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Já de portas fechadas, a Ulmeiro candidata-se a loja com história

A histórica livraria fechou no último dia de dezembro, depois de 47 anos. Ontem, a Junta de Freguesia de Benfica propôs uma solução para a manter na Avenida do Uruguai.

Reinaldo Rodrigues/ Global Imagens Reinaldo Rodrigues/Global Imagens Reinaldo Rodrigues/ Global Imagens

 

Onde estava Zeca Afonso no 25 de Abril? Em que livraria portuguesa esteve Lawrence Ferlinghetti, o editor da beat generation e o homem da livraria City Lights, de San Francisco? Em que livraria tocou Carlos Paredes? Ali mesmo, no Espaço Ulmeiro. A livraria onde, à hora em que o visitamos, José Ribeiro atende o telefone e aponta o nome dos livros que uma senhora procura.

O telefone continua a tocar e a página de Facebook está ativa, mas as portas da histórica livraria de Lisboa estão fechadas desde o último dia de dezembro, 47 anos depois da sua abertura. E se antes já era difícil circular por entre as montanhas e pilhas de livros que ocupam o interior do número 13 da Avenida do Uruguai, na freguesia lisboeta de Benfica, agora é muito mais. "As pessoas vieram cá deixar estes livros todos, acham que assim nos podem ajudar, que pode fazer a diferença", explica Lúcia, a mulher de José Ribeiro, enquanto abrimos caminho entre cadernos, quadros, livros, e o gato Salvador. São quase tradição, as doações de pessoas que - às vezes de forma anónima e durante a noite - doam os seus livros à Ulmeiro. Mas não são esses que a vão salvar, como não foi a visita de Marcelo Rebelo de Sousa em fevereiro - quando a livraria já corria o risco de fechar portas.

Todavia, ontem José Ribeiro esteve reunido com a presidente da junta de freguesia de Benfica, Inês Drummond, que propôs a candidatura da livraria ao programa da Câmara Municipal de Lisboa (CML) Lojas com História, que já classificou assim espaços como A Brasileira ou a livraria (única do programa) Ferin. "O objetivo é garantir e salvar as lojas que ao longo do tempo vão perdendo a capacidade de se irem mantendo", diz a presidente ao DN.

"O encerramento é apenas deste espaço físico", garante o dono da livraria, explicando que a renda, outrora na casa dos 200 euros - "reconheço que era baixa" - está atualmente próxima dos mil euros. "Há um prejuízo acumulado que tem muitos anos. Eu às vezes digo que nós nascemos em crise, desde o início", conta, num sorriso, José. Contudo, se não for na Avenida do Uruguai, a Ulmeiro procurará continuar noutro sítio do bairro.

Inês Drummond explica ao DN que "a atribuição do apoio pode atingir ate 80% das despesas elegíveis, até um montante de 25 mil euros", acrescentando que, para a junta de freguesia de Benfica, "a livraria Ulmeiro tem todas as condições para ser distinguida como loja com história."

Por ora, a Ulmeiro continua de porta fechada na Avenida do Uruguai, onde, sinal dos tempos, ontem " a ourivesaria que estava ao nosso lado já não abriu", diz o livreiro. Mas a melancolia, se existe em José e Lúcia, não é entrave para o futuro. "Mudar de vida é uma coisa que sempre me fascina. Eu vivo mesmo ao lado, e vou continuar a viver. Digamos que a começarmos ou a recomeçarmos já nada vai ser como antes. Primeiro, porque a escravatura acabou. Eu não estou disposto aqui ficar mais dez, 20, 30 anos, 12 horas por dia", lança ele. No futuro, "gostava de fazer uma seleção, melhorar um pouco a qualidade" dos livros. "Vamos ter de fazer um inventário, mas não é fácil. Há pessoas que acham que devíamos ter uma base de dados com todos os livros. Era fantástico, mas não sei se imaginarão quantas pessoas e tempo seriam necessários."

Os leilões que a livraria faz na sua página de Facebook - e que atualmente representam a maior fatia das vendas - recomeçarão em breve. José suspendeu-os "neste período de luto, ou de nojo". Continuará também a associação cultural Espaço Ulmeiro, fiel à história da livraria formada pelo homem que cresceu numa aldeia perto de Ourém numa casa sem livros e se apaixonou por eles através das bibliotecas itinerantes da Fundação Gulbenkian.

A Ulmeiro já teve uma galeria de arte na cave - agora repleta de livros -, já foi editora, que começou por lançar o livro de poemas de Eduardo Guerra Carneiro Isto Anda Tudo Ligado, e desde 1980 é alfarrabista; Mário Viegas, miúdo e recém chegado de Santarém, recitou poesia ali, onde também Natália Correia passou, Carlos Paredes tocou e onde António Lobo Antunes, até há pouco tempo, aparecia.

Na manhã de 25 de Abril de 1974, foi para ali que Zeca Afonso correu. "Foi uma coisa incrível, parecia uma das sedes. Eu soube relativamente cedo. Há um amigo que me telefona para aí às cinco da manhã, e logo a seguir liguei para o Zeca. Encontrámo-nos logo aqui. Veio o Hermínio Monteiro também [editor da Assírio & Alvim] e outros". Saíram depois para as ruas, e José lembra-se de estar a passar com Zeca na Rua da Misericórdia "quando o pessoal estava a deitar os arquivos do Diário da Manhã para a rua".

No outro dia, um dos visitantes da página de Facebook da Ulmeiro referia-se ao fecho da livraria dizendo que "as livrarias esquerdalhas acabam". Mas o seu proprietário não se revê em tal observação. Diz que recebeu ali o general Otelo Saraiva de Carvalho como também recebeu o general Soares Carneiro. E se proibissem a publicação de um livro de extrema-direita, ele oferecia-se para o publicar, diz. Porque os livros, afirma, são "testemunho" do que se passou, do que fomos. Durante o Estado Novo, vendeu muitos livros à revelia da PIDE, e viu outros tantos serem-lhe confiscados.

Agora tudo está em aberto. Os milhares de livros da Ulmeiro (e não falemos do armazém que José e Lúcia têm, nem da própria casa) continuam no espaço onde sempre pertenceram. José reunirá com os restantes membros da associação cultural a propósito da candidatura a loja com história. "Vamos apresentar candidatura", garante. Mesmo que não tenha certezas do seu sucesso: "Estamos a falar da periferia, não é da Baixa."


por Mariana Pereira in Diário de Notícias | 6 de janeiro de 2017

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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