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Miguel Seabra ainda pergunta o que faz aqui 25 anos depois
O ator e encenador tem 52 anos e fundou o Meridional há 25. Uma história de perseverança com o Belenenses pelo meio, para recordar no dia em que volta ao palco "Al Pantalone".
O que fazemos nós aqui? A pergunta foi feita pela primeira vez, num italiano macarrónico, há 25 anos, no primeiro espetáculo do Teatro Meridional. Chamava-se Ki Fatxiamu Noi Kui? Mas a pergunta continua a fazer sentido hoje. Dos quatro fundadores da companhia resta um, Miguel Seabra. O que faz ele aqui, 25 anos depois, no "melhor teatro de Poço do Bispo", como costuma dizer na brincadeira? Este ano, faz-se isto: celebra-se e pensa-se. O Meridional vai repor seis produções - a começar hoje com Al Pantalone - e terminar o ano com uma estreia que há de ser o resultado disto tudo.
Para já, o ator e encenador está a deixar crescer a barba (outra vez) para a interpretar o professor de A Lição, de Ionesco: "A vida empurra-te muito para a frente, ter que pagar os ordenados, cuidar dos filhos e dos mais velhos. Não tenho muito tempo para responder a perguntas difíceis mas constantemente me pergunto o que faço aqui. Qual é o meu incentivo?"
Conhece o mundo e a ti mesmo
Miguel não era daquelas crianças que sonham com o palco. Gostava de fazer imitações mas era tudo. Quando lhe perguntamos o que o trouxe até aqui, fica uns segundos a pensar. "Três coisas", anuncia. Primeiro, a educação liberal dada pelos seus pais que nada tinham a ver com as artes nem o terão levado muito ao teatro mas proporcionaram-lhe viagens e "abertura de cabeça". Segundo, a formação de base, dos três aos dez anos, no Jardim Infantil Pestalozzi, em Lisboa. Um oásis no "deserto que era o pensamento pedagógico durante a ditadura". Uma escola que ensina "a arte como pensamento global, integrado, o respeito pela diferença, o permitir experimentar, errar, experimentar, e refletir." E, terceiro, mas não menos importante: é do Belenenses. Rimo-nos mas a piada é para ser levada a sério, como ele explica: "Eu sou competitivo, mas o Belenenses não é um clube que vence muitas vezes. E isso ajudou-me a lidar com a relatividade do que é perder e ganhar."
Antes de chegar ao teatro, Miguel Seabra andou pela economia, pela arquitetura, pela música. Andava à procura do seu lugar. Encontrou-o nesta arte que junta a gestão, a conceção de espaços, a criação e as pessoas. - "Eu preciso de pessoas". Neste percurso, sublinha duas grandes influências: o músico Carlos do Carmo, um amigo que não só lhe mostrou música como ensinou a ética profissional; e o encenador João Mota. "Ter o João Mota como professor no 1º ano do Conservatório é um privilégio imenso. É impagável", diz.
Um teatro do ator
A meio do curso, foi a Itália fazer um estágio em commedia dell"arte com Antonio Fava. "É lá que encontro dois espanhóis e um italiano com quem me dou muito bem. E na despedida dissemos aquela frase muito comum: era giro um dia fazermos um espetáculo juntos." Achamos que nunca se concretiza mas desta vez a história foi diferente. "Um ano depois, a 21 de julho de 1992, que é a nossa data de fundação, eles aterram em Lisboa para criarmos o nosso primeiro espetáculo."O tal Ki Fatxiamu noi Kui? estreou-se no festival de Casablanca, em Marrocos, onde ganhou o prémio de melhor espetáculo. Decidiram continuar. A ideia era, além da commedia dell"arte, recorrer a outras técnicas teatrais do Mediterrâneo como o contador de histórias ou o clown.
O italiano só esteve nesse primeiro projeto. Depois, a companhia ficou "um barco ibérico", com "espetáculos bilingues assente no desempenho do ator como único elemento indispensável.
Muito despojamento cénico, apelo à imaginação, economia de meios, simplicidade, rigor, subtileza. E um teatro próximo das pessoas, quase de contacto direto." Essas são as principais características do trabalho da companhia ao longo destes 25 anos. Mesmo quando, em 1999, se realiza o "Tratado de Tordesilhas teatral" e o Meridional fica só português. Mesmo com a entrada de Natália Luiza, que tinha acompanhado de perto, quase na sombra, todo o percurso, e que assume desde então a codireção artística do grupo.
Do Mediterrâneo, o olhar passa para a lusofonia - África e Brasil começam a aparecer com frequência nos espetáculos, por exemplo na série Contos em Viagem. Mas também um olhar para nós e para o país (Para Além do Tejo, 1974, Por Detrás dos Montes. Em 2005, o espaço de Poço de Bispo dá-lhes, finalmente, a casa que tanto ambicionavam. E permite a consolidação do projeto. "No ano passado fizemos quase 100 representações nossas de quatro espetáculos e 50 apresentações de 11 projetos que acolhemos", diz o diretor, orgulhoso. Numa sala que leva 80 espectadores, a média é de 70 lugares ocupados.
Aqui e agora a olhar para a frente
No espaço do Meridional cheira a café e a bolos, há mantas para as pernas e sofás antigos. Mas no palco a música e a poesia (a beleza que marca todos o seu trabalho) podem andar de mão de dada com a crítica social e os murros no estômago do espectador. "O teatro é a arte do presente, é do aqui e agora. E é um espaço onde os homens se podem encontrar com os homens." Miguel Seabra gosta particularmente do conceito budista de "impermanência", essa ideia de que devemos abraçar a mudança.
Fez na semana passada 52 anos. Tinha portanto 27 quando fundou o Teatro Meridional. Tinha 30 quando sofreu um AVC. Esteve dez dias em coma, teve de reaprender a falar, a mover-se, a viver sem a ajuda do seu braço direito. Perdeu parte de si mas nunca perdeu a esperança. Três anos depois voltou a enfrentar o público. "É preciso ter um pouco de inconsciência, de coragem, de auto confiança. E estares bem contigo no mundo. Estares deficiente em palco é um desajuste com a normalidade. Há ali qualquer coisa que é feia. Tive que lutar contra esse estigma. Mas eu sei estar a perder. Lá está o Belenenses", ri-se. "E também ser teimoso, perseverante e vaidoso, como qualquer capricórnio." Miguel Seabra pode ser isso tudo, mas é acima de tudo um ator. O que faz ele aqui? Para saber a resposta vão vê-lo em O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão, um dos espetáculos que vai ser reposto. Está lá tudo.
AGENDA:
1. Al Pantalone, de Mário Botequilha (18 janeiro - 5 fevereiro)
2. A Lição, de Ionesco (22 fevereiro - 12 março)
3. António e Maria, a partir da obra de António Lobo Antunes (30 março - 9 abril)
4. O Sr. Ibrahim e as Flores do Corão, de Éric-Emmanuel Schmidt (10 - 28 maio)
5. Contos em Viagem - Cabo Verde (12 - 30 julho)
6. As Centenárias, de Newton Moreno (13 setembro - 1 outubro)
Teatro Meridional, Rua do Açúcar, 64, Lisboa
por Maria João Caetano, in Diário de Notícias | 18 de janeiro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias