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O realizador francês Benoît Jacquot encena uma tragédia suspensa
Novela de Don DeLillo está na base de Até Nunca, com produção de Paulo Branco.
![Mathieu Amalric e Julia Roy protagonizam Até Nunca Mathieu Amalric e Julia Roy protagonizam Até Nunca](https://www.e-cultura.pt/images/user/image14829210308825.jpg)
No seu proverbial sarcasmo, Alfred Hitchcock gostava de dizer que os "maus" livros são excelentes para fazer "bons" filmes... Menosprezo pela literatura? Bem pelo contrário. Apenas a lucidez artística de quem compreende que não é possível transferir "automaticamente" para cinema as formas de construção de um romance.
Ao realizar Até Nunca (estreia amanhã), o francês Benoît Jacquot enfrentou o desafio muito especial de transpor uma novela subtil e enigmática como The Body Artist, do americano Don DeLillo (tradução portuguesa: O Corpo Enquanto Arte, ed. Relógio d"Água). No seu fascinante assombramento interior, este é um daqueles livros cuja delicadeza parece resistir a qualquer forma de apropriação. Basta dizer que nele se narra a odisseia de um par que, por assim dizer, persiste para além da morte de um dos seus elementos.
Ele é um cineasta que, um dia, a descobre, a ela, num recanto de uma galeria de arte, dando corpo (a expressão adquire uma inusitada justeza) a uma performance teatral. Quer isto dizer que o seu encontro se dá sob o signo da encenação, como se ambos fossem reproduzir na sua relação amorosa a pureza formal da primeira troca de olhares. Simplificando, digamos que a morte dele vai abrir uma nova dimensão na existência dela - será que os ruídos que se ouvem na casa isolada que ela insiste em habitar são mensagens de algum fantasma?
Mathieu Amalric e Julia Roy (também responsável pela adaptação do texto de DeLillo) interpretam esta tragédia suspensa como quem vive uma experiência perversamente cúmplice com o espectador. Tudo se passa como se aquela paixão mortal (o adjetivo envolve qualquer coisa de irónico) só pudesse ser exposta através dos poderes mágicos do cinema, confirmando a crueza da morte e seguindo, indiferente, como coisa cúmplice de todos os jogos fantasmáticos.
Não será um dos filmes mais perfeitos de Jacquot. O anterior, Diário de uma Criada de Quarto (2015), adaptando a obra de Octave Mirbeau, era mesmo uma das proezas mais sofisticadas da sua filmografia romanesca (iniciada em 1976, com L"Assassin Musicien). Mas é, seguramente, um dos mais arriscados, procurando retomar a herança de Hitchcock, justamente, e de filmes como Rebecca (1940) ou A Casa Encantada (1945) em que masculino e feminino parecem ligados por um pacto cinematográfico com o silêncio irredutível da morte. Isto sem esquecermos a sua descendência francesa que passa pela referência nuclear de François Truffaut e, em particular, por esse filme também assombrado e assombroso que é O Quarto Verde (1978).
Ironia suplementar: sendo um filme produzido por Paulo Branco, Até Nunca foi rodado em Portugal, dando-nos a ver alguns cenários conhecidos (a cena da galeria foi rodada no CCB), mas sem procurar qualquer efeito de reconhecimento, muito menos turístico. Boa lição estética: o cinema é uma arte de inventar uma nova geografia.
por João Lopes, in Diário de Notícias | 28 de dezembro de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias