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David Fonseca tirou Bowie do pedestal
Para celebrar-lhe a vida e negar-lhe a morte, David Fonseca montou um disco de versões que conta com vozes como as de Camané, António Zambujo, Márcia, Ana Moura ou Tiago Bettencourt.
Na altura do lançamento do seu último álbum, Futuro Eu, David Fonseca decidiu boicotar o habitual plano de marketing para furar o “mainstream media”. Estava farto de responder mais vezes se sabia cozinhar ou andar de bicicleta do que a questões artísticas. Lembrou-se então de aceitar esse jogo da massificação adotando os códigos da cultura mainstream, mas segundo as suas próprias regras. E, durante 24 horas, fechou-se numa casa onde foi a personagem e o protagonista do seu próprio reality show. “Aquela ideia só sobreviveu porque entre pensar nela e ser feita demorou apenas cinco dias”, recorda hoje ao Ípsilon. Se cada pormenor tivesse sido discutido e obedecesse a um plano minucioso, o músico desconfia que acabaria espezinhada e descartada naquele que é o destino habitual para as ideias absurdas. “A vitória dessa ideia”, acredita, “não foi ser boa ou má, mas ter acontecido. O que não é muito comum, em especial no nosso país, porque somos muito maus connosco e sempre que há algo menos tradicional pomo-nos a pensar se não haverá quem diga que somos uns tipos muito parolos ou muito pimba. Temos horror disso.”
Quando Paula Homem, diretora da Sony Music portuguesa, convidou David para um almoço e lhe propôs fazer algo com o reportório de David Bowie, três meses passados sobre a morte do músico, foi essa campainha do absurdo que soou com estridência e o levou a rejeitar de imediato. Mas no caminho para casa já não conseguia pensar em mais nada, começou a fazer uma lista mental das canções que gostaria de trabalhar e concluiu que devia ser mais coerente com a sua crença de que se vive menos ao ceder repetidamente a pruridos e receios dos julgamentos de terceiros. E deu por si a pensar: “Tenho de contrariar isto, porque estou a endeusar as pessoas, os reportórios. Estou a ser o tipo tradicional, a vestir a gravata e o casaquinho, a não brincar com coisas sérias – e não tem de ser assim.” A proposta inicial, lançada ao almoço, de convidar outras vozes para partilhar a heresia consigo, não demorou a tornar-se irresistível.
Antes sequer de ligar a Paula Homem e comunicar que voltava atrás na recusa, David resolveu experimentar meter as mãos no universo sagrado das canções de Bowie pela calada, só para ver o que acontecia e se a experiência se revelava mais divertida do que penosa. Se a culpa de estar a desmembrar as canções de Bowie se sobrepusesse ao prazer de imaginar-lhes uma nova vida, teria sempre a opção de as enterrar longe de quaisquer ouvidos, ainda a tempo de apagar todas as provas. Mas houve algo que se quebrou quase de imediato assim que arriscou pegar em Blue jean. E aquilo que se quebrou foi, provavelmente, o pedestal em que David (Fonseca) tinha David (Bowie). Como se descobrisse que a canção era, afinal, feita de carne e osso, e não algo celestial e etéreo.
Começar por Blue jean era uma questão de justiça na história pessoal do encontro entre os dois. Foi a primeira canção de Bowie que David ouviu, com 12 ou 13 anos, e logo então ficou siderado na figura do cantor. Era uma altura em que muita da música surgia de surpresa nos ecrãs da limitada oferta televisiva do país, pelo que o primeiro impacto deu-se ao testemunhar o ar excêntrico daquele cantor que simbolizava uma infinita liberdade de ser e fazer o que lhe apetecesse em palco – diante do seu semelhante, um outro Bowie de fato e gravata, mostrado como sedutor desajeitado e desenxabido servo de uma imagem de escalada social.
Foi nesses anos 80 de ascensão, glorificação e romantização da imagem do jovem executivo de sucesso, fabricado e replicado aos milhares como idílio americano capitalista, que Bowie parodiava e reduzia a fanicos com elegância no vídeo de Blue jean, que David Fonseca se cruzou com o exemplo perfeito do que significa(va) ser um artista pop: mudar de pele quantas vezes fosse preciso, farejar o ar dos tempos e nunca perder o comboio da vanguarda criativa, transformar em canções partilháveis com multidões o pulsar da contemporaneidade, investindo-a em permanência de uma ideia de novidade e urgência. David não chegou a Bowie através dos clássicos dos anos 60 e 70 que sabe serem os eleitos dos “puristas”. Não conheceu o artista-camaleão com a ascensão e morte da personagem Ziggy Stardust, com as soberbas insinuações jazz, soul e funk derramadas sobre o glam rock de Diamond Dogs ou com o borbulhar experimentalista da trilogia berlinense criada com Brian Eno e Tony Visconti na segunda metade da década de 70.
“Conheci o Bowie através das coisas mais folclóricas, do Blue jean, Let’s dance ou China girl”, diz. “O Bowie que passava na rádio e na televisão não era o do Space oddity.” Para alguém acabado de aterrar na adolescência, a fase mais escancaradamente pop e dançável do músico inglês era também de um apelo muito mais imediato do que os discos “incríveis e mais complexos” que ficavam para trás no seu percurso. “Mas confesso que a fase de que mais gosto no Bowie é até a mais recente, porque foi aquela que vivi na idade adulta”, admite. “Um dos discos da minha vida é o hours... [1999] Ouvi-o repetidamente quando saiu, apanhou-me quando estava nos Silence 4 e fez-me absoluto sentido.” O ascendente do disco sobre si deu-lhe depois várias pistas para concluir que se instalara de forma permanente na sua vida.
Como no início
David Fonseca ouviu uma única vez Blue jean antes de começar a trabalhar na sua versão do tema editado originalmente em Tonight (1984), o sucessor do desmesurado sucesso de Let’s Dance. Uma única vez para tirar notas sobre a estrutura da canção e a partir daí tentar esquecer o mais possível o original, sabendo antecipadamente que a natureza errática da memória havia de levá-lo a recriar caminhos que, na verdade, nunca tinham existido. Assim, podia descobrir-se na canção, em vez de se limitar a fazer um decalque daquilo que Bowie criara. Na verdade, tratou-se de repetir o processo do seu início de carreira.
O primeiro momento de visibilidade dos Silence 4, na compilação Sons de Todas as Cores, deu-se com a versão de A little respect, dos Erasure. “Na altura”, recorda o músico, “não tínhamos acesso às coisas da mesma forma que temos hoje. Eu conhecia a canção dos Erasure, mas não tinha o disco, não tinha uma cassete, nada. Ouvi-a na rádio e foi com a memória que tinha da canção que fiz a versão. É exatamente isso que faço com o David Bowie.” Foi assim que, num tempo recorde, nasceu Bowie70, álbum integralmente tocado por David – é ele o guitarrista, o baterista, o baixista e o pianista, é ele a banda – em duetos com vários cantores (Tiago Bettencourt, Manuela Azevedo, Afonso Rodrigues, António Zambujo, Camané, Marta Ren, Rita Redshoes, Márcia, Ana Moura, Aurea, Rui Reininho e Catarina Salinas) que foi fazendo corresponder aos 13 temas que sobraram de uma lista inicial de 25.
Tais correspondências rapidamente se estabeleceram com o andamento dos arranjos. Ao começar por Blue jean, a canção com uma ponte mais óbvia com o seu próprio universo musical, e mascará-la de um tom de rock cheio de soltura e sensualidade, surgiu-lhe imediatamente a voz de Catarina Salinas. Pensou assim a versão em função da forma como sabia que a cantora dos Best Youth faria, cantando “muito próximo do microfone”. As versões sucedem-se, surpresa atrás de surpresa, com um casting que despreza qualquer lógica que não seja “a ideia de juntar pessoas tão diferentes num disco só”. E, na verdade, estavam todos juntos numa lista de intenções a que David só deu uso depois de todos os arranjos estarem concluídos. Toda a maqueta de Bowie70 estava pronta antes do primeiro contacto com os cantores.
Em casos com o de Camané, no entanto, Fonseca “tinha quase a certeza de que ia dizer que sim”. O fadista, com quem partilhou o palco no projeto Humanos e que colocara já a cantar Let down, dos Radiohead, num espetáculo com Mário Laginha, “é um homem de aventuras”. “Space oddity é das canções mais emblemáticas do David Bowie e, portanto, escolhi aquela que é a minha voz masculina favorita de sempre”, explica. Ao Ípsilon, Camané confessa ter sentido algum receio por se tratar de “outro registo” e de não possuir “um inglês fantástico”. Mas Bowie era já um velho conhecido e Space oddity era uma canção de que gostava pela “metáfora de alguém que está perdido e tenta encontrar quem o possa guiar”. Ao trazer os seus sincopados típicos para a interpretação, Camané transforma um exemplar perfeito do cruzamento entre folk e psicadelismo ingleses dos anos 60 naquilo que seria um clássico do cancioneiro norte-americano. David parece ter preparado um instrumental para a voz de Paul McCartney. Camané canta-o belissimamente como se fosse Cole Porter.
Presente
É também isso que Camané sente em relação a uma das suas canções preferidas de Bowie, Absolute beginners: “Pode ser pop ou jazz, pode ser tudo”, elogia. Em Bowie70, é folk britânica “setentista”, com aquela voz sem gravidade que encontramos em Nick Drake ou Tim Buckley, aqui interpretada por Tiago Bettencourt num dos mais inspirados momentos do álbum. Outro desses momentos cabe a António Zambujo, numa primorosa versão de Life on Mars, que o cantor aborda como se até pensasse que fosse dele. E não é o caso. Zambujo está entre aqueles que só mergulhou mais a fundo na obra de Bowie com a morte do ícone pop/rock e preparou a gravação com a rotina de uma semana de aulas. “Acordava de manhã, dava o pequeno-almoço ao meu filho e todos os dias de manhã ouvíamos a música. Depois íamos trauteando a caminho da escola.” Marte não era o único elemento estranho desta versão para Zaumbujo, uma vez que “cantar em inglês, a obra do David Bowie e a forma de o David produzir os discos” estavam todas no saco das novidades.
Não escondendo os muitos amores musicais que transporta para cada canção, Fonseca fez de Let’s dance uma canção que teria assentado na perfeição a Ryan Adams, tirando-lhe a pista de dança e pedindo a Afonso Rodrigues uma “abordagem muito americana e despreocupada” que antecipa poder escandalizar quem crescer a dançar o tema no Tokyo nos anos 80. “O papel de uma versão”, justifica, “é pô-la num sítio diferente em que valha por si só.” É o que acontece também com The man who shold the world na voz de Ana Moura, que montou a pensar em Nick Cave, e a querer aproveitar “o lado mais negro, mais duro e mais tradicional, fortíssimo” na fadista; ou com This is not America, entregue a Márcia.
O tema cantado por Márcia, à semelhança do que acontece com Lazarus, único que David assumiu enquanto vocalista, denuncia uma das suas obsessões enquanto ouvinte: o equilíbrio entre classicismo das cordas e a eletrónica arrojada que é assinatura dos Massive Attack. Mas This is not America, mais do que qualquer outra canção do disco, foi escolhida também pelo seu peso político. Daí o convite ter sido dirigido para uma cantora que David sabe ser “muito aguerrida politicamente” e ter concebido um arranjo com sugestões marciais, em que cada vez que se ouve “will die” toda a canção se desfaz, para se reerguer em seguida.
Sem mencionar o nome do Presidente dos Estados Unidos, Márcia acredita que “aquilo que se passa hoje em dia é tão flagrante, esta segregação e esta espécie de apartheid, que a analogia com a II Guerra Mundial é um caminho muito direto”. E, na sua interpretação, “a subida de tom a meio da música parece um acordar, como se dissesse que aquilo que está a acontecer não é nada daquilo que sonhámos. Parece-me muito adequada aos dias de hoje.” As canções, concorda David Fonseca, não têm qualquer uso se não pertencerem ao presente. Bowie70 deve a sua numeração ao 70º aniversário do nascimento do músico que se cumpre em 2017. E é uma forma de David Fonseca continuar a celebrar-lhe a vida, negando-lhe a morte.
por Gonçalo Frota, in jornal Público | 14 de fevereiro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público