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Fotografar para construir uma ideia de Portugal
Que imagem do país nos dão os fotógrafos da segunda metade do século XIX e do começo do XX?
Um país atlântico, rural, atento ao passado. E, ao mesmo tempo um país que o comboio ajudava a modernizar e a descobrir.
São dezenas e dezenas de fotografias que acompanham a construção da linha férrea do Douro. Vêem-se os pilares de uma ponte que ainda espera o tabuleiro que permitirá ao comboio vencer mais um troço de rio, os túneis por acabar, homens nas margens, barcos rabelos e juntas de bois ali bem perto. Vêem-se as encostas de pedra, áridas, os camponeses que trabalham nas vinhas. Emílio Biel – o nome por que ficou conhecido Karl Emil Biel, um alemão que emigrou para Portugal em 1857 e acabou por se fixar no Porto três anos mais tarde – e os seus colaboradores registaram isto e muito mais, reunindo centenas de imagens em que o país, habitualmente contado na perspetiva da nação tradicional, agrícola, mais virada para o passado do que para o presente e o futuro, é apresentado como um território em transformação, com o comboio a encurtar distâncias e a entrar em zonas até ali praticamente inacessíveis.
Que imagem do país nos dão os fotógrafos da segunda metade do século XIX e do começo do XX? Que lugar tem nessa narrativa visual o trabalho de Biel e do estúdio que fundou no Porto, cidade onde foi um destacado empresário sem nunca deixar de se interessar pelas grandes descobertas da ciência e pelos progressos da tecnologia? A resposta a estas e outras perguntas foi dada no encontro Fotografia & História: Portugal Séculos XIX e XX, que reuniu no Instituto de Ciências Sociais (ICS), em Lisboa, uma série de especialistas para falarem das ligações que a fotografia manteve com a ciência, as artes e a história, e como a partir dela podemos construir uma ideia – várias ideias – de nação.
Um dos retratos que se podem fazer a partir da produção destes fotógrafos, diz Nuno Pinheiro, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-IUL), mostra um país com mais mulheres do que homens – sobretudo camponesas, varinas, lavadeiras –, feito de pequenas aldeias e com boa parte da sua atividade económica ligada ao mar. A indústria, diz o investigador, é uma experiência ainda muito incipiente que fica arredada do discurso visual, “não é um aspeto nacional que se valorize”. Quando se trata dos domínios ultramarinos, são os povos africanos e as paisagens grandiosas os principais sujeitos. “É sobretudo um país rural, tradicional, que sai no retrato. Um retrato que, aliás, coincide com o que é feito pela pintura e pela literatura."
A fotografia deste período mostra um país economicamente muito ligado ao mar
Paralelamente, a fotografia que se faz ali ao lado, em Espanha, no mesmo período reforça a sua herança árabe do Sul e dá-lhe, por isso, uma tónica de exotismo a que a representação de Portugal parece fugir. “Se aqui se regressa à Idade Média, a da construção da nacionalidade, e aos Descobrimentos para sublinhar um passado glorioso, em Espanha reforça-se o orientalismo que lhe permite entrar no Grand Tour [assim se designava a tradicional viagem que os mais ricos faziam pelo continente europeu] pela porta do exótico, do diferente”, explica Nuno Pinheiro, acrescentando que a imagem de Portugal é construída sobretudo por portugueses ou por estrangeiros aqui radicados, como Biel, e que a de Espanha conta com mais fotógrafos internacionais. “Parece que há até, na fotografia, uma necessidade de demarcar Portugal de Espanha, mostrando-o como um país atlântico, mais interessante a Norte do que a Sul.”
O rio Tejo às portas do Ródão, cerca de 1900: é um país rural, tradicional, que sai na fotografia
Intenção ideológica
Ainda que muito diferente da que se faz em Espanha, há na fotografia portuguesa, defende o investigador, uma mesma ambição europeia. O seu discurso nacionalista faz-se a três níveis – o da realidade histórico-cultural, o da paisagem natural e o da presença humana, em todas as suas atividades e hábitos tradicionais, eventualmente diferenciadores – e olhando sobretudo, mas não em exclusivo, para o passado. “Há uma intenção ideológica de reforçar uma identidade com base nestes três pilares”, diz o investigador do CIES, salientando, a pedido do PÚBLICO, o trabalho “de natureza muito diversa” de “três grandes fotógrafos”: Biel, o mais documental, Joshua Benoliel (1873-1932), precursor do fotojornalismo em Portugal, e Carlos Relvas (1838-1894), “o amador completo que conhecemos mais pelo trabalho de estúdio, mas que fez todos os géneros”.
Mais documental do que Benoliel e Relvas, é certo, Emílio Biel teve o mérito de acrescentar à imagem de Portugal uma componente tecnológica. Falando no encontro do ICS, organizado pela historiadora Filipa Lowndes Vicente, Marta Macedo, investigadora do Centro Interdisciplinar de História das Ciências e da Tecnologia da Universidade de Lisboa, concentrou-se no seu álbum dos caminhos de ferro do Douro (fez outros), “eventualmente uma encomenda estatal ou da empresa, não se sabe ao certo”, para mostrar como contribuíram para uma renovação do discurso sobre o país, sobre o território.
“O mais importante a reter deste álbum do Douro é a importância historiográfica de olhar para a tecnologia e para as representações fotográficas da tecnologia enquanto elementos de construção de uma cultura nacional partilhada em Portugal no final do século XIX”, explica esta investigadora que se tem debruçado também sobre o contexto colonial. “Para além das dos monumentos e da natureza pitoresca, estas imagens permitem integrar a tecnologia num discurso visual de construção da nação. E isto não é assim tão óbvio, porque quer a historiografia sobre o atraso tecnológico, quer os discursos das elites literárias da época não permitiram lê-la desse modo.”
O álbum da Linha do Douro terá sido a encomendado a Emílio Biel pelo Estado ou pela empresa,
não se sabe ao certo
O caso Biel
Emílio Biel (1838-1915) nasceu em Amberg, na Baviera, e chegou a Lisboa em 1857, trocando a capital pelo Porto em 1860. É aí que passa a trabalhar, intensamente, até à sua morte. Começou por representar grandes marcas da indústria alemã, passou a dono de uma fábrica de botões e depois a importante editor fotográfico, chegando mesmo a ser um dos fotógrafos favoritos da casa real, em boa parte graças à sua proximidade com o príncipe D. Fernando, um grande mecenas, casado com a Rainha D. Maria II.
Com um interesse genuíno pela zoologia e pela botânica, este alemão que adotou Portugal fez das suas casas no Porto verdadeiros centros de conhecimento, com bibliotecas recheadas e laboratórios com o que de melhor a tecnologia tinha para oferecer. Sobretudo no que tocava à fotografia. É ele que usa em grande escala a fototipia – um novo processo fotomecânico de fixação da imagem que permitia fazer reproduções em massa, com centenas de provas saídas de uma única chapa, sem perder nitidez nem pormenores –, cuja técnica lhe foi transmitida por um austríaco contratado por Carlos Relvas, nome fundamental da fotografia portuguesa.
Emílio Biel chegou ao Porto em 1960 e aí dirigiu um dos mais importantes estúdios fotográficos do país
Biel “dirigiu um dos mais importantes estúdios fotográficos portugueses e foi o maior editor fotográfico por quase 40 anos, de 1875 a 1915”, escreve Paulo Ribeiro Baptista em Um olhar sobre o país: Emílio Biel e A Arte e a Natureza em Portugal, artigo em que traça o percurso deste homem de ciência que nunca largava o seu charuto e que acabou por dar um contributo de relevo para a construção da imagem de um país que caminhava para a modernização e cujo património natural e cultural era bem capaz de rivalizar com outros no circuito internacional, como a França, o Reino Unido, a Alemanha, a Suíça, a Rússia e a Espanha.
Se nos álbuns ligados às linhas férreas o retrato do país se faz no diálogo entre paisagem e tecnologia, em A Arte e a Natureza em Portugal – obra monumental com 352 fototipias , publicada em oito volumes entre 1902 e 1908 – estamos perante um “instrumento de propaganda nacionalista, um livro que vende uma ideia de Portugal como país com uma história longa, importante, com paisagens pitorescas e costumes que vale a pena descobrir, isto numa altura em que já se começa a dar atenção à etnografia”, explica ao PÚBLICO este investigador que estudou a obra de Emílio Biel e que tem a seu cargo as coleções fotográficas do Museu Nacional do Teatro e da Dança.
Nas páginas deste grande álbum aparecem o Mosteiro da Batalha com as suas capelas imperfeitas em impressionante detalhe, os jardins românticos de Coimbra, casas de lavradores no Minho, carregadores de uva no Alto Douro e lavadeiras no Rio Cávado. Quando começa a sair, Biel tinha já no “currículo” a publicação de uma importante edição de Os Lusíadas, a de 1880, hoje considerada raríssima, um volume dedicado à Exposição Distrital de Aveiro e outro ao escultor Soares dos Reis, feito logo após a sua morte (destinava-se, aliás, a angariar fundos para a viúva deste artista que se suicidou no seu atelier em 1889).
A sua fotografia não se limita a traduzir o seu posicionamento político e a sua entrega à projeção de Portugal, é também um “ato de cidadania” no que toca à defesa do património cultural do país. “Ele não faz esta defesa só nos monumentos ou no registo de objetos artísticos e de práticas religiosas – faz também nos heróis, recuperando a tradição germânica, que é a sua, passando de Goethe para Camões”, exemplifica Paulo Baptista. Com A Arte e a Natureza em Portugal, Biel parece claramente preocupado em fazer um levantamento do património, quase um inventário, para que ele possa ser protegido.
O álbum A Arte e a Natureza em Portugal foi publicado em oito volumes entre 1902 e 1908
O álbum dos caminhos de ferro do Douro, mostrado três vezes em exposições internacionais (Berlim, Paris e Chicago), é um “extraordinário avanço na representação fotográfica da paisagem portuguesa”, acrescenta Marta Macedo. “Contraria aquela retórica do atraso de Portugal”, com algumas imagens com enquadramentos verdadeiramente cenográficos, e demonstra a qualidade e a capacidade técnica dos fotógrafos da Casa Biel. “Este álbum do Douro – as linhas do Douro e do Minho foram as únicas projetadas por engenheiros portugueses, note-se – é um épico tecnológico, não só por causa do tema, mas pelo que exigiu. Biel e outros dos seus fotógrafos, muito provavelmente, acompanharam durante anos a construção e, para o fazer, viajavam com um laboratório enorme porque os processos da época assim o exigiam.”
O trabalho de Emílio Biel era depois difundido em livros, revistas e postais impressos em grande número, e as suas fototipias davam muitas vezes origem a gravuras. O seu trabalho, e de outros fotógrafos como ele – António Novaes (1885-1940), Aurélio Paz dos Reis (1862-1931) ou o seu colaborador José Augusto de Cunha Moraes (1855-1933), que fotografou muito África –, era uma forma de comunicar o país, e de o construir. Seria difícil tirá-los do retrato ao falar do Portugal desta época.
por Lucinda Canelas, in jornal Público | 22 de junho de 2016
no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Público