICO entre vagonetas que vão passando carregadas de cerâmica ainda em bruto, “e acho que consegui”. Acrescentou “o verdadeiro verde Caldas, e dos bordados da Paula fiz bordados Bordallianos” — técnicas como as que Sílvia Pereira e Patrícia Martins aplicam agora na barriga do Figo que encontramos na fase de ornamentação da peça.
São três as texturas características de Bordallo que o Figo guarda na sua polpa: “a verguinha”, técnica centenária utilizada para imitar a cestaria nas peças com mariscos ou com frutos, “o areado, que o Bordallo utilizava para o fundo dos pratos onde punha répteis”, e “o musgado”, um relevo usado no fundo dos pratos marinhos. “É tudo colocado quase com bisturis”, sorri Elsa Barreto, com as artesãs a explicar que são precisos 350 minutos para fazer a ornamentação do figo.
Sobre o futuro da coleção WWB, “há peças já desenvolvidas com outros artistas” de várias nacionalidades e áreas de intervenção, como o design ou a moda, diz Nuno Barra, diretor da área de desenvolvimento de novos produtos na Visabeira. O desafio do grupo é, responde ao PÚBLICO, “que a Bordallo interesse à maioria das pessoas sem perder o legado artístico — e era muito fácil perdê-lo. As peças artísticas são mais caras” ou "datadas", exemplifica, do que as “peças mais utilitárias, as couves, ou decorativas, as andorinhas, mas Bordallo foi sobretudo um artista”. Na fábrica, Elsa Barreto está satisfeita. A edição, com preço unitário de 3500 euros, “tem sido um grande sucesso, não parámos mais de fazer figos”. De artista para artista, e sobre a sua versão bordalliana, Paula Rego achou que o Figo “está com um aspeto muito saudável, com brilho, parece húmido”, sorri a diretora artística da fábrica.
por Joana Amaral Cardoso in Jornal Público | 5 de junho de 2017
Fotografias de Margarida Basto
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público