Notícias
Uma nova oportunidade para conhecer Almada Negreiros. Completo
Desde 1993, no Centro Cultural de Belém, que o trabalho do artista não tinha este destaque.
Oito núcleos de obras, mais de 400, arrumados sem obedecer a cronologias, desfiam o artista que pinta, que escreve, que está no cinema ou no teatro. Abre ao público na sexta-feira.
A última vez que Almada Negreiros foi o protagonista de uma mostra antológica da sua obra, a curadora da exposição que esta sexta-feira abre ao público na Fundação Calouste Gulbenkian ainda não estava na universidade. Desde 1993, no Centro Cultural de Belém, que o trabalho do artista não tinha este destaque.
Quebra-se um jejum de 24 anos com a seleção de Mariana Pinto dos Santos de mais de 400 obras do artista, repartidas pela galeria principal e na do piso inferior da instituição. Uma exposição longa para ver com tempo mesmo que a curadora garanta que não tentou ser "exaustiva". Separadas fisicamente, as galerias unem-se na grande parede do foyer do Grande Auditório nas duas tapeçarias que replicam os frescos da gare marítima da Rocha do Conde de Óbidos, um dos trabalhos polémicos de Almada Negreiros.
Varinas africanas, homens marcados pelo trabalho, a partida dos emigrantes, saltimbancos que pedem esmola, figuras contemporâneas de bloco e caneta na mão foram retratadas por Almada Negreiros naquela que seria uma das portas de entrada na cidade de Lisboa, a meados dos anos 50. "Houve uma reação negativa por parte da gente de Salazar", explica Mariana Pinto dos Santos. E, no entanto, como a própria explica, o trabalho foi-lhe entregue sem tema e em total liberdade. "Almada foi trabalhando os temas das encomendas mantendo-se fiel às convicções".
Conhecem-se as suas críticas em entrevistas e nas suas performances. Como foi possível entregarem esse trabalho a um artista crítico do Estado Novo? A pergunta impõe-se.
Mariana Pinto dos Santos conta a história com cuidado de cientista. Duarte Pacheco, que entrega a obra a Pardal Monteiro, acorda verbalmente com o pintor entregar-lhe o trabalho.
Compromete-se a entregar-lhe o segundo trabalho, pagando melhor do que no primeiro. O ministro das obras públicas morre entretanto. "É um momento muito confuso em que Almada tem de trazer testemunhas do acordo verbal", explica.
O então diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, João Couto, um nome muito prestigiado "salva" Almada Negreiros com as suas referências positivas ao trabalho de cinco anos do pintor e muita despesa nas contas do Estado. "Estamos a viver uma época em que Portugal quer mostrar abertura política, e, isto é especulativo, mas estamos em 1948 e já tinha sido destruído os frescos de Júlio Pomar no cinema Batalha, no Porto. Seria demais para a imagem externa a destruição de mais uma obra por razões políticas", avança Mariana Pinto dos Santos, como hipótese, durante a visita à exposição.
José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno, título escolhido para a exposição, interpreta uma frase do artista. Ele, o homem da revista Orpheu e da conferência futurista, dizia que ser moderno era mais do que um figurino, era uma maneira de ser. Aqui, Mariana pinto dos Santos acrescenta um sentido. Esta é uma maneira de ser moderno entre outras, ideia central que vem trabalhando como historiadora de arte. Rejeita essa visão da história da arte que diz que o modernismo nasce e cresce em Paris. Não existe um moderno, existem vários, defende.
"O centro, entre aspas, é feito de periferias", considera. "A periferia vem com uma narrativa de atraso associada a essa distância", defende. "E essa narrativa do atraso é ela própria moderna", completa. "Quando nos apercebemos dos mecanismos de construção, percebemos que outra construção é possível", considera.
Almada Negreiros (São Tomé e Príncipe,1893 - Lisboa, 1970) passa por Paris ao mesmo tempo que outros artistas portugueses, mas deu-se melhor em Madrid, onde decora uma cinema e faz ilustrações para uma das primeiras manifestações de cinema. A história perdeu-se, o libreto ficou e será tocado, com as imagens em fundo, em março pela Orquestra Gulbenkian.
O artista regressa a Portugal em 1932, em vésperas de chegada ao poder do Estado Novo. Pelos oito núcleos da exposição, arrumados sem obedecer a cronologias, a exposição desfia, e frisa, as muitas práticas de Almada Negreiros, incluindo as suas performances, os seus autorretratos e, na galeria do piso inferior, o seu contacto com o cinema, o humor e as artes gráficas. Desenha o genérico de A Canção de Lisboa, desenha os cartazes (há dois na exposição, do Museu do Teatro) e numas férias de verão, em Moledo, desenha uma lanterna mágica para entreter os convivas.
Esse conjunto de 64 desenhos, iluminados, é das peças que atrai as atenções na exposição. Mariana Pinto dos Santos conta a história desse "filme fingido". Os desenhos, que mantêm "o traço humorístico", em papel de seda, foram feitos em 1934, primeiro ano do seu casamento com Sarah Afonso, quando passam o verão em Moledo em casa do surrealista António Pedro. Os desenhos ilustram um naufrágio na Ínsua, após um piquenique. Uma das primeiras imagens introduz de imediato a ironia. A um selo de aparência oficial junta uma frase :"visado por ti e por mim".
A exposição abre com uma das mais conhecidas obras de Almada Negreiros: o retrato 2 metros por 2 metros pintado para o restaurante Irmãos Unidos, que está agora na Casa Fernando Pessoa, e foi emprestado para esta exposição. Mesmo em frente, uma obra com as mesmas dimensões, uma das suas muitas pesquisas em torno da geometria. Entre eles, um estudo para o painel Começar, que dá as boas vindas a todos os que chegam à Gulbenkian. Do outro lado da galeria, o painel de dimensões um pouco maiores e cores mais trabalhadas em que também pinta o escritor. Outra encomenda da Gulbenkian, em 1954.
por Lina Santos, in Diário de Notícias | 31 de janeiro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias