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Uma filarmónica em que há gente de hoje e de ontem
No arranque da 8ª edição, o Materiais Diversos implica a comunidade em dois espetáculos âncora.
De início, é apenas uma sala de teatro, com a plateia a olhar para um palco onde há cadeiras vazias. Nada de estranho num espetáculo que pode ainda não ter principiado. Mas quando de facto arranca A Banda – Danças para Músicos, construído pela coreógrafa Clara Andermatt e pelo músico João Lucas para e com os músicos da Sociedade Filarmónica Euterpe Meiaviense, o cenário permanece o mesmo: as cadeiras vazias, à espera de uma banda que as ocupe. De certa forma, pode esta imagem valer para o próprio processo que conduziu à segunda experiência do festival Materiais Diversos – espalhado por Torres Novas, Minde e Alcanena entre esta quinta-feira e 24 de Setembro – na junção de um coreógrafo, um músico e banda de uma filarmónica local. Depois de Vera Mantero, em 2015, o convite dirigido a Clara Andermatt esbarrou numa primeira dificuldade: angariar músicos.
Após vários telefonemas e várias diligências para corrigir a escassez de voluntários, mudou-se a filarmónica envolvida, foi chamada de novo a banda que trabalhara com Vera Mantero ao invés de propor uma formação diferente todos os anos. Só que ainda assim, no primeiro ensaio, depois de semanas em que Clara e João tinham fantasiado um delírio de rasto cinematográfico felliniano proporcionado por dezenas de músicos em marcha, em que tinham imaginado uma banda-organismo, feita de anonimato e que vaguearia pelo teatro, pouco se demorando no palco, nesse primeiro ensaio tinham diante de si seis músicos prontos a participar. Um deles, João, na tuba, mais experimentado; ao seu lado, algumas meninas de 12 anos, que sabiam tocar as suas partes no reportório na banda e pouco mais. O que fazer? Avançar ou desistir? Mirrar a megalomania até ser compatível com os recursos? Transformar radicalmente toda a ideia de espetáculo?
Foi na última opção que encontraram uma saída. Em vez do anonimato, a valorização de cada um. “Tivemos de fazer um zoom in”, explica Andermatt ao PÚBLICO. “Não somos muito de desistir. E depois havia este lado de ser uma coisa radicalmente diferente, de ser um desafio brutal, de uma fragilidade sedutora. Mas que implicou e continua a implicar risco.” Até porque, à medida que o convívio com os músicos lhes desvendava “o lado de sociabilidade fundamental” na vida das filarmónicas, ia-se adensando o conhecimento e o fascínio por aquelas pessoas que, com algumas faltas, reencontravam noite após noite. Instalados numa localidade próxima do Cine-Teatro São Pedro, em Alcanena, onde decorreram os ensaios e esta quinta-feira se estreia o espetáculo de abertura do Materiais Diversos, os dois foram-se entrosando, conhecendo a terra, percebendo o lugar da filarmónica como “pólo social fortíssimo, central na vida deles”, surpreendendo-se com o modo como acontece a “escolha” do instrumento – habitualmente fica-se com o instrumento que sobra – e com a forma como os músicos se referem à banda como a sua segunda casa.
“O que achamos apaixonante nisto tudo”, confessa João Lucas, “é o lado explicativo da realidade social, a tradição, a longevidade, a festa, as procissões. E que são de extrema importância – estamos a falar de pessoas que não vêem a novela à noite porque vão tocar. Ou que não fazem desporto com os amigos porque vão para a música.” A banda filarmónica como lugar de encontro e enquanto “Conservatório popular” transparece nas pequenas apresentações que os músicos fazem em A Dança. Elevam a voz, apresentam-se, explicam como se iniciaram na banda – quase sempre a contragosto, empurrados por uma madrinha, um irmão ou um tio – e a importância que fazer parte daquele grupo tem nas suas vidas. Em lugar do anonimato, portanto, a revelação de cada um, de cada história que existe naquela massa de pessoas, habitualmente a coberto do coletivo.
As cadeiras vazias do início do espetáculo, antes de os músicos avançarem como fanfarra silenciosa em procissão, numa sequência fantasmática, parece remeter também para as ausências de que se faz esta transmissão familiar e comunitária – o legado passado de pais para filhos, madrinhas para afilhadas, etc. Como se os passos que dão em volta do palco fossem acompanhados pelo silêncio de retratos dos antepassados. Como se toda a coletividade amplificasse o peso desses passos.
Um espetáculo familiar
É também de legado que nos fala Family Affair – The Legavy, espetáculo que a companhia ítalo-belga ZimmerFrei leva até ao Mercado do Peixe de Torres Novas, chamando famílias da cidade ribatejana para serem as protagonistas deste olhar sobre o universo doméstico. “É uma mistura entre documentário, arquivos vivos e ação; não se trata propriamente de teatro”, explica Anna de Manincor ao PÚBLICO antes de receber uma das famílias inscritas para participar em Family Affair. Depois de experiências anteriores em outras quatro cidades europeias, os ZimmerFrei chegaram a Torres Novas replicando o mesmo modelo – que consiste na recolha de narrativas sobre o universo familiar a partir de um questionário-tipo composto por 10 a 20 perguntas.
Muitas vezes nem sequer é necessário ir além da primeira questão. “Acontece fazer a primeira pergunta, que é algo muito simples e pede apenas a descrição da composição da família”, diz Manincor, “e segue-se uma resposta de duas horas.” Aconteceu também em Torres Novas com uma história familiar que atravessa várias regiões do país, uma passagem por Angola, um regresso vivido na condição de retornados e algumas mortes que redesenharam a geometria da família. O que interessa aos ZimmerFrei é não apenas a dissecação do que pode ser uma família contemporânea – sem advogar qualquer tipo de modelo –, mas também a ideia de que cada uma delas é um viveiro de histórias quase infindáveis, transmitidas de geração em geração, adulteradas a cada nova passagem. “Pensamos a família como uma micro-sociedade, mas também como uma das primeiras fontes de produção de histórias.”
Family Affair evita qualquer tentação de desembocar num espetáculo voyeurista, que se limite a escarafunchar e expor despudoradamente a intimidade das famílias. Por isso, a sua abordagem é equiparada à de um documentário, entrando numa realidade já existente “sem perturbar muito e sem o objetivo de operar uma transformação ou resolver qualquer problema”. Para limitar o grau de exposição dos participantes, alguns dos relatos gravados são partilhados com o público através de outro elemento da família que, com uns auscultadores, ouve o relato original e o reproduz – sem julgar e sem se posicionar.
São várias as estratégias que os ZimmerFrei põem em prática. Podem, por exemplo, estimular um jogo em que é proposta uma mudança de papéis. Numa família composta por uma jovem mãe viúva e os seus três filhos, foi-lhes perguntado o que fariam se fossem a mãe ou a irmã mais nova por um dia. Outro recurso habitual coloca em cena uma mesa de conferência com os vários participantes, lendo frases recolhidas daquilo a que os belgas chamam “histórias não-ditas”, que podem responder a reptos tão diferentes quanto a pior coisa que um pai pensou de um dos seus descendentes ou que alguém praticou enquanto filho. Qualquer coisa que habitualmente esteja silenciada dentro de quatro paredes – e que aqui se ouve sem que seja revelado quem o autor da frase.
Pelo oitavo ano, e desta vez sob o lema “excecionalmente comum”, o Materiais Diversos continua a convocar a comunidade para o centro da sua programação. É um festival para ver, participar e se sair, de alguma forma, transformado pelas suas propostas.
por Gonçalo Frota, in jornal Público | 15 de setembro de 2016
no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Público