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A biblioteca de Mafra está congelada e isso é bom
Em Mafra, D. João V não se preocupou em poupar. Aquela que é uma das mais importantes bibliotecas históricas do mundo é prova disso. O que é que se guarda nas suas estantes? De que é que tratam os livros proibidos pela Inquisição? E porque é que devemos olhar para ela como uma bolha no tempo?
Quem ali entra não pode deixar de ficar impressionado com o que vê. A sala é enorme e as paredes estão cobertas por dois andares de estantes carregadas de livros cuidadosamente arrumados, com um varandim de ambos os lados e no topo. Ao todo são cerca de 30 mil volumes que vão do século XV ao século XIX, a maioria com encadernações em pele e inscrições a dourado, que cobrem todas as áreas do conhecimento, da medicina à religião, da história à arquitetura e à poesia, passando pela astronomia, a cosmologia, a literatura de viagens, a biologia e o esoterismo. No topo sul está a magnífica coleção de Bíblias, no oposto as obras das chamadas ciências puras. Cada coisa no seu lugar.
Olhando para o chão de várias cores, brilhante de tão polido, não é de estranhar que os príncipes D. Carlos e D. Afonso aproveitassem para ali andar de patins quando a mãe, Maria Pia de Sabóia, entrava naquela sala. Diz-se até, conta a bibliotecária, que o mais velho dos filhos de D. Luís I chegou a ser apanhado a ler um volume sobre civilizações clássicas com gravuras de mulheres seminuas. “Se foi castigado ou não, não sabemos porque não há registo”, brinca Teresa Amaral.
Tida como uma das bibliotecas históricas mais importantes (e cenográficas) do mundo, a chamada Casa da Livraria de Mafra associa-se aos festejos dos 300 anos do lançamento da primeira pedra da basílica deste palácio-convento que D. João V (1689-1750) mandou construir com uma série de visitas guiadas e conferências que já começou e se prolonga até ao fim do ano. A ideia, explica o diretor do monumento que quer ser património da humanidade, é convidar as pessoas a visitarem este espaço que muitas não conhecem, protegido por uma colónia de morcegos residente que come as traças e outros insetos responsáveis pela destruição do papel e da madeira das estantes rococó, e, ao mesmo tempo, lembrar aos investigadores que há ainda muita coisa que não sabemos sobre este acervo que permite, como poucos, estudar uma época.
“A biblioteca de Mafra é verdadeiramente uma encomenda joanina, muito mais do que a de Coimbra”, diz Mário Pereira, o diretor. “Coimbra tem estantes do tempo do rei, mas recebe livros ao longo de séculos porque está associada à universidade. A biblioteca de Mafra é como uma bolha no tempo, está circunscrita, congelada.”
A bibliotecária reconhece que não se sabe ainda quantos volumes teria na sua origem, mas o que é certo que, na década de 1750, 80% dos que hoje vemos já lá estava. Os 30 mil volumes– ninguém se atreve a contabilizar as obras que ali estão guardadas, porque um volume pode chegar a ter 100 lá dentro – chegaram praticamente todos num intervalo de 30 anos.
O facto de ter sido construída “quase de um fôlego” dá-lhe uma “singularidade extraordinária” e permite perceber de que forma se segmentava o conhecimento na primeira metade do século XVIII, que áreas se privilegiavam e o que era, já na altura, considerado valioso do ponto de vista bibliográfico, defende Tiago Miranda, investigador da Universidade de Évora que está a estudar as marcas que apresentam os livros da biblioteca do palácio para perceber de onde vieram e assim traçar um retrato mais preciso deste acervo mandado reunir pelo monarca.
“O facto de não encontrarmos no convento documentos sobre a constituição da biblioteca diz-nos que, provavelmente, os cérebros que lhe deram origem não estavam aqui”, acrescenta, explicando que a casa da livraria é um subproduto da grande biblioteca dos oratorianos [D. João V, que não tinha um confessor jesuíta como seria de esperar, aposta muito na Congregação do Oratório, grande concorrente da Companhia de Jesus e, tal como ela, especialmente vocacionada para o ensino] que haveria de dar origem à do Palácio das Necessidades.
Muitos dos volumes de Mafra têm marcas de uso – pingos de cera, sublinhados, notas à margem – mas outros, diz a bibliotecária, parecem não ter sido sequer abertos. “Nas bibliotecas da Ajuda e de Coimbra os livros são muito manuseados, mas aqui não”, concorda Tiago Miranda, falando em seguida de uma das preciosidades da casa, o Erário Mineral, um dos primeiros tratados de medicina escritos em língua portuguesa, publicado pela primeira vez em Lisboa em 1735. Esta obra resultante das experiências médicas de Luís Gomes Ferreira, que tinha uma profissão que hoje parece, no mínimo, curiosa, a de cirurgião-barbeiro, na capitania de Minas Gerais, inclui um importante inventário dos medicamentos usados na época, muitos deles de origem indígena, e um relato detalhado das terríveis condições em que viviam os escravos. “Este é um livro raríssimo e Mafra tem dois exemplares. Um deles parece que saiu ontem da prensa, é fantástico.”
Comprar o que há de melhor
Explica Teresa Amaral que Mafra se inscreve num movimento europeu de constituição de bibliotecas com diretrizes muito específicas inscritas em documentos que dizem que temas são imprescindíveis e que autores de referência se devem comprar. “O rei manda cartas a vários dos seus embaixadores para se informar como estão a ser feitas bibliotecas noutros países e depois ordena que se compre o que de melhor há nos grandes mercados livreiros da época, em França e na Holanda, países onde são leiloadas bibliotecas inteiras com fundos importantes e onde os negociantes têm acesso a verdadeiras raridades.” Seja no domínio das edições, seja no da ourivesaria, da escultura ou da arquitetura, D. João V é exigente e vê as encomendas internacionais como uma espécie de recurso diplomático, como um instrumento de promoção de Portugal perante outras cortes europeias, com as quais parece estar sempre disposto a competir.
Mafra faz, também, parte de um conjunto de bibliotecas em que D. João V investe e que inclui, além da de Coimbra, as dos palácios das Necessidades e da Ribeira, esta última, com uns estimados 60 mil volumes, desaparecida com o terramoto de 1755. Não se conhecem até hoje, diz Tiago Miranda, os planos do monarca para esta rede, embora os acervos de Mafra e das Necessidades, por exemplo, tenham muito em comum e seja evidente o cuidado que houve nas compras feitas. “Muitos dos livros de Mafra já são de coleção desde o século XVI”, acrescenta este investigador que é hoje capaz de identificar alguns dos seus anteriores donos, destacando entre eles duas importantes figuras da corte de Luís XIV, o poderoso Jean-Baptiste Colbert, o ministro de Estado, e Nicolas Fouquet, o nobre a quem o rei sol entregou a pasta das Finanças. “As bibliotecas em D. João V não são só uma questão de saber, mas de prestígio, de poder até.”
Os livros de Mafra estão referenciados em dois catálogos, um de 1755, feito por Frei Manuel de Cristo, e outro de 1819, de Frei João de Santa Anna, obra colossal de 12 mil páginas dividida em oito grossos tomos com a descrição dos 30 mil volumes que compõem esta biblioteca régia, que recebe fundos do convento e que serve, também, os que frequentam os Reais Estudos que ali passam a funcionar na década de 1730.
O acervo, que até aí estava separado em duas salas, só chegou ao seu lugar definitivo em finais dos anos 1770, diz a bibliotecária, elogiando o trabalho de João de Santa Anna: “É incrível a precisão deste catálogo – ele diz-nos em que estante está cada volume, a ‘casinha’ que ocupa nessa estante e a posição que tem dentro dessa ‘casinha’. Nem sempre se acham os livros porque podem ter sido levados ou simplesmente estar mal arrumados, mas na maioria das vezes estão onde Frei João de Santa Anna diz que estão.”
E entre os tesouros deste catálogo estão, por exemplo, um livro de 1599 do naturalista italiano Ulisse Aldrovandi (1522-1605), um dos primeiros a descrever o tucano; a obra Hesperi et phosphori nova phaenomena (1728), de Francesco Bianchini (1662-1729), astrónomo e filósofo italiano de quem D. João V era mecenas; uma primeira edição das obras completas do dramaturgo português Gil Vicente (c.1545-c.1536), de 1562; um importante núcleo de Livros de Horas de origem francesa, em pergaminho, assinalando a transição do manuscrito para o livro impresso; um volume com as obras de Francesco Petrarca (1304-1374) que muito encantava o escritor Vasco Graça Moura, que tanto traduziu este poeta italiano; uma edição do século XVI das teorias do filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C) e aquela que é considerada a primeira enciclopédia (de Diderot e D’Alembert), embora incompleta.
Mas há também “raríssimos” tratados de arquitetura, uma curiosa gramática sino-latina, partituras de compositores como Marcos Portugal e João José Baldi, especialmente criadas para o conjunto de seis órgãos da basílica, único no mundo, e uma coleção significativa de incunábulos (obras impressas até 1500) em que se destaca, por exemplo, a chamada Crónica de Nuremberga (1493), do humanista e cartógrafo Hartmann Schedel (1440-1514), um dos primeiros livros impressos da história e um dos maiores volumes ilustrados da época.
A Bíblia Complutense (1520), a primeira edição poliglota impressa (aramaico, hebraico, grego, latim), é a obra que a bibliotecária Teresa Amaral destaca. “Está dividida em seis volumes e a maioria das bibliotecas que a tem, e são poucas, só tem os cinco primeiros. Nós temos também o último. É uma obra importantíssima no Renascimento.” O diretor do monumento concorda, mas prefere chamar a atenção para coisas menos conhecidas, como La galerie agréable du monde, obra em 66 volumes impressa na Holanda a partir de 1690 (até 1730) e composta por grandes estampas. “Mostra o mundo e os seus povos, começando com o mapa de cada região com os locais mais importantes, como as cidades e as fortificações, e passando também pela representação dos trajes tradicionais... É muito curiosa”, diz Mário Pereira, apontando para uma estante onde estão arrumados volumes de cultura clássica, com destaque para os livros de escultura e os tratados de arquitetura. “Ainda há aqui muita coisa por descobrir, certamente muitas surpresas. Esta é a menos estudada das bibliotecas joaninas."
Os livros proibidos
A biblioteca de Mafra mantém ainda hoje a mesma organização que tinha no século XVIII. São 85 estantes no piso superior e 54 no inferior. Nas número 49, 50 e 51, no primeiro andar e com “Miscelânia vária” escrito no local habitualmente ocupado pelo tema, estão os chamados livros proibidos, cerca de 800 volumes, embora haja obras condenadas pelo Índex (lista de livros cuja circulação tinha de ser controlada pela Inquisição) espalhados por toda a biblioteca, garante Teresa Amaral.
“Os livros proibidos são comuns a todas as grandes bibliotecas da época e ter autorização papal para os incluir nas coleções era um sinónimo de grande prestígio”, explica, referindo-se à bula de Bento XIV, de 1754, que institui a biblioteca e a autoriza a ter estes volumes. São de áreas tão diversas como a cosmologia, a astronomia, a astrologia, a alquimia, mas também há os chamados “heréticos ou de controvérsia”, os de ciência política e os que abordam temas relacionados com a organização social e o absolutismo, continua Amaral.
Entre os proibidos mais importantes estão, por exemplo, uma raríssima edição do Corão; Metoposcopia, um manual que pretende ensinar a ler a personalidade de cada um a partir das marcas e linhas do seu rosto; e obras de nomes como Martinho Lutero, teólogo alemão e figura central da Reforma Protestante, e Cornelius Aggripa, intelectual do Renascimento ligado à magia e ao esoterismo que haveria de se transformar numa das grandes referências da alquimia. São, na sua maioria, volumes de altíssima qualidade produzidos nos séculos XVI e XVII, explica o diretor do palácio, falando de obras do humanista francês Michel de Montaigne (1533-1592) e de Gil Vicente.
Os livros, detalha a bibliotecária, estavam sujeitos a um sistema de proibição que incluía várias “classes”, que podiam impedir a leitura de toda a obra de determinado autor ou limitar-se a vedar o acesso a uma frase dentro de um texto. Giordano Bruno, filósofo e teólogo italiano condenado à fogueira pela Inquisição, acusado de heresia por defender, entre outras coisas, que a Terra girava à volta do sol, está entre os que ocupam as estantes 40 a 51.
“Pensar que em Mafra, em meados do século XVIII, todo este pensamento está aqui é incrível. E pensar que tudo isto sobreviveu à extinção das ordens religiosas, às Invasões Francesas e à República também é”, conclui o diretor.
por Lucinda Canelas in Jornal Público | 21 de abril de 2017
Fotografias de Nuno Ferreira Santos
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público