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Versão nova para um edifício antigo
No Jardim do Campo Grande o novo Centro de Estudos da Universidade de Lisboa é uma operação à escala da cidade: aberto 24h por dia é um novo desafio para a Universidade que se quer fundir com a cidade.
É possível que de tanto se falar em regeneração urbana se esteja a tornar mais evidente que a recuperação do património das cidades não pode ser tomada como um benefício adquirido sem que se distingam as operações que conseguem ampliar as qualidades existentes em usos compatíveis.
Um Centro de Estudos aberto em permanência e com funcionamento autónomo é desde logo um edifício novo. São as características deste programa que o tornam novo na cidade, a que devemos juntar a particularidade de aparecer dentro do Jardim do Campo Grande transformando um edifício há muito fechado. É uma obra que está prestes a concluir-se e que irá transformar radicalmente o uso deste jardim, cuja reformulação já está em curso, iniciada com a reformulação da estrutura verde e caminhos.
A adequação do antigo Edifício Caleidoscópio, com projeto do arquiteto Pedro Oliveira, inclui todas as condicionantes e características de um programa de uso flexível e mutante, para revelar a potência de uma versão latente para este edifício: um edifício-jardim.
Perante um edifício fechado dentro de um jardim a inteligência do projeto esclarece-se num enunciado muito simples: limpar os acrescentos que perturbam o reconhecimento da construção original e incorporar os novos espaços em geometrias decorrentes, para a qualificação de cada parte do programa e da sua relação com o jardim. A invenção de um acesso ao Jardim do Campo Grande com a nova cobertura entre o edifício e o lago é a construção que estabelece o critério fundamental para esta nova versão do edifício: transparência e fluidez.
Esta obra é uma boa de síntese que junta o entusiasmo de uma decisão corajosa em fundar um espaço que não existe na cidade com um projeto de arquitetura que lhe faz jus manipulando atributos da história da cidade
Uso e transformação
O edifício do Caleidoscópio no Jardim do Campo Grande foi construído em 1971, com projeto do arquiteto Nuno San Payo (1926-2014). O propósito original que conduziu o desenho foi ser um Centro de acolhimento ao turista. Este turista era maioritariamente nacional e chegava de camioneta de vários pontos do país em grupos excursionistas à capital. Vindos do aeroporto esta era também uma porta importante da cidade. O centro de acolhimento ao turista continha três restaurantes (à la carte, grill e típico), um bar, lojas de artigos regionais e uma sala de espetáculos com palco que funcionaria como local de apresentações.
Esta versão inicial teve vida curta e logo em 1974 acontece a primeira mudança de uso que transforma o edifício no Centro Comercial Caleidoscópio com uma sala de cinema Lusomundo e a abertura da livraria técnica. Para muitos lisboetas as memórias do jardim incluem uma incursão no Caleidoscópio, em domingos por entre passeios de barco no lago, umas voltas de patins no ringue e uma ida à maravilhosa piscina descoberta, agora perdida para sempre (projeto do arquiteto Keil do Amaral).
Esta nova versão, em 2016, consegue retirar da pré ruína um edifício único que permanecia invisível e celebrar a sua existência como corpo permeável com o jardim. As alterações introduzidas para as novas condições de uso tornam ainda mais evidentes e protagonistas as suas peculiares características formais e espaciais.
Na memória descritiva do projeto original é sublinhada “a escolha dos módulos hexagonais pelo movimento irregular das paredes se integrarem com harmonia no enquadramento do parque”.
A sua forma construída corresponde à associação de volumes hexagonais cuja área inscrita são 30m2. Estruturado nas arestas estas peças compõem dois conjuntos que se encaixam perpendicularmente numa junção explicitada na duplicação estrutural do seu encontro.
A continuidade da estrutura hexagonal para o subsolo é uma das características agora melhor reveladas pela ideia fundadora deste projeto do arquiteto Pedro Oliveira: limpar o edifício de todos os acrescentos que foram acontecendo sem relação com a geometria original. Sob esta orientação prevalecem os espaços em continuidade com as duas salas de estudo no piso 1, que se projetam visualmente sobre o jardim. Juntas têm 637m2 de área útil, complementadas ainda neste piso por 9 gabinetes de trabalho com cerca de 15m2, que constituem um corpo com acesso independente. A sala do corpo A acusa a presença dos pilares nos vértices de cada módulo e a sala do corpo B permanece com as vigas de betão com os reforços estruturais à vista. As decisões sobre o modo como a estrutura e a infraestrutura participa na definição do ambiente dos espaços do edifício intensificam o valor da construção. Quer isto dizer que as qualidades materiais da construção, nas suas diferentes vertentes, com pilares e vigas, com o isolamento acústico adicionado aos tetos em troços retangulares inscritos em cada hexágono e com a colocação da iluminação suspensa, deixam as qualidades do espaço intactas, sem a banalidade dos tetos falsos que tudo anulam e escondem.
No piso de entrada o átrio-receção estabelece uma continuidade espacial com o auditório aberto com espaço para 72 lugares sentados. Um espaço de livraria no piso de entrada prolonga-se para o piso -1 também em continuidade com uma sala de exposições. O uso de contraplacados de madeira no interior, serrados com velaturas a tinta branca, incorpora um modo artesanal que parece bastante adequado ao uso informal que se prevê.
Além de identificar e conduzir à entrada do Centro de Estudos a nova cobertura tem também a função de amparar um espaço de estadia e acesso ao jardim. Este acesso encontrado define um novo desenho para o topo do lago: o acesso ao jardim faz-se agora entre o lago e o centro de estudos através de uma passagem coberta. Esta adição ao edifício original tem ainda a clareza de se fazer prolongar a partir da matéria e da geometria existente, usando o betão descofrado e aparente na sua configuração. O que este projeto nos diz é que tornar transparente é também fazer aparecer os processos construtivos e materiais da intervenção.
Com este modo de fazer alguma leveza é acrescentada ao edifício. Por paradoxo que pareça a profusão de elementos pode significar uma conjugação menos estática do que uma caixa hermética de arestas vincadas. Conseguir que cada elemento participe de uma forma exata é uma conquista evidente deste trabalho. é tão evidente quanto nos possamos deixar absorver, a pouco e pouco, pela posição que as coisas ocupam no espaço. Das lâmpadas suspensas com os cabos verdes à vista, das peças nos tetos que aglutinam na sua espessura isolamento térmico e tubagens várias, aos pavimentos riscados com a geometria dos hexágonos estruturais. Como num charco de sapos, a dificuldade está em ver o primeiro: não conseguimos diferenciá-los das folhas e paus e até da água. A partir do momento em que conseguimos ver um sapo a pairar imóvel sobre a água descobre-se uma constelação de sapos sobre a superfície da água e da vegetação. Os seus controlados movimentos emergem e tomam conta da Cena. E rapidamente estes elementos do edifício submergem outra vez para nos deixar sentir as qualidades mais atmosféricas do espaço, constituído a partir de todos estes elementos.
A arquitetura das parcerias
Esta presença marginal tangente à estrada foi o grande motivo pelo qual a McDonalds decidiu participar neste investimento ocupando uma parte do piso térreo. O desenho original que permitia o acesso de autocarros de turismo serve agora o McDrive. Foi esta a única empresa que respondeu e correspondeu aos critérios de participação propostos pela Universidade de Lisboa. Foi a sua participação que veio viabilizar a operação total e aqui entram outros fatores que Pedro Oliveira soube utilizar a favor do projeto. Com a preocupação centrada na durabilidade da obra a McDonalds trouxe à discussão a alteração de alguns materiais, revestimentos e equipamentos técnicos. A alteração dos caixilhos de madeira pintada para caixilharia em aço foi um pedido introduzido pela cadeia de hamburguers. “O revestimento exterior a chapa de aço inox polida foi a solução que propus e que veio resolver todas as partes que constituem o vão, com a bandeira que abre para ventilar, o aro fixo e as portas” (Pedro Oliveira). Outras mudanças com significado na obra foram a substituição das telas asfálticas na cobertura por telas de PVC e ainda os pavimentos em betonilha por microbetão (variantes com maior durabilidade). Estas mudanças que foram introduzidas após o concurso de empreitada implicaram a coexistência de duas construtoras: a Teixeira Duarte para a obra geral e a Manuaço para a construção das caixilharias e cobertura. Todas estas alterações resultaram numa surpreendente poupança no valor de obra em 1500€. Mais surpreendente será para o cidadão comum, mais familiarizado com gastos acrescidos de cada vez que se fala em parcerias privado-públicas (habitualmente por esta ordem e não a inversa).
Talvez possamos inferir desta experiência que existem algumas vantagens em acreditar num processo dinâmico de decisões entre projeto e obra, para não ficarmos sempre reféns dos modelos dominados pela burocracia processual. Qualquer bom projeto precisa de ser acompanhado e melhorado até ao final da obra, num processo onde os arquitetos são os mais aptos a articular cada decisão com uma noção sobre o todo.
As últimas decisões estão em curso e dizem respeito ao mobiliário e à Sinalética, onde a participação do arquiteto e do artista Gilberto Reis será também decisiva na qualidade da identificação e visibilidade da Universidade (já com a nova reitoria dirigida pelo professor Cruz Serra).
Centro académico para todos
A imagem mais difundida e construída de um Campus Universitário é um recinto fechado que tem dentro os vários edifícios que compõe o conjunto de departamentos e serviços de uma universidade. Se expandirmos esta imagem e a fizermos coincidir com os limites da cidade temos os vários edifícios como peças de um conjunto que estabelece uma rede. Esta rede é necessariamente um rizoma, a sua progressão pertence a um sistema informal (porque sem forma previsível), com caminhos renovados a cada nova inclusão na rede. São estes caminhos, o espaço físico de atravessamento e estadia entre vários edifícios, que organizam melhor a perceção sobre a rede e a simultaneidade de usos que se cruzam no recinto da cidade. É uma atenção específica que importa intensificar agora que a fusão entre Universidade Técnica e Clássica se consumou com a junção do respetivo património construído.
Imaginar e intervir nesta rede implica também a inteligência de fazer coincidir programas de uso com as características formais e qualidades arquitetónicas de cada edifício.
É preciso reconhecer neste novo Centro de Estudos uma ideia maravilhosa de cidade constituída por espaços de qualidades distintas que se cruzam. É uma visão que nos aproxima mais da ideia de uma cidade para todos, mais permeável e disponível.
A ideia do Centro de estudos remonta a 2010. Por ocasião das comemorações do centenário da refundação da Universidade de Lisboa foi lançada a hipótese de uma construção de um pavilhão provisório para uma grande exposição em 2011. Passadas as comemorações o destino seria albergar o centro de estudos. Rapidamente os custos se revelaram elevados e a nova solução surgiu de um trabalho conjunto com a Câmara Municipal, com intervenção directa do Vereador José Sá Fernandes, que proporcionou uma permuta de património entre as duas instituições. Esta ação acontece já com a fusão das duas Universidades consumada no Decreto-Lei n.266-E/2012 publicado a 31 de Dezembro de 2012.
A convicção neste projeto forjada pelo então reitor da Universidade de Lisboa, professor António Nóvoa, traz um lastro de experiência e conhecimento destes lugares pelo Mundo, que transparece no modo como, ao escutá-lo, convoca imediatamente as referências de Oscar Niemeyer e João Figueiras (Lelé) em obras feitas de grandes gestos de abertura e inclusão, para uma construção democrática cada vez mais pública, para um tempo novo da universidade na cidade. A esta distância esta decisão já parece uma evidência.
Ver de novo
As ideias quando são boas e aparecem com um resultado estimulante, têm a pertinência de colocar em evidência relações em cadeia. São um motivo para conseguir ver de novo e retomar assuntos pendentes. Neste caso, a vitalidade da nova versão do edifício do Caleidoscópio-Centro de Estudos traz de novo aos nossos olhos as fragilidades que implicam a existência de uma via rápida de quatro faixas a envolver o jardim. Ao estabelecer uma nova relação de atravessamento permite-nos pensar na fixação de outros atravessamentos para melhor conectar o museu da cidade, o museu bordalo pinheiro, a biblioteca nacional, com o renovado jardim do campo grande. Ou fazer uma revisão mais profunda do tráfego envolvente.
A recuperação paisagística do Jardim do Campo Grande em curso, conta já com a substituição de grande parte dos pavimentos marginais e alguns interiores de atravessamento, novas mesas e bancos fixos e sobretudo uma maior clarificação na diversidade de espécies arbóreas que desenham núcleos distintos no jardim. O mesmo sentido de conjunto deve também prevalecer nas decisões que definam o destino dos edifícios no jardim.
Conseguimos distinguir os franchizados assentes em reconstruções genéricas, exclusivamente geradas pelo sentido imediato da imagem que se repete, das novas versões de edifícios que transportam conhecimento sobre a história dos edifícios e dos lugares da cidade? É uma atenção muitas vezes discreta, concentrada na escolha de uma caixilharia de aço compatível com a original, no resgatar de uma temperatura de cor ou no desenho da estereotomia da cofragem do betão para uma relação geométrica entre o existente e o novo. Não abdicando de incluir todas as condicionantes e parcelas do programa de uso são os critérios estabelecidos para esta nova versão que prevalecem. É deste modo que é incorporando o McDonalds neste uso partilhado do edifício sem que os papeis se invertam.
Ainda com alguns trabalhos finais a decorrer, em visita à obra com o arquiteto, o professor Nóvoa foi direto ao assunto: a grande tese é fazer cidade em cada novo elemento incorporado na rede. O Campus não é um recinto. “O CAMPUS É A CIDADE”. Esta afirmação é um desejo. Transporta um imaginário quase utópico na relação universidade - cidade. Acontece que este mapa está em curso e a mais recente peça deste universo é o novo Centro Académico Universidade de Lisboa, no Caleidoscópio - Jardim do Campo Grande.
por Rui Mendes, in Público | 27 de junho de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público