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Feios, belos e maus sobem ao palco do Festival de Almada

Estreia hoje no 33º Festival de Teatro de Almada a criação de Toni Cafiero. Uma peça que encena a olho nu os efeitos de uma ditadura da beleza em vigor

Estrei hoje no Teatro Municipal Joaquim Benite [Gustavo Bom]

Tony Cafiero agradece ao público que já se encontra a postos na Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite e recolhe-se num lugar lá atrás. Diz que depois do ensaio, vamos todos ver o jogo. E ali, enquanto a música vai soando e as luzes se apagam, todos, talvez, levem Portugal como acompanhante do coração. Afinal, no relvado e no palco, joga-se a camisola à flor da epiderme. Não há diferença. Daí a duas horas, o país estará unido para fazer História. Mas antes, é tempo da cortina subir.

O texto de Marius von Mayen-burg, dramaturgo contemporâneo alemão, faz levantar a bandeira da sátira, onde a fantasia e uma certa hiperrealidade se cruzam, numa exploração mordaz ao culto da imagem que respira no torpor dos dias. No trabalho. Fora dele. Em todo o lado. O olhar é cru e nu sobre o sistema capitalista capaz de tratar o corpo humano como algo descartável, mecânico e de fácil reparação. Valeremos tão pouco?

João Tempera, João Farraia, André Pardal e Maria João Falcão interpretam a resposta, numa parábola moderna sobre as vantagens e desvantagens de se ser bonito.

Quem sofre do mal é um inventor de sucesso - muito feio - que descobre o lado negro da subversão da sua identidade. História repleta de sarcasmo e verdade sobre a artificialidade do mundo laboral, onde o culto da imagem e do poder é uma premissa pujante na sociedade dos nossos dias.

Contemos a história. Lette, o protagonista, está atónito. O patrão diz-lhe que por ser tremendamente feio, não será ele a apresentar e a vender o produto da empresa; por acaso, inventado por si. Estupefacto, vai perguntar à mulher que lhe confirma o veredicto. "Tens uma cara catastrófica, mas estou contigo por seres um homem maravilhoso", assegura. O que fazer então? Aceitar-se? Ou aceitar mudar a sua fisionomia?

O protagonista submete-se a uma intervenção cirúrgica que o torna belo, o homem com quem todos querem estar. Eles e elas. Depois do bisturi, o antes patinho feio faz vibrar o desejo de todos os que o procuram e parece que Lette cede ao inebriante paladar do sucesso. Há, pois, que replicar a fórmula mágica por mais. Desbastar, alterar, mudar, erradicar a normalidade e reivindicar a perfeição. E Lette sai derrotado do jogo. Afinal, a mulher agora já nem o quer, tem vários iguais à sua disposição. E o patrão, esse, subverteu a cartada, seguindo as regras da lógica empresarial, assumindo, perversamente, a descartabilidade do autêntico e do real. Já não precisa da beleza do colaborador para vender o conector, o produto, há mais "belos" a quem recorrer. Expatriado da mulher e do emprego, Lette põe em causa a sua própria existência. Valerá a pena renunciar à identidade? Valerá a pena banir a integridade? Será certo deixar de existir?

"Este não é um espetáculo para se falar da beleza, não é esse o mote, mas sim da perda de identidade que todos podemos ter". As palavras são do encenador Toni Cafiero, pela primeira vez convidado para dirigir uma das criações da Companhia de Teatro de Almada, para o 33º Festival de Teatro, cuja programação se estende até à próxima segunda-feira, 18, por vários palcos de Almada e Lisboa.

Não é a primeira vez que trabalha a obra de Marius von Mayen-burg, mas é a primeira vez à frente deste elenco, e assegura estar a sentir-se em família com toda a equipa. Toni Cafiero, assume a estrutura cómica da peça que admite tocar num ponto de reflexão muito atual nos nossos dias. "É muito perigosa esta ideia de modelo único, almejado quer por homens, quer por mulheres, não é bom determo-nos num modelo único". O encenador, professor convidado em várias cidades, desde Madrid a Nova Iorque, explica que ao alterarmos a nossa fisionomia, estamos a renunciar à nossa própria história, a dos nossos pais, avós e irmão. "Cortas a tua história, a tua herança, perdes uma parte da identidade. Carregamos na cara os traços da nossa história. Não se fala aqui do corte exterior, mas sim do corte interior", explica, sublinhando que a estética acaba por ser a metáfora subjacente na peça.

O protagonista não quer mudar, mas é obrigado a mudar, senão perde o emprego. "Aqui não é uma questão de estética pela beleza, que eu entendo perfeitamente, mas sim, entrar no ponto de perceber qual é o nosso preço, até onde estamos dispostos a ir com este tipo de pensamento", diz. Uma peça que pretende fazer refletir, entre o eu dividido entre a identidade e a economia, num lugar, onde, segundo Cafiero, todos se encontram cara a cara, os protagonistas do palco, e a pessoa comum, normal, num espaço suscetível a falhas, sem artificialidades, ao contrário de outras esferas. "O teatro serve sempre esse propósito de encontrar as pessoas e fazê-las pensar. Não é um espaço de diversão ou de entretenimento, há outros meios para isso." O Feio estreia hoje, pelas 21.00, na Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite.


por Ana Carreira, in Diário de Notícias | 12 de julho de 2016

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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