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Na Aldeia Nova de São Bento o cante é de ontem e de hoje
O Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento lança um importante contributo para a sua renovação.
A 24 quilómetros de Serpa, existe uma aldeia habitada por irredutíveis alentejanos que resiste agora e sempre ao invasor. Na verdade, a Aldeia Nova de São Bento só conserva esta nomenclatura na designação de um dos mais importantes agrupamentos de cante alentejano em atividade – é oficialmente vila desde 1988. E não se pode bem falar de invasor quando as músicas estranhas ao cante surgem no reportório do Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento por convite dos próprios e não enquanto pérfidos agressores movidos pela subjugação dos locais.
Os Cantadores continuam hoje a ensaiar num edifício da Junta de Freguesia cuja fachada deixa claro tratar-se da casa onde nasceu o encenador Filipe La Féria em maio de 1945. Agora, é o cante que ali se ouve todas as semanas, num espaço de ensaio em que se cruzam várias gerações, dedicadas a dar voz ao reportório alentejano sempre inebriado pela natureza, pelos amores e pelas coisas mais simples da vida, mantendo o embalo herdado dos cantos de trabalho. Dali, a cantoria facilmente se estende a qualquer taberna das redondezas em que as modas possam ser beneficiadas pelo deslizar de um copo de tinto.
O Rancho de Cantadores já andava a trabalhar em reportório novo, conta ao PÚBLICO Pedro Mestre, ensaiador do grupo há três anos, quando a editora Universal Music, espicaçada por António Zambujo, o convidou a engrossar o seu catálogo. A relação de Zambujo com o coral alentejano vem de longe. O Rancho de Cantadores era já a formação preferida de Zambujo quando Miguel Lobo Antunes, administrador da Culturgest, o desafiou a apresentar um espetáculo novo na sala lisboeta. “Eles têm a verdade da coisa”, defende o cantor. “Conseguem transmitir emoções – pelo menos é o que acontece comigo – que fazem recuar no tempo e reavivar memórias. Provocam-me um arrepio na pele inacreditável.” Numa entrevista anterior a esse momento na Culturgest, Zambujo dera já conta dessa admiração e os Cantadores, em resposta, enviaram-lhe o seu CD mais recente.
Quando Lobo Antunes lhe pediu que pensasse num concerto diferente daquele que fizera na apresentação de Guia (2010) e lhe sugeriu abordar a música tradicional do Alentejo, Zambujo não hesitou na escolha. “Se era para fazer alguma coisa com a música tradicional alentejana, tinha de ser com este grupo que já conhecia e ao qual reconhecia muito valor.” Depois de a experiência na Culturgest se revelar um sucesso – “nesse concerto, eles estavam a cantar mesmo atrás de mim e eu não conseguia cantar porque estava com aquele nó na garganta, difícil de aguentar”, recorda –, o cantor voltaria a chamá-los para concertos na Gulbenkian e nos Coliseus de Lisboa e Porto, resultando sempre em ocasiões de grande impacto emocional.
Mais tarde, o Rancho retribuiria a gentileza com um convite a Zambujo (e a Samuel Úria) para uma atuação num festival da Figueira da Foz. O homem de Lambreta espantou-se então com “um concerto extremamente dinâmico, recriando um ambiente de taberna e em que cantaram músicas que antigamente eram dançadas, usando a viola campaniça para tocar coisas mais ritmadas”. Foi na sequência desse espetáculo que provocou a Universal: “Se têm discos de fado que é Património Imaterial da UNESCO, porque não têm de cante alentejano que também o é?”. Provocação aceite, trouxe o seu diretor musical, Ricardo Cruz, para assegurar a produção do disco homónimo.
Tradição e evolução
No plano do Rancho de Cantadores estava já a intenção de gravar novo reportório, mas também de chamar para as gravações “uma série de convidados que se pudesse juntar ao cante e fazer um tipo de trabalho mais atual, diferente”, conta Pedro Mestre. E foi fácil chegar aos eleitos. Zambujo era uma escolha óbvia, já parte da família; Miguel Araújo era o autor de O que É Feito Dela, tema que o próprio Zambujo gravara com o Rancho no seu álbum Quinto; Luísa Sobral acompanhara-os num concerto em Lisboa; e Jorge Benvinda, cantor dos Virgem Suta, manifestara-lhes anteriormente a sua vontade de colaborar com o grupo. Mas a maioria dos 19 temas gravados pelo coral da Vila Nova de São Bento respeita ao reportório tradicional alentejano, com modas como Ao romper da madrugada, Fui-te ver estavas lavando ou Fui ao jardim passear, que o ensaiador descreve como “uma oferta de um ramo de alecrim por homens rígidos, mas que através desta meda podem demonstrar que também são cantadores românticos”.
A presença de temas e de instrumentos (viola campaniça, harpa e percussão) exteriores ao cancioneiro, justifica Pedro Mestre, prende-se com “a abertura deste rancho que, desde muito cedo, tem sido influenciado por outras abordagens”. E destaca o tema de abertura do álbum, A moda do meu chapéu, uma adaptação de uma melodia e uma letra trazidas por João Monge aos Cantadores, que é exemplo, diz o ensaiador, da capacidade de o cante integrar a inovação na sua natureza. “É uma das modas que nos últimos anos mais se espalhou por todo o Alentejo”, garante, “e que os corais acolheram perfeitamente.” Tudo faz parte, acrescenta, de entender o papel de preservação da tradição que lhes foi legada e, sem a trair, não temer uma evolução natural que deve permitir ao cante “evoluir consoante o tempo”. “Não somos iguais ao que eram os nossos pais, avós ou bisavós”, diz. “Somos de uma outra geração”. A geração a que agora cabe reclamar o cante para os dias de hoje.
por Gonçalo Frota in jornal Público | 1 de janeiro de 2017
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público