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Zambujo não tem medo das canções de Chico

Até Pensei que Fosse Minha é António Zambujo a fazer suas as canções de Chico Buarque. 


Disco nascido da aproximação pessoal entre os dois, revolve sem reverência um dos cancioneiros mais valorosos da língua portuguesa.

No dia em que a Academia do Nobel encheu de contentamento aqueles para quem a palavra escrita para ser cantada também pode aspirar a ser literatura ou que acolhem tudo o que seja dinamitação de categorias; em que provocou episódios de azia aguda nos defensores da literatura como palco exclusivo dos escritores; e em que gerou no próprio Dylan, aparentemente, pouco mais do que indiferença, António Zambujo leu a notícia e a primeira coisa em que pensou foi “Olha, o próximo vai ser o Chico”. Não que Zambujo vá gastar muito tempo a sonhar com tal hipótese. Ele, que gostaria de ver José Eduardo Agualusa ou Mia Couto obterem tal reconhecimento, no momento foi de Chico Buarque que se lembrou.

Na verdade, foi em Chico Buarque ou em Leonard Cohen que muita gente pensou como futuros candidatos ao Nobel, pelo óbvio valor poético das letras das suas canções – a que se juntam os romances e poesia dados à estampa por um ou outro. Acontece que o fascínio de António Zambujo pelo cantor carioca está longe de o fechar nessa exígua gaiola de exímio letrista ou sequer de sublime escritor de canções. “Fascino-me por tudo e por mais alguma coisa”, confessa ao Ípsilon. “Pelas letras, pelas músicas, e admiro uma coisa que não é tão evidente no Chico – ele é um cantor inacreditável e acho que as pessoas não têm essa noção.” Zambujo já antes tinha esta certeza firmada no seu íntimo, mas agora que empresta a sua voz a 16 exemplares do cancioneiro de Chico Buarque de Hollanda no álbum Até Pensei que Fosse Minha essa admiração inchou. 

Chico Buarque é um amor antigo para António Zambujo. Logo depois de João Gilberto lhe escancarar as portas para a música brasileira, foi escavando todos os nomes fundamentais da MPB, de Vinicius de Moraes a Tom Jobim. Mas seria o autor de Construção, depois de Gilberto, a prender-lhe os sentidos. “O Chico e o Tom Waits foram os primeiros artistas de quem procurei ter a discografia completa”, recorda. “E isso aconteceu porque tive vontade de conhecer a obra toda do início ao fim.”

Esse conhecimento aprofundado da extensa discografia de Chico Buarque causou-lhe aqui um sério problema. Depois de, passado ano e meio sobre a edição de Rua da Emenda, a sua aproximação pessoal ao cantor carioca o ter feito pensar pela primeira vez num álbum que funcionasse, antes de mais, como uma homenagem a um dos “mais importantes autores da língua portuguesa”, Zambujo peneirou até chegar a uma pré-seleção de uma centena de temas. Apesar de ser um número desmesurado, é certamente comedido quando comparado com a totalidade do universo da música brasileira em que Zambujo poderia ter querido meter as mãos. Porque se é Chico Buarque o eleito para este Até Pensei que Fosse Minha, a sua familiaridade crescente com o Brasil musical há muito que encontra forma de lhe ocupar as canções e dava ao seu fado um travo distinto, quando as palavras – assim acontecia em Zorro (do álbum Guia) – caíam sobre a guitarra como se balanceadas e atiradas borda fora de um navio em alto mar.

Até Pensei que Fosse Minha, um “disco parêntesis”, como Zambujo lhe chama, não estava nos planos. Foi tomando forma a partir da tal aproximação a Chico Buarque e ganhou consistência quando Marcello Gonçalves (violão do Trio Madeira Brasil), João Mário Linhares (diretor executivo) e o próprio Chico Buarque se foram envolvendo e sugerindo músicas, ajudando o português na complicada tarefa de ir-se desfazendo de vários punhados de canções. Havia temas que lhe pareciam obrigatórios, tanto por serem canções que o acompanham há muitos anos (João e Maria), que descobriu noutras vozes (Morena dos olhos d’água, que ouviu primeiro por Caetano Veloso) ou pela evidente ligação a Portugal (Tanto Mar, essa carta-lamento de não estar em Portugal no 25 de Abril e de esperança na revolução) – “escolhemos sempre a música pela música, nunca estive preocupado em escolher épocas ou fases da carreira dele”, diz António. Mas houve também espaço para opções menos óbvias, sugeridas pelo próprio Chico, como Nina, que Zambujo não ponderara sequer por lhe parecer demasiado próxima cronologicamente para poder ser abordada. Ou Cecília, uma das suas preferidas no disco, que nem sequer conhecia. Quando se ouve Cecília, aliás, o título do álbum cresce num instante e percebe-se como estamos em território natural de Zambujo, como esta poderia ser uma criação sua sem qualquer esforço.

A você

“Futuros amantes, quiçá / Se amarão sem saber / Com o amor que eu um dia / Deixei pra você”. É com Futuros amantes que António Zambujo avança pela obra de Chico Buarque, num trinado mais próximo de Caetano do que de Chico e seguindo um acertadíssimo rasto de jazz maquilhado de melancolia, carregando consigo esta canção dirigida a “você”, escrita por um punho brasileiro que evoca ao mesmo tempo um cantor romântico português da estirpe de Tony de Matos. No português brasileiro, não há distância ao dizer “você”; no português daqui, atira o outro para longe, torna-se um amor distante, ganha quilómetros e a aura de idealizado, separado por um fosso intransponível. “Pensámos um pouco nisso”, confessa o músico. “E até fizemos alterações em algumas músicas, mas houve outras em que isso não fazia sentido e ficámos com as letras e os tempos verbais originais. Aquilo foi feito por um brasileiro, por um tipo que escreve português do Brasil. E é português, ponto final.”

Se falamos de Caetano e de cantores românticos, exige-se também que convoquemos o próprio, o autor de Leãozinho e do texto de apresentação de Até Pensei que Fosse Minha, para o citar quando escreve que ao saber da existência deste disco chegou “a sonhar que os aspetos Dick Farney que se pode encontrar tanto em certas composições de Chico quanto em algumas interpretações de Zambujo viessem a se potencializar mutuamente num ou noutro momento”. Farney ficou conhecido como o “Sinatra brasileiro”, cantor pelo qual António confirma ter apreço, mas cujo ascendente sobre a sua música é incomparavelmente menor ao de João Gilberto. 

“Em termos interpretativos”, diz, “aproximar-me-ia mais do Chico do que do Dick Farney. O Chico também acaba por ser um bocadinho a imagem do crooner, mas um light crooner.” Um crooner de recato, tímido, de semblante baixo, não vá o olhar traí-lo e cruzar-se com a destinatária das suas palavras e calar-lhe a voz. Só que, afinal, reconhece Caetano, aqui encontrou “o Zambujo mais metálico e ibérico que se possa imaginar redesenhando as palavras e as notas de Chico”.

Como o título sugere, António Zambujo lança-se às canções de Chico Buarque como que tomado por uma súbita amnésia, fazendo-as suas, torcendo-as à sua maneira. Se em temas como Injuriado ou Januária se mostra totalmente contaminado pelo Brasil, noutros momentos, Cálice acima de qualquer outro, segue em direções imprevistas. Cálice vai do silêncio à claustrofobia, começa por uma solenidade em que só a voz de António é permitida e, pouco a pouco, os instrumentos intrometem-se e a canção passa a ser guindada pela guitarra elétrica de Ricardo Silveira, que esperneia e se cola ao crescendo de uma letra que reclama o direito de dispor da vida, morrer do próprio veneno, embriagar-se até ser esquecido, e que escrita sob a ditadura militar brasileira era um libelo contra as práticas de repressão, silenciamento e tortura.


O que desse na real gana

Sem grande preocupação em relação à distância a manter das gravações originais, Zambujo confessa que “por muito mau que isto pareça, o processo de gravação é sempre uma coisa meio egoísta”. E com as canções de Chico Buarque não foi diferente, permitiu-se “fazer delas aquilo que nos deu na real gana”. Aquilo com que não contava, no entanto, era que Chico estivesse sempre por perto, fazendo questão de se encontrar sempre presente e a par de tudo o que acontecia no estúdio. “Não estava à espera nem era minha intenção estar a chatear o senhor para ter uma participação ativa no disco”, diz. “Foi um bónus e uma coisa que me deixou muito feliz poder tê-lo assim mais próximo e perceber que ele estava entusiasmado. Em setembro, quando o disco chegou, fizemos um jantar e fomos ouvir juntos o disco outra vez. Foi muito bom e é importante para sabermos reduzir-nos à nossa insignificância.”

O bónus chegaria também sob a forma de um dueto entre os dois em Joana Francesa, complementado por Sem Fantasia, um primor de canto a dois, em que as vozes de António e de Roberta Sá se entrelaçam e namoram sem vergonha, e por um arrepiante O Meu Amor, partilhado com Carminho, a outra intérprete do fado a acolher abertamente o Brasil na sua música. Tudo isto, todo um disco construído a par de um Brasil “numa grande confusão, em que não dá para entender o que se passa nem para onde vai”. As palavras de Zambujo referem-se às zonas pantanosas do que hoje se considera MPB, do que é verdadeiramente popular – Chico, Tom, Caetano tornaram-se música de nicho –, mas aplicáveis também a um país política e socialmente fraturado. “A ditadura lá acabou 11 anos depois da nossa e se Portugal está no estado em que está e leva 11 anos de avanço…”, atira. “É preciso tempo para as pessoas amadurecerem e perceberem que as coisas não são lineares, que tem de haver flexibilidade e aproximação entre as partes.”

É também de tempo que António Zambujo precisa para amadurecer ideias. Até Pensei que Fosse Minha, disco de parêntesis, deixa-o no mesmo sítio em que antes se encontrava. No fim de ciclo de Rua da Emenda, à procura de descobrir um novo trilho. O Brasil é também isso – um lugar onde pode continuar o seu processo permanente de sobrevivência artística, confrontando-se com ideias diferentes que possam, depois, ajudar a sua música a reconstruir-se.


por Gonçalo Frota, in jornal Público | 20 de outubro de 2016
no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Público     

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