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Esta é uma exposição sobre o racismo em que o comissário é um otimista

No Padrão dos Descobrimentos estão reunidos 500 anos de pintura, escultura, cerâmica e fotografia para ajudar a perceber como evoluiu a discriminação, algo que está muito longe de ter a ver apenas com a cor da pele.

Exposição "Racismo e Cidadania" patente até dia 3 de setembro. Francisco Bethencourt faz uma visita guiada.

 

Logo a abrir há uma pintura do começo do século XVI, de Quentin Metsys, que pode causar alguma estranheza numa exposição sobre racismo, mas só a quem não conhecer a obra do seu comissário, o historiador Francisco Bethencourt, em particular o livro Racismos: Das Cruzadas ao Século XX (Temas & Debates). O óleo do pintor flamengo é uma Flagelação de Cristo em que Jesus está atado a uma coluna, rodeado de homens que troçam dele, rindo-se e puxando-lhe o cabelo. Uns limitam-se a observar, outros parecem claramente contentes por testemunhar esta cena de martírio.

“Todos os estereótipos estão lá”, diz o académico português que dá aulas no King’s College, em Londres, “os narizes grandes, aduncos, a boca, o riso… Estes homens são claramente judeus.” E sendo judeus, explica, isso torna pertinente a inclusão da obra de Metsys numa exposição que quer mostrar que o racismo é muito anterior à teorização que dele se faz (a palavra só surge no final do século XIX) e que está longe de ter a ver apenas com uma discriminação baseada na cor da pele.

“Se concentrarmos o racismo na cor da pele, pomos de fora a perseguição contra os cristãos novos em Portugal e noutros países, excluímos dois dos principais genocídios do séculos XX, o dos judeus e o dos arménios”, explica ao PÚBLICO Bethencourt, repetindo a definição de racismo que formula no seu livro, “depois de a trabalhar durante anos para que fosse suficientemente ampla”, e a que há-de recorrer mais do que uma vez durante a visita guiada à pequena exposição do Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, Racismo e Cidadania integrada na Lisboa 2017 Capital Ibero-Americana de Cultura: “Preconceito face a descendência étnica combinado com ação discriminatória. Se o dissermos assim podemos defender que a perseguição aos judeus e muçulmanos em Portugal nos séculos XV e XVI, é racismo.” Neste caso como noutros, explica, a distinção entre descendência e religião não existe, daí terem continuado a ser perseguidos mesmo depois de terem sido violentamente forçados a converterem-se ao cristianismo, tanto pela Inquisição como pelas leis civis, que vedavam o acesso a universidades, conselhos municipais ou ordens religiosas e militares a todos os que tivessem sangue judeu ou muçulmano nas últimas quatro gerações.

“No meio da discriminação generalizada, havia casos isolados de integração, num clima de grande ambiguidade”, acrescenta o historiador, que prefere não alimentar a polémica relativa à recente visita do Presidente da República à ilha de Gorée, no Senegal (neste antigo entreposto de escravos usado pela coroa portuguesa durante séculos, Marcelo Rebelo de Sousa preferiu falar da abolição da escravatura do que reconhecer o papel determinante os portugueses tiveram no tráfico de mais de cinco milhões de pessoas de África para a Europa e, sobretudo, para o Brasil).

“Parece-me significativo que o Presidente tenha lá ido, mesmo com a sua visão otimista. Toda a história de potências colonizadoras como a portuguesa tem lados sombrios. O que é preciso é confrontar o passado para ultrapassar esse passado.”

É porque gosta do tempo longo, diz, que Francisco Bethencourt quis abordar a tensão entre racismo e cidadania que caracterizou a expansão portuguesa entre os séculos XV e XX, período em que se expulsaram muçulmanos, se forçou a conversão de judeus, se ocuparam o Brasil e territórios em África e na Ásia, se assistiu a mais de 400 anos de escravatura e depois à sua abolição, e se procedeu à descolonização, com todos os desafios e dificuldades que impôs a um e outro lado.

É através da pintura, da escultura, da cerâmica, da fotografia, da gravura, do vídeo, da publicidade e de uma pequena coleção etnográfica que Racismo e Cidadania quer levar os que a visitem a refletir sobre os processos históricos que conduziram à segregação de minorias em território nacional e à descriminação das populações locais nas antigas colónias.

“O importante é que as pessoas olhem para a história para melhor compreenderem o presente.” Um presente que está longe de ser perfeito, reconhece, mas que o historiador vê com grande otimismo. “A última secção da exposição é consagrada ao mundo pós-colonial, o mundo pós-Revolução de 1974 em que há acesso à cidadania, em que o racismo é punido por lei. Se desapareceu? Não, claro que não, mas já se fez um caminho longo.”

Teoria das raças

Dividida em dois grandes núcleos, o primeiro focado no período do século XVI ao XVIII, o segundo nos séculos XIX e XX e na colonização moderna, Racismo e Cidadania (até 3 de setembro) começa por expor o preconceitos contra judeus e muçulmanos, ainda no século XV, seguindo depois para uma secção em que se evidencia a inferiorização de africanos e asiáticos ao longo de centenas de anos, através de objetos de submissão dos escravos que os portugueses começaram a traficar em larga escala a partir da costa ocidental africana logo no começo da expansão, reproduções de gravuras de Jean-Baptiste Debret em que se mostram os castigos corporais aplicados a estes seres humanos que eram tratados como qualquer outro bem e pinturas como a que representa o pajem negro do futuro rei Afonso VI, visto como um acessório de corte.

“Por vezes os africanos, os asiáticos e os índios do Brasil são usados para representar o demónio, outros são simplesmente instrumentos exóticos que mostram um império imenso, com muita diversidade, e têm até lugar de destaque.” Como no caso da célebre Adoração dos Reis Magos (1501-06), de Vasco Fernandes (Grão Vasco) e Francisco Henriques, em que, pela primeira vez um dos sábios é representado como um índio do Brasil, com aquele que seria certamente um insólito toucado de penas na época, pintura que o Museu Nacional Grão Vasco emprestou agora ao Padrão dos Descobrimentos. “Toda esta exposição é atravessada por ambiguidades como esta.”

Este primeiro bloco da exposição termina com a chamada teoria das raças, dos séculos XVIII e XIX, em que se faz uma distinção das várias raças em função daqueles que se julgam ser os seus atributos naturais.

Quando o termo racismo surge, muito depois de ter surgido o fenómeno, tal como o descreve Francisco Bethencourt, não tinha o significado que hoje tem, explica o historiador: “A teoria das raças multiplica o racismo e justifica-o durante muito tempo, sendo depois apropriada, instrumentalizada, pelos movimentos nacionalistas dos anos 1920 e 30 [fascismo e nacional-socialismo], mas quando surge ela resulta de uma dinâmica científica que procura compreender os vários tipos humanos.”

O segundo grande núcleo começa com imagens do tráfico de escravos que se prolongam pelo século XIX, apesar dos esforços progressivos no sentido da abolição. Daí passa-se para fotografias do trabalho forçado nas colónias; para a erotização das mulheres africanas, que podiam ser representadas nuas ao passo que a moral do regime não permitia que o mesmo se fizesse às brancas; para a forma como a imprensa procurava inferiorizar os negros, associando-os à antropofagia ou ridicularizando os seus traços físicos; e para as grandes exposições dos anos 1930 e 40, em que o ambiente dos territórios ultramarinos era recriado como se de um parque temático ou de um zoo humano se tratasse.

No último bloco, a arte contemporânea portuguesa e africana encontra-se para falar de um presente que se alimenta da memória. Do português Vasco Araújo há uma escultura inspirada nas gravuras de Debret; do angolano Nástio Mosquito um vídeo que aponta para uma reflexão pós-colonial dos artistas africanos; do moçambicano Gonçalo Mabunda uma escultura feita com restos de materiais que faz pensar em guerra, mas também nas máscaras tradicionais.

“Os artistas africanos têm vindo a participar muito no debate pós-colonial”, defende o historiador. E essa reflexão tem sido suficiente para atenuar conflitos e tensões que ainda persistem? E a história da colonização, não é verdade que é ainda, sobretudo, uma narrativa feita pelas antigas potências colonizadoras? “Eu sou um otimista. Acho que também nessa matéria se tem melhorado muito. A própria teoria das raças foi virada ao contrário pelos afro-americanos — foi usada para inferiorizar, mas eles hoje fazem da raça, do ser negro, um instrumento identitário, um motivo de orgulho que também lhes permite denunciar várias formas de discriminação.”


por Lucinda Canelas in Jornal Público | 8 de maio de 2017

Fotografias de Margarida Basto
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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