"É de Cultura como instrumento para a felicidade, como arma para o civismo, como via para o entendimento dos povos que vos quero falar"

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Ler sobre livros para ganhar mundos e meios

Três propostas intermediárias, em caminhos para o universo dos livros. São livros de escala, mas também de escola.

 

Há uma velha máxima do jornalismo que, presumo, ainda estará em vigor, apesar do impensável alargamento da "fogueira de vaidades" em que vivemos: o jornalista não deve ser notícia. Claro que toda a norma comporta exceções - mas nem por isso deixa de se constituir como regra. Já se pensarmos no cenário da Literatura, essa ideia cai por terra, e cada vez mais, se pensarmos na beleza sublime de uma obra como Dicionário dos Lugares Imaginários (ed. Tinta-da-China), de Alberto Manguel e Gianni Guadalapi, em que os autores nos levam pela mão, num roteiro mágico com escala pelos ambientes que tão próximos estiveram quando abordámos as obras que os carregam. Ou se prezarmos a capacidade de enquadramento de A Vida Secreta dos Livros (ed. Clube do Autor), de Santiago Posteguillo, que pesquisa aquilo que, não valendo letra impressa e disponível nos volumes do nosso contentamento, ajudou a moldá-los tal como são. Em casos mais particulares, também ficámos devedores perante The Most Dangerous Book - The Battles For James Joyce"s Ulisses (ed. Head Zeus), de Kevin Birmingham, ou The Zhivago Affair: The Kremlin,The CIA and The Forbidden Book (ed. Harvill Secker), de Peter Finn e Petra Couvée, que desvendam os antecedentes, as batalhas e os atropelos às obras-primas do irlandês e do russo, antes da vitória final do reconhecimento.

Ficaria assim ressalvado, mesmo sem recurso a outros exemplos, o "pecado original" de livros que se debruçam outros livros. Em última instância, tal como na Ficção pura ou na Poesia, tudo depende daquilo que nos é apresentado em concreto, mais do que de um mero conceito teoricamente brilhante ou inovador. Nos três casos que aqui se abordam, há - digamos assim - dois manuais cujo objetivo se traduz numa orientação para o leitor, com sublinhados coloridos para obras essenciais ou "estruturantes", para um soar mais contemporâneo. Um deles (Os Livros das Nossas Vidas), traçado por dois autores portugueses, fixa como ponto de partida os diferentes géneros que podemos descobrir nos livros - Ficção, Informação, Poesia, Ciências Exatas e Humanas, Filosofia, Religião. O outro, de duas escritoras e leitora inglesas, aceita o desafio de sugerir uma ou mais obras para fazer face a situações do dia-a-dia e a estados de espírito. Para algo completamente diferente, temos o terceiro, um guia para que o candidato a autor cometa o menor número possível de erros no choque com a realidade, nem sempre prazenteira, que é o mundo da edição.

Seguir pelo tracejado

Começamos por aí, por esta "terceira via": Rita Canas Mendes, conhecedora - em primeira pessoa - do domínio editorial português, e não só - promete, com a transmissão de saberes, descomplicar a vida aos que, à custa de inspiração e/ou de suor, queiram um lugar, mais perene ou mais efémero, mais continuado ou mais circunstancial, na galeria dos autores. O livro, muitíssimo bem arrumado e pormenorizado, começa com um incentivo, ao elaborar uma lista variada dos prémios que Portugal, em todos os seus cantinhos, reserva aos autores, dando a conhecer as implicações que as diferentes distinções acarretam para quem escreve e para o que escreve.

Da abordagem às editoras (algo que vai da apresentação à capacidade de aceitar uma ou mais rejeições) à assinatura de um contrato, tudo é passado a pente fino, permitindo ao "aspirante" menos asneiras, menos tempo gasto, mais defesas. Mas, num panorama em rápida mutação, nem só das casas editoriais mais "clássicas" nos fala a autora, que estende a sua atenção até às vantagens e aos riscos da autopublicação. Há um cuidado especial nos alertas lançados face ao que se considera a vanity press (à letra: a imprensa da vaidade), em que um incauto e seguramente apaixonado candidato a autor pode acabar muito mal servido, pagando serviços que nunca chegam e mergulhando num abismo de ilusões em que pode acabar por revelar-se como a única parte empenhada, em mais do que um sentido.

Rita Canas Mendes não fica por aqui. De uma forma incisiva e didática, sempre acessível, traça os contornos dos outros meios e dos demais "deveres implícitos" para quem chega a este ambiente, desde os contactos com o "público leitor" às táticas de marketing, sem esquecer as possibilidades do mundo digital. Junta, ainda, legislação elementar, nomeadamente a que diz respeito aos direitos de autor e aos impostos que, já se sabe, estão em toda a parte. Em síntese, deixando sempre um espaço para a liberdade dos que chegam à grande casa dos autores, este é um daqueles casos em que a leitura a tempo e horas pode evitar sonhos vãos ou drásticas desilusões. Honesto e assertivo, não diaboliza nem opta por "dourar a pílula" - quem ler, sabe, salvo algum percalço sem precedentes, com o que conta. E há mesmo muito para contar...

Nem fome nem enfartamentos

A proposta de Mendo Henriques e Nazaré Barros parte de um conceito curioso: a generalidade dos livros é olhada como se da roda de alimentos se tratasse. A partir daí, empenham-se os autores em evitar cidadãos famélicos, privados ou em carência da "comida para o espírito", mas também em prevenir as hipóteses de enfartamento ou de desequilíbrios, de forma a perseguir um melhor aproveitamento as leituras. São explicados os diferentes níveis de leitura, tema aprofundado em especificidade porque se entendem diversas as "digestões" de uma obra poética, de um ensaio filosófico, de um volume de ficção ou de um tomo científico.

Por um lado, deparamos com uma tentativa (sumária e despretensiosa) de ajudar a constituir uma "cesta básica" com desenho de biblioteca - com tónica natural nos autores portugueses mas nunca desprezando os clássicos e os incontornáveis, sem olhar à data nem à origem, ganham-se balizas ou, pelo menos, coordenadas para as paragens tidas como indispensáveis para um "crescimento saudável". Por outro, como admitem os responsáveis por este cardápio, Os Livros das Nossas Vidas assume-se como um princípio de conversa que, depois, cada um poderá - e deverá - abordar de forma ambiciosa, transformando as regras basilares de uma receita em algo que possa considerar-se uma investida gourmet.

Escritos "por medida"

É certo que, em diversas fases dos nossos percursos como leitores, temos tendência para desconfiar sumariamente deste tipo de recomendações, preferindo vogar à solta, em total e diletante liberdade, por todas as possibilidades que nos oferecem estes particulares "segredos de cozinha". Com a passagem do tempo, que vai assumindo a sua verdadeira face de bem escasso, e com o crescendo da idade, ganhamos mais tolerância diante destes propósitos de ajuda e agradecemos, inclusivamente, a generosidade de quem, se não nos consegue poupar-nos a alguns "becos sem saída", nos fornece um mapa que, no mínimo, nos ajude a não falhar as grandes avenidas e as ruas cujo traçado nos ajuda a perceber melhor o que é a vida. Em resumo, não há livros, nem ingredientes, proibidos - há, isso sim, elementos que não devem faltar e que não dão direito a sucedâneos. Depois, não havendo abordagens sem transgressões de ocasião, ninguém consegue fugir a uma "refeição" menos apetecível ou, até, que caia mal. Mas, com instrumentos como este, podemos evitar muitas azias.

Outra das nossas predisposições naturais passa por olhar para os medicamentos como sinais exteriores de uma maleita ou de uma doença - só para as minorarmos ou extinguirmos vale a pena recorrer-lhes, de forma paciente e disciplinada. Felizmente, a Literatura, e em particular a ficção, subverte, a partir de Remédios Literários, esta noção: aquilo que Ella Berthoud e Susan Elderkin nos propõem resulta de um mergulho (em regra muito bem disposto, o que torna possível utilizar esta obra como livro de consulta, mas também como um "simpósio terapêutico" para leitura continuada e compensadora) nesta ideia essencial: para cada situação das nossas vidas, há uma ou várias respostas espalhadas pelos livros que permitem aprofundar e desenvolver prazeres ou, em sentido oposto, minorar agruras e desconfortos. Ou seja, os livros que aqui se segurem -e são muitos, em vários casos através de listas múltiplas e ricas - podem assumir contornos alternativos, ou catalisadores ou bálsamos.

Num minucioso elenco de situações, tão prosaicas como a dor de dentes ou a diarreia, tão drásticas como a depressão ou o desemprego, tão atuais como a dependência da Internet ou o mal do século XXI, tão ambiciosas como a procura da pessoa certa ou a busca de felicidade, as respostas ou os complementos vão-se alinhando no pressuposto de se transformarem na leitura correta para o momento certo. O que, desde logo, permite perceber que há hipóteses que se aplicam, porventura com diferentes desfechos, a diferentes desafios: é o caso de Anna Karenina, de Tolstoi, que parece valer como "resposta" adequada a enunciados bem diferentes entre si.

Tratando-se de duas autoras inglesas, não deixa de render um certo orgulho o recurso a obras de escritores portugueses e de Língua Portuguesa: entre os convocados estão Fernão Mendes Pinto, Eça de Queirós e Machado de Assis, Fernando Pessoa (na variante Bernardo Soares, já que O Livro do Desassossego "escapa" à Poesia, que não cabe no âmbito deste volume), Agustina Bessa-Luís e Nélida Piñon, David Mourão-Ferreira e José Cardoso Pires, José Saramago, Manuel Jorge Marmelo, Mia Couto e José Eduardo Agualusa. Há, até, dois casos que parecem merecer especial referência, pela "ressurreição" local que podem ajudar a promover: Júlio Dinis (por causa de Os Fidalgos da Casa Mourisca) e Vitorino Nemésio (mérito de Mau Tempo No Canal).

A suprema delícia destas escolhas pode estar nisto: depois de seguirmos a "posologia" aconselhada, é sempre possível contestar, quando estivermos na posse dos dados para rebater a sugestão. Ou, melhor ainda, conseguir olhar todas estas receitas como um mero ponto de partida e ir acrescentando, no diagnóstico e no tratamento. O que vale é que os livros vão dando para tudo. Desde que nunca deixemos de os ler.


por João Gobern, in Diário de Notícias | 31 de agosto de 2016

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

 

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