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O realizador francês Benoît Jacquot encena uma tragédia suspensa
Novela de Don DeLillo está na base de Até Nunca, com produção de Paulo Branco.
No seu proverbial sarcasmo, Alfred Hitchcock gostava de dizer que os "maus" livros são excelentes para fazer "bons" filmes... Menosprezo pela literatura? Bem pelo contrário. Apenas a lucidez artística de quem compreende que não é possível transferir "automaticamente" para cinema as formas de construção de um romance.
Ao realizar Até Nunca (estreia amanhã), o francês Benoît Jacquot enfrentou o desafio muito especial de transpor uma novela subtil e enigmática como The Body Artist, do americano Don DeLillo (tradução portuguesa: O Corpo Enquanto Arte, ed. Relógio d"Água). No seu fascinante assombramento interior, este é um daqueles livros cuja delicadeza parece resistir a qualquer forma de apropriação. Basta dizer que nele se narra a odisseia de um par que, por assim dizer, persiste para além da morte de um dos seus elementos.
Ele é um cineasta que, um dia, a descobre, a ela, num recanto de uma galeria de arte, dando corpo (a expressão adquire uma inusitada justeza) a uma performance teatral. Quer isto dizer que o seu encontro se dá sob o signo da encenação, como se ambos fossem reproduzir na sua relação amorosa a pureza formal da primeira troca de olhares. Simplificando, digamos que a morte dele vai abrir uma nova dimensão na existência dela - será que os ruídos que se ouvem na casa isolada que ela insiste em habitar são mensagens de algum fantasma?
Mathieu Amalric e Julia Roy (também responsável pela adaptação do texto de DeLillo) interpretam esta tragédia suspensa como quem vive uma experiência perversamente cúmplice com o espectador. Tudo se passa como se aquela paixão mortal (o adjetivo envolve qualquer coisa de irónico) só pudesse ser exposta através dos poderes mágicos do cinema, confirmando a crueza da morte e seguindo, indiferente, como coisa cúmplice de todos os jogos fantasmáticos.
Não será um dos filmes mais perfeitos de Jacquot. O anterior, Diário de uma Criada de Quarto (2015), adaptando a obra de Octave Mirbeau, era mesmo uma das proezas mais sofisticadas da sua filmografia romanesca (iniciada em 1976, com L"Assassin Musicien). Mas é, seguramente, um dos mais arriscados, procurando retomar a herança de Hitchcock, justamente, e de filmes como Rebecca (1940) ou A Casa Encantada (1945) em que masculino e feminino parecem ligados por um pacto cinematográfico com o silêncio irredutível da morte. Isto sem esquecermos a sua descendência francesa que passa pela referência nuclear de François Truffaut e, em particular, por esse filme também assombrado e assombroso que é O Quarto Verde (1978).
Ironia suplementar: sendo um filme produzido por Paulo Branco, Até Nunca foi rodado em Portugal, dando-nos a ver alguns cenários conhecidos (a cena da galeria foi rodada no CCB), mas sem procurar qualquer efeito de reconhecimento, muito menos turístico. Boa lição estética: o cinema é uma arte de inventar uma nova geografia.
por João Lopes, in Diário de Notícias | 28 de dezembro de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias