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Como Ventura Terra moldou Lisboa: dos palacetes a S. Bento

Sobrinhos-bisnetos comemoram os 150 anos do nascimento do arquiteto com visitas às suas obras. Este é o Palacete Mendonça.

 

"Estava fora de portas, mas com a cidade a seus pés". A descrição de Guilherme Pereira é factual. Estamos na loggia, a varanda do segundo piso do Palacete Mendonça, e daqui o Parque Eduardo VII é um tapete verde que se estende até ao rio Tejo. Quem passa na rua Marquês da Fronteira, mesmo ao lado de outro Palacete, o Leitão, nem vê. Oculto pela vegetação está um dos edifícios de maior relevo do arquiteto Miguel Ventura Terra (1866-1919), exemplo quase intocado das obras para privados que projetou ao longo da sua (não muito longa) carreira.

Quando foi inaugurada, a casa de Henrique Mendonça, roceiro em S. Tomé e Príncipe, era um prodígio tecnológico: foi instalado aqui um dos primeiros elevadores que se viram na capital. Passou da família para a seguradora Império e, mais tarde, para a Universidade Nova de Lisboa, que a deixará em setembro. O edifício e os três hectares do jardim foram vendidos à Fundação Aga Khan por 12 milhões de euros.

Guilherme Pereira é uma das cerca de 30 pessoas que no sábado, às 10.00 da manhã, esperava ao portão pela visita guiada da arquiteta Júlia Varela, cujos conhecimentos sobre Ventura Terra vêm do doutoramento sobre arquitetura doméstica que está a preparar e que inclui este prédio. Foi convidada pela associação Fórum Cidadania Lx em parceria com a Associação Ventura Terra, fundada em 2012 por descendentes do arquiteto.

Alda Terra e Luís Leiva, sobrinhos-bisnetos do arquiteto, e outros interessados na obra, dedicam-se a divulgar, preservar e resgatar o espólio documental de Ventura Terra, um dos 13 filhos de João e Vitória Guerra, nascido a 14 de julho em Seixas. É nesta localidade minhota que fica a casa que desenhou para as suas férias. Foi adquirida pela câmara municipal de Caminha em 2002 e entregue em regime de comodato, por 30 anos, à Associação Ventura Terra (AVT).

Luís Leiva é quem na associação mais se tem dedicado à empreitada de recuperação da casa. Já têm projeto de recuperação para o edifício, em franca "degradação", da autoria do arquiteto Carvalho Araújo, de Braga. Explica que se vão candidatar a fundos comunitários, que procuram "benfeitores" para a quantia que estes apoios não cobrem e que esperam ter a obra pronta em 2020.

Um ano de comemorações

Em 2016, ano em que se assinalam 150 anos sobre o nascimento do arquiteto, a associação tomou em mãos a missão de pôr o nome de Miguel Ventura Terra no mapa. Programou conferências, colabora na preparação de um documentário realizado por Fernando Carrilho (a estrear entre abril e junho de 2017) e promove visitas guiadas às suas obras com outras entidades, como aconteceu com o Palacete Mendonça. "Era agora ou nunca", afirma Paulo Faroleiro, responsável pela gestão do campus da Nova SBE (School of Business and Economics), sobre a possibilidade de conhecer por dentro o Palacete Mendonça.

Aqui vai ficar, depois de seis milhões de obras de reabilitação, a primeira sede mundial da comunidade ismaelita, de acordo com o DN. "É uma responsabilidade para este homem cosmopolita que é Aga Khan", afirma Paulo Ferrero, do Fórum Cidadania Lx.

Entremos, pois. Júlia Varela faz as honras do palacete: "Esta é uma obra excecional desta época e do arquiteto Ventura Terra". Projeto de 1900, inaugurado em 1909 e prémio Valmor, como se lê numa placa no exterior. "Elogiam-lhe a loggia, no último piso, como um dos elementos a que a arquitetura portuguesa devia estar atenta, por ser adequada ao clima", conta a cicerone.

Estudos em Paris

Contextualizem-se os tempos: Miguel Ventura Terra estuda na Academia de Beaux-Arts em Paris, berço das vanguardas, trabalha com o arquiteto Victor Laloux e regressa Portugal em 1896, após 10 anos de vida francesa. "Tem uma formação cosmopolita e internacionalista, nos antípodas do nacionalismo simbólico de Raul Lino", sublinha o professor de Belas Artes Fernando Baptista Pereira, numa palestra integrada nas comemorações, na quarta-feira, no liceu Maria Amália Vaz de Carvalho (1915), outras das obras de Ventura Terra, na quarta-feira. São dele, também o Liceu Camões e o Pedro Nunes (ambos de 1907). "Sentimos que é a mesma pessoa a desenhar, mas não repete a mesma fachada".

Estudioso de Raul Lino, Baptista Pereira traça um paralelo entre ambos, e sublinha aquela que é a grande diferença entre ambos. Raul Lino, que estuda na Inglaterra e na Alemanha, morre em 1973, com 93 anos; Miguel Ventura Terra, aos 53, vítima de uma crise de gota. "Mas curta carreira não significa pouca obra", frisa.

Diretor de Edifícios Públicos e Faróis depois de voltar de Paris, Ventura Terra assina a capela do Palácio Nacional da Ajuda, uma das últimas encomendas régias, vence (contra Raul Lino) o concurso para os pavilhões de representação de Portugal na Exposição Universal de Paris, em 1900, faz a renovação do Palácio de S. Bento, e responde a quase todos os programas públicos - da maternidade Alfredo da Costa à filial do Banco de Portugal, no Porto, passando pelo plano geral de melhoramento do Funchal, o teatro Politeama, o santuário de Santa Luzia e uma sinagoga (ver texto ao lado). A estes acrescenta as encomendas privadas para a classe burguesa endinheirada. "Quando morreu era um homem rico", conta o professor Fernando Baptista Pereira". Distribuiu a fortuna pela família e os mais necessitados. A sua casa, na rua Alexandre Herculano (onde, aliás, deixou várias obras), ficou para as faculdades de Belas Artes de Lisboa e do Porto.

Foi um dos presidentes do Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga, colabora na elaboração dos estatutos da Sociedade de Arquitetos Portugueses e a partir de 1908 torna-se vereador na câmara de Lisboa.

"É um arquiteto para a cidade", resume Baptista Ferreira. E, no entanto, tem permanecido na sombra. Não por muito mais tempo, numa História da Arte "em revisão", acredita o professor de História da Arte.

Júlia Varela frisa-o também. "Até há pouco tempo, muita gente não gostava deste tipo de arquitetura, considerava-a demasiado clássica, mas ele está virado para o futuro". "O programa habitacional muda muito", defende a arquiteta, autora de Palacete Mendonça: ecletismo, internacionalismo e progresso, publicado nos Cadernos do Arquivo Municipal, em fevereiro. E, neste caso, responde ao gosto do proprietário.

O palacete foi encomendado por Henrique José Monteiro de Mendonça (1864-1942), proprietário da roça Boa Entrada, em S. Tomé e Príncipe. Embora não saiba exatamente o que o levou a contratar Ventura Terra, sabe-se que o arquiteto era o mais reputado da cidade. Em 1900 tinha em mãos a renovação das Cortes e outras obras de grande dimensão.

Júlia Varela conduz os visitantes até à porta cocheira, sublinhando o que o pode passar despercebido: "Ventura Terra aproveita o desnível para a porta da cave, mantendo a simetria no piso nobre". O grupo avança para essa entrada que seria de serviço mas igualmente importante, que permitia aos donos e visitantes chegar de carro ou coche.

Dentro, uma surpresa: uma zona de circulação secundária, como era costume então, através de uma escadaria. "Mas tem uma nobreza e uma dimensão que não permite chamar assim", diz Júlia Varela. Encaixa uma das inovações tecnológicas: o elevador hidráulico, "um dos primeiros a funcionar em Lisboa", sublinha Júlia Varela. Veio de Paris, como outros elementos da construção - puxadores, aquecimento, portadas. Abundam as madeiras exóticas.

Casa de banho museu

Bem-vindos ao piso nobre, o "piso de representação". O gabinete que um dia pertenceu a Henrique Mendonça conserva os móveis originais. O mobiliário, madeira, embutido nas paredes, feito à medida, é clássico como o arquiteto gostava, e tinha aprendido. "Não é apenas uma citação historicista", nota a arquiteta.

O hall de entrada, zona de recepção e de festas tem madeiras por todos os lados. Por cima das portas, a ornamentação circular deixa adivinhar que ali esteve mais qualquer coisa. "Era para bustos", diz António Sérgio Rosa de Carvalho, historiador de arquitetura. "Revisita estilos, mas é arquitetura moderna. Tem uma grande erudição no estilo misturada com o funcionalismo de casa", nota o especialista, concordando com a descrição da arquiteta Júlia Varela: "O que parece historicismo está virado para o futuro".

Esta é a casa de um homem rico. O que aqui se passa é motivo de interesse da imprensa na época e a casa reflete os gostos do início do século XX. À Renascença da sala de jantar, segue-se uma sala, branca e dourada, com um piano, estilo Luís XV, outra Luís XVI e, finalmente, uma sala Império. Ao fundo, no jardim de inverno, grandes janelas e cenas de caça retratadas nos painéis de azulejos da autoria de Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, filho de Rafael Bordalo Pinheiro, que também trabalhou no Palacete Mendonça. O chefe artístico das Faianças das Caldas da Rainha é o autor do friso da sala de refeições.

Restam cadeiras, aparadores, mesas e uma casa de banho "que é um museu", concordam, à vez, António Sérgio Rosa de Carvalho e Paulo Ferrero. É a divisão que servia o quarto principal, no primeiro piso. Azulejos pintados à mão e autoclismo de porcelana, de Paris.

Os quartos distribuem-se em torno do vão central, com três telas de grandes dimensões atribuídas ao pintor régio Bento Coelho da Silveira, e a iluminação natural de uma claraboia, um elemento típico destes tempos.

Em setembro, a Universidade Nova deixa o local ao mesmo tempo que o Fórum Cidadania Lx e a Associação Ventura Terra retomam as visitas à obra do arquiteto: a 17 de setembro no liceu Maria Amália e a 24 às moradias do Estoril. Em dezembro, a AVT espera confirmar as visitas aos imóveis da rua Alexandre Herculano, um dos maiores conjuntos da sua obra, que inclui a sua casa e a sinagoga por ele desenhada. Com a associação esperam ter também "uma palavra a dizer sobre as intervenções que são feitas."

 


por Lina Santos, in Diário de Notícias | 26 de julho de 2016

no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Diário de Notícias 

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