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Quinze bailarinos em viagem num espetáculo completamente abstrato
Uma criação do artista plástico João Penalva com o coreógrafo Rui Lopes Graça.
Um apito como se fosse um barco a tentar perfurar o nevoeiro. O pano sobe. Uma perna, uma só perna, e só depois o resto do corpo do bailarino. Começa a viagem.
João Penalva é artista plástico. Mas antes de ser artista plástico foi bailarino, tendo inclusivamente trabalhado com Pina Bausch. Em 1976 deixou os palcos. "Nunca mais fiz nada com dança e não senti falta nenhuma. Nestes anos todos, sempre vi a dança como uma coisa que eu fiz e que ficou arrumada", conta, sentado na plateia do Teatro Camões, em Lisboa. É ali que esta noite, a Companhia Nacional de Bailado (CNB) estreia Quinze bailarinos e um palco, um espetáculo que surge do desafio da diretora, Luísa Taveira, ao artista plástico João Penalva e ao coreógrafo Rui Lopes Graça. "Recebi este convite com grandes reticências. Achei que me iam convidar para fazer só cenários e figurinos, que é o habitual. Depois percebi que seria minha a ideia do espetáculo e isso já me pareceu mais interessante."
As reticências que restavam, por ter de colaborar com alguém que não conhecia, desapareceram quando conheceu Rui Lopes Graça. O entendimento foi completo. "Agora, parecemos quase irmãos gémeos, completamos frases um do outro e nunca tivemos um único momento de tensão", afirma o artista, que reside em Londres desde a década de 1970. Ao longo de seis meses, os dois criadores trocaram e-mails e passaram horas em conversas telefónicas através da internet. No último mês, as conversas passaram a ser pessoais. Penalva instalou-se em Lisboa e assistiu a todos os ensaios. "A sua presença no estúdio tornou-se indispensável", confirma o coreógrafo. "Foi quase um editor, aquela pessoa que encontra os erros, que faz as perguntas, que traz um olhar de fora." E foi também, diz, "a pessoa certa" para encontrar neste momento em que Rui Lopes Graça assinala os 20 anos da primeira coreografia. "A pessoa que me abriu os olhos e me levou para outro caminho."
O caminho é novo para ambos. Se o trabalho de Penalva na fotografia e nas artes plásticas é marcadamente narrativo, aqui a sua primeira decisão foi fazer um espetáculo totalmente abstrato. Rui Lopes Graça adorou a ideia. Perseguiram-na juntos. Este é um espetáculo que não conta uma história. "Isso era o mais importante, queríamos uma peça sem narrativa, em que as pessoas possam construir elas próprias uma narrativa a partir daquilo que estão a ver, do movimento, e também do que estão a ouvir", explica o coreógrafo.
E essa foi a segunda decisão importante: "Não queríamos uma música para dançar. Queríamos exatamente o oposto." Penalva pediu ao seu colaborador de longa data, David Cunningham, para criar a banda sonora a partir de sons que foram recolhendo. Ao longo do espetáculo não se ouve música, só sons - do apito do comboio aos passarinhos, passando pelo comboio, pelo amola-tesouras ou pela trovoada. O que interessava a Penalva era ver "o que é que acontece se passarmos toda a narrativa para o som, um som que é tão cinemático que faça pensar em imagens." Um ambiente sonoro que não fosse orquestrável e que não fosse dançável.
"O que é vai ser o gesto para ser uma peça totalmente abstrata? Tinha que ser a raiz clássica, onde o movimento é completamente abstrato, se não fossem as pantomimas não se percebia história nenhuma, são esquemas de movimento sem significado", concluiu Lopes Graça. E foi a partir daí, e de mais uma série de regras que foram sendo acordadas, que foi criada a gramática deste espetáculo. Uma gramática sem narrativa e sem emoções, feita apenas de estruturas. Onde os bailarinos são desafiados a não interpretar, a apenas sentirem o prazer de cada movimento.
"Isto é um ato de coragem", diz Lopes Graça. "Porque nós estamos condicionados a que o movimento acompanhe o som e nós não queríamos assim. São dois percursos paralelos, o movimento e o som. Começamos um desenho mas depois há alguém a estragar esse desenho para logo começar a criar outro. Estamos sempre a frustrar as expectativas, queremos desalojar a ideia de previsibilidade."
O resultado é este Quinze Bailarinos e Tempo Incerto em que, ao longo de uma hora, somos desafiados a sentir esse prazer do desconhecido e a libertar a imaginação. Num palco onde um espelho enorme reflete a plateia, colocando-nos a todos lá dentro. "Eu estou a assistir mas também me estou a ver, é um espetáculo do qual eu também faço parte, porque estou a criar a minha própria narrativa", explica Rui Lopes Graça. E onde no final voltamos ao ponto inicial, mas agora com o mundo do avesso. Com a cabeça nos pés. De costas para o público. E o barco a apitar outra vez, a anunciar mais uma viagem.
por Maria João Caetano, in Diário de Notícias | 13 de outubro de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias