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Riad Sattouf aprendeu a ser o árabe do futuro na Síria dos anos 1980

Editado o segundo volume das memórias gráficas de Riad Sattouf, no qual recorda a infância na Síria.

 

Riad Sattouf era ainda criança quando os pais decidiram instalar-se na Síria, em 1984. Foram para a aldeia de Ter Maaleh, perto de Homs, de onde o pai saíra para estudar em França e para onde voltava agora com a mulher e dois filhos. Riad tinha 6 anos, o cabelo loiro e encaracolado e não sabia muito bem o árabe que ali se falava. Mas o choque maior foi quando teve de ir para a escola primária onde os meninos se sentavam todos muito juntinhos a aprender o hino do país e havia uma professora de estilo militar que dava reguadas por tudo e por nada. Era ali que se iria preparar para ser "o árabe do futuro".

A história do pequeno Riad já é nossa conhecida. O primeiro volume das memórias gráficas de Sattouf, O Árabe do Futuro, foi publicado em 2014 (no ano passado em Portugal) e obteve alguns prémios - incluindo o de melhor álbum de BD no Festival d"Angoulême. Nesse primeiro livro, que vai de 1978 a 1984, Sattouf contava a história do pai, Abdel-Razak, que foi para universidade em Paris, o modo como se apaixonou por uma rapariga francesa, Clementine, o nascimento de Riad e do irmão mais novo. E também as viagens que fizeram: o pai foi trabalhar na Líbia e, a seguir, na Síria; as férias com os avós em França e, finalmente, o regresso à Síria de Hafez Al-Assad. É lá que nos encontramos neste segundo volume, nos anos 1984-1985.

A escola, a temível professora, as dificuldades para comprar um simples fogão, a violência do dia-a-dia marcam as lembranças de Sattouf. "As memórias mais fortes são das reguadas nas mãos, é claro!", conta o autor, numa entrevista por e-mail, em francês. "O castigo corporal fazia parte da educação escolar. Foi muito doloroso. Mas esta não era uma especificidade da Síria. Encontro muitas vezes pessoas mais velhas, em França, que me dizem que os seus professores lhes batiam na escola."

A vida cabe numa BD

Sattouf acabou por mudar-se novamente para França com 12 anos (essa parte da história será contada nos volumes seguintes) e por se tornar ilustrador. O fascínio pelos desenhos é algo que já vinha da infância, conta: "Em criança lia o Tintim. Eram os únicos livros que tinha na aldeia onde vivíamos. Mas o que me fascinava naqueles livros é que eu achava que eles eram como o Sol e a Lua, que existiam desde sempre. Um dia descobri que havia uma pessoa por trás de tudo aquilo. Que alguém inventa as histórias e desenha as personagens... imediatamente decidi que queria fazer disso a minha vida."

E fez. Apesar de a sua obra não ser unicamente documental, esta é uma área que lhe interessa bastante. Entre 2004 e 2014, publicou no semanário humorístico Charlie Hebdo uma série intitulada A Vida Secreta dos Jovens, "uma banda desenhada que não estava relacionada com a atualidade, na qual descrevia cenas que via na rua, com jovens". Sattouf não fazia parte da redação e confessa que nunca foi "capaz de fazer caricaturas políticas", por isso, apesar de se sentir obviamente afetado pelo ataque terrorista, em janeiro de 2015, não considera que este tenha influenciado o seu trabalho. Em 2010, estreou-se como realizador de cinema e ganhou um prémio César com Les Beaux Gosses.

O doloroso regresso à Síria  |  DR

 

Nos últimos anos tem trabalhado na série O Árabe do Futuro, com a qual pretende fixar a sua biografia em cinco volumes. Sem ficção. "Nunca me separei das minhas memórias. Tenho a sorte (ou o azar, depende) de ter memórias muito claras da minha infância. Claro que os diálogos são reconstituídos, mas a partir de memórias verdadeiras", garante.

Os dois primeiros volumes são marcados pela oposição entre o modo de vida dos ocidentais e dos árabes - a alimentação, a educação das crianças, as relações familiares. Sente-se uma permanente tensão entre a mãe e o pai, e entre as famílias deles (ele não quer revelar muito, mas esse conflito vai adensar-se e será o tema principal do terceiro volume). Por exemplo, Clementine não era muçulmana nem cobria a cabeça, em casa deles não se rezava e a alimentação não seguia qualquer regra. Aparentemente, ninguém se importava muito com isso. "É um grande mistério, mas era assim. As pessoas aceitavam que a minha mãe fosse diferente. Para elas, como ela era cristã, não estava sujeita às mesmas leis", lembra Sattouf.


Um intruso, na Síria e na França

Para o pai a situação era mais complicada. Apesar de ter estudado em França e de ter adotado muitas das ideias ocidentais, o pai era um acérrimo defensor do pan-arabismo. "O meu pai queria participar na modernização do mundo árabe e tornar-se alguém lá. Ele estava convencido de que nunca seria totalmente aceite na Europa, então quis voltar para o país, apesar de todas as dificuldades. É difícil de entender mas é frequente", explica Riad Sattouf, para quem o pai era "um paradoxo vivo", dividido entre duas culturas, muitas vezes a evitar ver as atrocidades que se cometiam à sua volta para poder continuar a ter a sua utopia. "Quando era pequeno e não queria ir para a escola, o meu pai disse-me: "Tens de ir para a escola porque o árabe do futuro vai à escola." Em oposição ao árabe do passado que era analfabeto. Ele era um nacionalista árabe, queria contribuir para a construção do homem árabe de amanhã."

Na Síria, o pequeno Riad sentiu-se sempre um intruso. "Esta experiência desenvolveu a minha capacidade de observação. Como na Síria eu não era aceite e na França eu era o miúdo do nome estranho, acabei por estar sempre um pouco isolado, distante, que é a posição ideal para observar. Isso é o que eu faço ainda hoje."

Riad Sattouf não voltou à Síria desde então. Sobre o conflito que arrasa o país do seu pai há quase cinco anos prefere não falar. "A Síria que eu conheço é a Síria dos anos 1980 e, especialmente, a pequena aldeia onde eu morava. Não conheço a Síria de agora", justifica-se. A família terá conseguido escapar para países vizinhos e não lhe restam lá amigos. "Não me sinto com legitimidade para falar como um sírio ou como um francês", confessa. Em vez disso, prefere apresentar-se apenas como um autor de banda desenhada. "Eu acho que as identidades se misturam e as pessoas se vão cruzar todas e, portanto, o conceito de identidade nacional tenderá a diminuir. E isso é uma coisa boa."

 

O Árabe do Futuro 2

Riad Sattouf

Editora Teorema

PVP: 17,90 euro


por Maria João Caetano, in Diário de Notícias | 27 de outubro de 2016

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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