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Edgar Pêra, uma contra-história do cinema português
Seis semanas de retrospetiva em Serralves para reavaliar a produção fervilhante de um cineasta “pouco unânime”, com filmes, cine-concertos e uma exposição de artefactos.
Perto de meia centena de filmes, um cine-concerto, uma masterclass, uma exposição documental, tudo para marcar 30 anos de carreira não-alinhada – uma “contra-história” do cinema e da cultura popular do pós-25 de Abril, nas palavras do investigador e académico António Preto, comissário da retrospetiva que Serralves dedica ao cineasta Edgar Pêra a partir desta quarta-feira, 9 de novembro, e até 18 de dezembro. Ao longo das próximas seis semanas, o auditório da fundação receberá 19 sessões de cinema, num total de 42 filmes, entre curtas e longas; um espetáculo em que o realizador de A Janela, O Barão ou Movimentos Perpétuos manipulará imagens em tempo real ao som de Tó Trips, dos Dead Combo (18 de novembro); uma masterclass sob o genérico Cine-Diários (14 de dezembro); e a mesa-redonda O Homem-Câmara (15 de dezembro). Quatro das sessões de cinema, referentes às experiências mais recentes de Pêra com a tecnologia 3D, “desviam-se”, de 16 a 18 de dezembro, para as salas NOS do Alameda Shopping, no Estádio do Dragão.
Apesar destes números impressionantes, Edgar Pêra: Uma Retrospetiva não é uma integral, antes uma tentativa de “propor um trajeto que permita perceber as múltiplas dimensões do trabalho que ele foi desenvolvendo”, nas palavras do curador da exposição. Esse trajeto tem como “ponto zero” o teledisco de Dunas dos GNR, filmado em 1985 e pensado para um projeto mais lato, hoje perdido, designado Musicais do Sudoeste. Desde então, Pêra nunca parou de filmar. Foi “herói independente” do IndieLisboa em 2006, tem visto os seus filmes viajarem pelo mundo, obteve até um assinalável êxito comercial em 2014 com a comédia Virados do Avesso, mas continua a “passar ao lado” de um reconhecimento mais alargado – razão suficiente para justificar este olhar mais em profundidade. “O trabalho que o Edgar tem vindo a desenvolver está longe de ser unânime”, explica Preto num intervalo da montagem da exposição, “e a sua própria produção desafia a noção de obra, no sentido de conjunto de filmes organizados, estabilizados. O cinema é o seu centro de gravidade, mas é também o centro de uma constelação de interesses. Há um Edgar arquivista, um cineasta, um crítico, um criador de cine-concertos…”.
É também por isso que o comissário diz ser impossível uma retrospetiva integral. “A obra do Edgar é algo processual, contraditório. Um filme, para ele, nunca está acabado: ele remonta, reinventa, recicla, transfigura permanentemente os filmes que estão para trás. Têm uma determinada duração e uma determinada montagem num determinado momento, mas depois são repensados, refeitos.” Trata-se de “pensar o cinema como uma prática disruptiva”, diz António Preto. “O Edgar pertence a uma geração que não participou ativamente no 25 de Abril e que se confronta com uma espécie de ruínas da revolução, com o desígnio ou a obrigação de propor uma nova ideia do que poderá ser a modernidade em Portugal, em consonância com o que acontece lá fora mas ao mesmo tempo sublinhando aquilo que é nosso. O cinema dele é manifestamente impuro: coloca questões de ordem filosófica ou meta-cinematográfica, dentro de um contexto erudito, mas sempre pela via do diálogo com a cultura pop, com o imaginário popular. O Super-Homem convive com figuras saídas do regime salazarista, o Homem-Aranha e outros super-heróis são pensados em articulação os protagonistas da política em Portugal dos últimos 30 anos...”.
Essa dimensão estará mais presente na exposição de documentos, textos, cadernos e outros materiais que acompanha o programa de filmes. “Dar a ver a obra do Edgar num contexto que não é institucional nem exclusivamente ligado ao cinema, mas que pensa o cinema em articulação com outras práticas artísticas, pareceu-me interessante”, explica António Preto. “É a primeira vez que é possível ver os filmes em articulação com a sua produção gráfica, jornalística, plástica. Reunimos uma série de coisas que foi publicando na imprensa e que permitem perceber melhor o que foi fazendo – umas coisas iluminam as outras, complementam-se. A exposição pode estar longe de ser exaustiva, mas pretende levantar o véu sobre a existência dos seus arquivos, que estão hoje numa situação bastante precária e que será importante recuperar e restaurar.”
Nesses arquivos incluem-se alguns dos filmes mais raros que poderemos ver no programa: o documentário sobre o encenador, poeta e artista plástico António Pedro, O Homem Teatro (2001); as longas de carácter documental Punk Is Not Daddy (2010) e Visões de Madredeus (2012), montadas a partir dos seus imensos arquivos de imagem, que praticamente só viram exibição no Doclisboa; ou a ficção narrativa Rio Turvo, uma adaptação de Branquinho da Fonseca que teve estreia no IndieLisboa em 2007 mas nunca teve exibição comercial. “O Edgar é um autor extremamente ligado à ficção, mas isso assenta numa prática quotidiana de registo, de filmagem, de arquivismo, que não é muito conhecida mas que tem ao mesmo tempo uma dimensão documental, histórica”, insiste António Preto. “É possível perceber, através dela, e sempre por uma via ficcional, o que foi sendo Portugal ao longo dos últimos 30 anos.”
por Jorge Mourinha, in jornal Público | 9 de novembro de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público