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Um desenho para saber mais sobre a Basílica dos Mártires que o terramoto destruiu

É agora apresentado em Lisboa um estudo de Vieira Lusitano para o teto de uma igreja do Chiado arrasada em 1755. 

Pormenor da cópia de Júlio de Castilho, 1887 (Biblioteca Nacional de Portugal)

É um desenho em que D. Afonso Henriques aparece ajoelhado aos pés da Virgem no cumprimento de um voto que lhe fizera pouco antes da conquista de Lisboa aos mouros. A composição desta sanguínea, um estudo feito numa espécie de giz avermelhado, acabaria por ser pintada no teto da Basílica de Nossa Senhora dos Mártires, no Chiado, a mando de D. João V, integrada numas obras de reconstrução que só ficaram prontas em 1750, cinco anos antes do terramoto que haveria de destruir por completo. 

Desaparecido durante décadas, este desenho de Francisco de Matos Vieira (1699-1783), conhecido como Vieira Lusitano, foi recentemente localizado pelo antiquário António Pereira da Trindade, o seu atual dono, e é apresentado esta quinta-feira, às 18h, numa conferência de imprensa na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL).   

Com 63X37 cm, este estudo é um dos vários que o pintor régio terá feito durante a preparação da obra, obviamente sujeita à aprovação do monarca. Desses conhecem-se apenas dois completos, embora haja vários fragmentos em diversas coleções, explica ao PÚBLICO Luísa Arruda, professora da FBAUL e autora de uma tese de doutoramento sobre o desenho em Vieira Lusitano (Francisco Vieira Lusitano: Uma época de desenho, 2000). “É uma peça notável, mas não desconhecida”, diz a historiadora, referindo-se ao segundo estudo completo para o mesmo teto, que pertencia às coleções de Frei Manuel do Cenáculo e que, por isso, faz hoje parte do acervo do Museu de Évora. Além deste, lembra, há ainda uma cópia do desenho que vai ser agora apresentado feita pelo olisipógrafo Júlio de Castilho, em 1887, consultável no site  da Biblioteca Nacional de Portugal.

“O teto dos Mártires era uma obra importante pela sua carga simbólica, pelo facto de ser a encomenda de um rei particularmente devoto”, acrescenta Luísa Arruda, explicando que uma composição deste género é por natureza complexa, com um grande número de figuras, em que o artista tem de levar em conta a perspetiva do observador, que as olha sempre de longe e obrigado a inclinar a cabeça para trás. “É uma obra de enorme responsabilidade para um artista, sobretudo porque é integrada numa igreja de relevo”, acarinhada por um rei que se habituou a fazer da religião – e da sua relação com Roma – um instrumento de poder e de diplomacia.

A carga simbólica deve-se, em parte, à história da própria igreja. Uma história que explica por que razão estava D. Afonso Henriques no centro do teto que Vieira Lusitano pintou.

 

A promessa do rei

A Basílica dos Mártires começou por ser uma pequena ermida, construída num terreno fora das muralhas, onde, segundo a tradição, se prestava culto à imagem de Nossa Senhora trazida pelos cruzados ingleses que se juntaram a D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa. Os cavaleiros, cuja armada se dirigia para a Terra Santa, fundearam no Tejo no final de Junho de 1147 e, nos quatro meses seguintes, lutaram ao lado dos soldados do rei para libertar a capital dos muçulmanos. Muitos morreram – a esses o povo passou a chamar “mártires” - e acabaram sepultados no local onde o monarca haveria de mandar construir a ermida, logo a 21 de Novembro desse ano. D. Afonso Henriques cumpria, assim, a promessa de agradecer à Virgem a vitória.

Sempre com um lugar de destaque na vida religiosa de Lisboa devido ao seu grande simbolismo, a Igreja de Nossa Senhora dos Mártires acabaria elevada ao estatuto de basílica no final do século XIV e sujeita a várias campanhas de obras antes de ser arrasada pelo terramoto de 1755. Foi numa destas fases de ampliação e melhorias, que decorreu entre 1746 e 1750 por ordem de D. João V que Vieira Lusitano foi encarregue de pintar o teto do edifício, à data transformado num grande templo barroco. Pós-terramoto, a reconstrução pombalina voltou a reerguê-la, desta vez com um teto de Pedro Alexandrino de Carvalho.

“Vieira Lusitano é um grande pintor e um grande desenhador do século XVIII e numa altura em que Portugal não tinha ainda uma academia de desenho”, diz Luísa Arruda, explicando que o pintor tem um percurso que era raríssimo na época, se não mesmo inédito. Tendo feito parte da embaixada de D. João V ao Papa, o pintor acabaria a estudar em Roma, “o centro mais importante da arte no seu tempo, o equivalente à Paris e à Nova Iorque de outras épocas”, com discípulos de Carlo Maratti (1625-1713), um dos grandes mestres do barroco e um dos artistas italianos mais importantes deste período, depois da morte do incontestável Bernini, em 1680. “A sua formação em Roma dá-lhe uma capacidade invulgar para representar o corpo humano, para compor de um modo canónico, académico. Ele sabe desenhar o nu como poucos, não se limita a copiar estampas. Quando está em Roma ele aprende verdadeiramente e essa aprendizagem permite-lhe impor uma marca autoral à sua pintura, que tem características europeias.”

Esta sua proximidade a Roma, onde chegou a ser membro da Academia de São Lucas, uma importante associação de artistas, faz com que Vieira Lusitano veja as suas obras por vezes confundidas com as de italianos, incluindo Maratti, garante Luísa Arruda, para quem a obra do pintor português, presente através do desenho em grandes coleções como as dos museus Britânico (Londres), Metropolitan (Nova Iorque) e Prado (Madrid), está a ser “redescoberta”. “O tardo-barroco, que durante muito tempo esteve desconsiderado, está a ser revalorizado um pouco por toda a Europa”, acrescenta a historiadora.

Em Portugal, o artista está representado em várias coleções, incluindo a do Museu Nacional de Arte Antiga, que dedicou ao seu desenho uma grande exposição em 2000. Mas há também Vieiras Lusitanos nos museus Soares dos Reis (Porto), Grão Vasco (Viseu) e na Biblioteca Nacional (Lisboa). Recentemente, lembra, foram descobertos “seis ou sete desenhos” numa coleção alemã. O artista, que pintou sobretudo temas religiosos e mitológicos, fez também retrato de corte. O desenho que é apresentado esta quinta-feira é um estudo para a única pintura de cariz histórico que se lhe conhece. “Quando Vieira Lusitano pinta o teto dos Mártires, a pintura histórica ainda não estava na ordem do dia”, explica Luísa Arruda. Viria a estar no período seguinte, na obra de dois dos pintores de que seria precursor – Domingos Sequeira e Vieira Portuense.           

O PÚBLICO tentou, sem sucesso, entrar em contacto com o antiquário que é dono do estudo de Vieira Lusitano que será apresentado esta quinta-feira pelo presidente da FBAUL, Victor dos Reis. Procurou ainda, junto da mesma faculdade, obter uma fotografia do referido desenho, mas foi informado de que a divulgação de imagens estava reservada para a conferência de imprensa.

 



por Lucinda Canelas, in jornal Público | 2 de junho de 2016

no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Público

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