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O esplendor de Lisboa africana, europeia, latina

A questão indígena, afrodescendentes, migrações e criação contemporânea são os temas do programa, que inclui mais de 150 eventos.

Padrão dos Descobrimentos  |  Orlando Almeida/ Global Imagens

 

Por estes dias, Demian Flores já está em Lisboa, a trabalhar no Padrão dos Descobrimentos. O artista mexicano está a criar o mural Al final del paraíso que será inaugurado no próximo dia 7 de janeiro, marcando assim o arranque da programação de Lisboa - Capital Ibero-Americana de Cultura. Para este trabalho, inspirou-se na obra de frei Bartolomeu de las Casas, cujos relatos da chegada ao Novo Mundo remetem para a ideia de um paraíso habitado por um "bom selvagem".

Flores, de 45 anos, é um artista que "trabalha muito sobre a memória e as relações de colonização, quer as mais amargas e que têm que ver com o fenómeno de ocupação e exploração quer também aquelas que têm que ver com narrativas de sujeitos que foram procuradores dos índios", explica o programador António Pinto Ribeiro. A escolha deste artista para dar o pontapé de partida na programação não foi, portanto, inocente e é, em si, uma afirmação política e cultural: "Demian Flores trabalha nos dois lados, não tem uma visão maniqueísta nem da colonização nem do mundo. E ao trabalhar nisso está também sempre a solicitar a presença europeia. Convidámo-lo para fazer a primeira exposição da capital e fazê-la no Padrão dos Descobrimentos, que é um símbolo do império e da colonização, e é ali que ele vai refletir sobre a relação colonial entre Espanha e México, mas podia ser entre Portugal e o Brasil. É um bom ponto de partida - de dizer estamos aqui."

Ao longo de um ano, Lisboa vai ser o centro de uma programação cultural que estende os seus braços até África, Europa e América Latina, numa encruzilhada de línguas, de músicas, de sabores, de histórias, de pensamentos. Ao todo, serão apresentados cerca de 150 eventos - entre os quais 38 espetáculos e 31 exposições, mas também ciclos de cinema, conferências, passeios, edições literárias, desfiles, festivais e muito mais, envolvendo mais de 500 participantes dos vários países ibero-americanos, e que vão espalhar-se por vários pontos da cidade.

"Esta capital foi pensada como uma capital de acolhimento - vamos acolher pessoas, temas, músicas, gastronomia. Por outro lado, também para estimular." Para provocar o público e os criadores nacionais. A programação desenhada por António Pinto Ribeiro divide-se em quatro eixos temáticos - os afrodescendentes, as migrações, a questão indígena e a criação contemporânea - naquilo que se prevê que seja também uma viagem entre passado, presente e futuro.

Por exemplo: o espólio do antiesclavagista Sá da Bandeira será o ponto de partida para o primeiro capítulo do programa Testemunhos da Escravatura, que será apresentado a 12 de janeiro na Academia Militar. Para este projeto, o Gabinete de Estudos Olisiponenses pediu às várias instituições da cidade que olhassem para os seus acervos e procurassem testemunhos da escravatura. "Às vezes, é uma questão de olhar com atenção e de outra perspetiva para aquilo que se tem", explica Anabela Valente, uma das curadoras. No caso da Academia Militar, por exemplo, foi desde logo óbvio que esta seria a oportunidade para abordar o espólio de Sá da Bandeira. "Mas entretanto, vimos que eles têm lá ao lado, na capela, um quadro que retrata a partida da família real para o Brasil e que tem lá um escravo."

Essa desocultação tem sido o mais interessante no trabalho das cerca de 40 instituições que aceitaram este repto. O Instituto de Medicina Legal, por exemplo, tem uma coleção de pedaços de pele com marcas de escravos. Mas também há "bonecos de cura", oriundos de África, no Museu da Farmácia. Ou tapeçarias fantásticas, representando cenas coloniais, com escravos, na Fundação Ricardo Espírito Santo. Há móveis que foram feitos com madeiras. Há joias com metais semipreciosos extraídos de minas por escravos.

Para além destas investigações nas coleções das instituições, o gabinete está também a fazer um mapeamento dos vários lugares em Lisboa que estão ligados à história da escravatura - desde o local do primeiro desembarque de um navio negreiro, em 1441, na zona da Alfândega, "como qualquer outra mercadoria", até à Madragoa, o bairro que se chamava Mokambo, palavra em umbundo que significa refúgio ou "lugar seguro". A ideia é que, para além de os locais serem assinalados com uns pendões, a partir de junho, se organizem visitas guiadas por esta Lisboa africana. Uma oportunidade para conhecer melhor a nossa história e a nossa cidade e, assim, também perceber melhor a Lisboa que temos hoje.

 


por Maria João Caetano, in Diário de Notícias | 30 de dezembro de 2016

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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