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Cornucópia encerra, depois de 43 anos de grande teatro
Encenador Luís Miguel Cintra diz que a companhia foi "vencida" pela filosofia de apoio às artes.
Há muitos anos – pelo menos desde 2010 – que Luís Miguel Cintra vinha anunciando o fim da Cornucópia nos termos em que a conhecíamos, e que desde a sua fundação em 1973 fixaram a companhia como uma das maiores, se não mesmo a maior, referência-padrão do teatro português contemporâneo para sucessivas gerações de encenadores, atores e espectadores. Agora, parece ser definitivo: a companhia de Luís Miguel Cintra vai fazer no sábado o seu último espetáculo, noticiou a Antena 1 esta manhã: "Fomos vencidos", disse o conhecido ator e encenador aos microfones da rádio. Um comunicado da histórica companhia de Lisboa adianta as razões da decisão: “Ao longo destes anos fizemos muito e menos mal, mas também julgamos já ter idade para ousar dizer que não sabemos nem queremos adaptar-nos a modelos de gestão que dificilmente nos habituaríamos a cumprir."
Este sábado, às 16h, promete-se a última apresentação da companhia, com um recital de entrada livre a partir de textos do poeta francês Guillaume Apollinaire. Ao mesmo tempo será lançado o segundo volume Teatro da Cornucópia, Espetáculos de 2002 a 2016.
"Chegámos de facto ao momento em que não há mais condições para continuarmos a fazer o nosso trabalho", confirmou ao PÚBLICO a cenógrafa Cristina Reis, com quem Cintra divide a direção da Cornucópia. "Não nos identificamos com o modelo de financiamento nem com o modelo de produção que se tornou a norma, não sabemos funcionar assim – e não convém apesar de tudo que tropecemos de forma calamitosa", disse ainda, frisando que é determinação da companhia não dissipar uma prática de 43 anos (e 126 espetáculos) que considera, sem falsa modéstia, "bastante exemplar".
Responsável pelos cenários e figurinos da quase totalidade dos espetáculos da companhia desde 1975, assim como pela sua imagem gráfica, Cristina Reis lamenta o fim da aventura iniciada ainda antes do 25 de Abril por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, mas ressalva que "o Teatro da Cornucópia fez tudo quanto tinha a fazer nestes 43 anos". A dificuldade de salvaguardar a singularidade do modo de fazer da companhia perante as exigências do modelo de financiamento público (que exige às estruturas apoiadas, por exemplo, o mínimo de três novas produções por ano) é, garante, a principal razão para o desfecho agora anunciado: "Sempre funcionámos como uma pequena unidade de produção, uma pequena fábrica, onde se fazia tudo. Mas esgotaram-se as nossas capacidades de manter a companhia à altura dos propósitos com que foi desenhada e que, creio, toda a gente conhece. Fomos ao limite das nossas capacidades financeiras. O nosso modelo talvez não interesse ao espírito e às práticas da contemporaneidade; provavelmente estamos fora do tempo. E, claro, já não somos novos, há aqui contornos de várias naturezas. É assim, é a vida."
No final de 2015, Luis Miguel Cintra já tinha anunciado a sua despedida dos palcos enquanto ator, embora continuasse a encenar e a dirigir o Teatro da Cornucópia, depois de ter explicado publicamente que sofria da doença de Parkinson. Antes, em várias entrevistas, tinha-se mostrado cansado de um modelo de apoio à criação artística que obriga companhias com a relevância e o legado inestimáveis do Teatro da Cornucópia a convencer periodicamente o Estado de que prestam um serviço público: "Já devia ser mais do que reconhecido que prestamos mais do que um serviço, e que é útil ao público que existamos", dizia ao PÚBLICO em 2010. E ainda, na mesma entrevista: "Só há duas soluções: ou somos ajudados pelos processos de co-produção, ou entramos no mercado e fabricamos produtos que se possam vender (...). Ou, então, fazemos espetáculos de muito menor dimensão e que, de certa maneira, reduzem a expectativa em relação ao nosso trabalho. Isso é perverso, porque se pode chegar a uma situação em que nos perguntam: porque vos estamos a subsidiar se o que produzem é só isto? É uma situação muito complicada da qual não sei como nos vamos conseguir safar."
"Uma Referência"
O Ministério da Cultura “lamenta o encerramento de uma das estruturas de teatro mais importantes da História do Teatro português”, informou o gabinete do ministro da Cultura numa nota enviada ao PÚBLICO, acrescentando que a situação tem sido acompanhada de perto pelo secretário de Estado da Cultura Miguel Honrado, que tem a área do teatro à sua responsabilidade.
O Teatro da Cornucópia, que tem um apoio do Estado através da Direção-Geral das Artes (DGArtes), recebeu este ano 309,6 mil euros, num subsídio que é dado a quatros anos, segundo explicou ao PÚBLICO Paula Varanda, diretora-geral das Artes. Se a Cornucópia já chegou a receber 600 mil euros por ano em 2006, por exemplo, a diretora-geral diz que os apoios passaram a ter um limite máximo, mas que mesmo assim "há poucas estruturas com um apoio tão significativo" como a companhia de Luis Miguel Cintra entre as 127 estruturas com apoios plurianuais.
"Com a tomada de decisão de encerramento do Teatro da Cornucópia, o Ministério da Cultura manifestou a sua disponibilidade em colaborar para que este encerramento se concretizasse da melhor forma, por profundo reconhecimento e respeito pelo Património Histórico – tangível e intangível – que a Companhia deixa para o Teatro português." O ministério diz que vai assegurar o aluguer do edifício do Teatro do Bairro Alto "por um período de mais um ano, de modo a que o processo de encerramento, e todos os trabalhos que daí decorrem, seja realizado nas devidas condições", acrescenta a nota.
A mesma nota reconhece ainda os 43 anos de trabalho da companhia: "As suas criações e os seus espetáculos foram, desde 1973 até hoje, uma referência, para atores, encenadores e profissionais na área do Teatro e, naturalmente, também para os públicos."
Segundo a DGArtes, como a Cornucópia, recebem também perto de 300 mil euros o Teatro o Bando, de Palmela, e o Acert, de Tondela. Acima, nos 350 mil, aparecem a Oficina, de Guimarães, e a Companhia de Teatro de Braga, enquanto nos 400 mil estão o Teatro de Almada e o Teatro Viriato.
"Neste momento é difícil não dizer coisas vulgares", afirma o encenador Ricardo Pais. "É uma perda mais ou menos irreparável, mas se o Luís Miguel Cintra e os seus companheiros acharem que é altura de fecharem atividade e o fazem com a dignidade que os sempre caracterizou eu tenho imensa pena mas tenho que aceitar." Sobre as críticas aos apoios estatais à criação artística, a razão evocada por Cintra para o encerramento, Ricardo Pais não quer sequer pronunciar-se, mas não deixa de sugerir que eles são um problema mesmo nos teatros nacionais, “que deveriam ser a face mais visível da política cultural”.
por Isabel Salema e Inês Nadais, in jornal Público | 16 de dezembro de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público