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Há uma ópera-fado a nascer em Alfama

"Alfama em Si" é a primeira ópera-fado em cinema, realizada por Diogo Varela Silva.

O realizador Diogo Varela Gomes, o produtor João Figueiras, Celeste Rodrigues (fadista avó do realizador) e os dois fadistas que também vão ser atores neste filme, Camané e Kátia Guerreiro [Gerardo Santos / Global Imagens]

O DN foi espreitar a pré-produção do filme, com os atores-cantores Kátia Guerreiro, Celeste Rodrigues e Camané.

Um musical só com fado, apenas cantado na canção de Lisboa. Ninguém fala? "Não, é tudo cantado, ninguém fala", responde Diogo Varela Silva, o realizador que se estreia nas longas-metragens de ficção com Alfama em Si, neste momento em pré-produção e com rodagem marcada para o próximo mês de setembro integralmente nas ruas de Alfama.

Nesta visita em jeito de reconhecimento aos locais, Diogo vem com o seu produtor, João Figueiras, mas traz também a avó, Celeste Rodrigues, a mítica fadista, Camané e Kátia Guerreiro, todos eles com papéis garantidos nesta história dividida em subhistórias.

Em todos estes fadistas há um entusiasmo comum. Camané parece mesmo ansioso pelo começo de rodagem e Kátia também está cheia de vontade de se estrear no cinema. Mas o projeto não foi um parto fácil. Segundo o produtor, andou anos a ser chumbado nos júris do ICA (Instituto do Audiovisual e Cinema), tendo só o ano passado recebido o subsídio destinado às Primeiras Obras.

Afinal, quem tem medo de um musical em português? Obviamente, há um lado de risco. Interrogamo-nos: será que o conceito de uma ópera-fado resulta na prática? "Claro que tenho consciência do risco, nunca ninguém fez isto em Portugal, mas há anos que preparo este filme, tenho tudo muito bem pensado. Estou realmente convencido que pode resultar, mesmo apesar de ser a minha primeira obra de ficção. Sinto que estou bem acompanhado, isso é importante", responde o cineasta que tem na sua filmografia documentários onde o fado já era protagonista: Celeste (2015), O Fado da Bia (2012), O Rei sem Coroa (2011) e Fado Celeste (2010). Se há um cineasta em Portugal que tem perseguido um desejo de transformar o fado em matéria fílmica é ele.

"Não será um filme ligeiro. O fado não é uma canção ligeira. Posso dizer que o filme terá todas as cores do fado, que não é apenas só uma coisa. Vai ter tudo: o bairro, a vida", conta.


Personagens do bairro

Dividido em sete histórias de bairro que acabam por ter uma ligação, o enredo começa com uma ideia teórica: a desintegração de Alfama com bairro histórico e ameaçado pelo turismo de massas, bem como por um progresso que obriga a EMEL a tomar conta dos parquímetros, as casas de fado a terem menus em cinco línguas e a chegada de câmaras de vigilância montadas pela Câmara de Lisboa. Mas o fado, como historicamente já foi provado, evolui, sobrevive. Graças ao amor dos moradores do bairro e aos lisboetas com alma fadista.

As personagens desta história englobam alguns dos arquétipos do mundo e dos bastidores do fado. Teremos o guia turístico, obrigado a recontar o conto da Mariquinhas; um casal idoso que passou ao lado do amor; o carteirista cheio de desculpas; o jogador (é o mítico Rodrigo quem lhe dá vida) que perde tudo; o presunçoso que julga saber mais de fado do que realmente sabe; um musicólogo que tem de engolir um sapo; e um marginal que, sem querer, ajuda o bairro a manter o seu espírito.

Dentro dessas histórias cabem outras histórias como a de uma grávida futura mãe solteira, interpretada por Kátia Guerreira, e de um médico que aos poucos fica fascinado pelo fado, este interpretado por Camané. Há ainda um dono de um restaurante típico, interpretado por Ricardo Ribeiro, que se apaixona pela prostituta do bairro. Acima de tudo, o que se tenta que saia daqui é um hino à essência do fado de bairro, não aquele que é hoje mais mainstream e comerciável.

Nesta altura, a equipa de produção ainda está a fechar o elenco, mas sabemos que Albano Jerónimo será um dos atores confirmados e que cantará fado. Ana Moura, está ainda em negociações para um dos papéis. Será, portanto, um elenco que mistura atores profissionais e fadistas.

Relativamente à parte musical, a base são os fados tradicionais com as letras alteradas em função da narrativa e dos "diálogos" que os fadistas e os atores têm para cantar. Fados cuja direção está a cargo de José Mário Branco, também responsável pela autoria do tema título. Vamos pois reconhecer as melodias de fados clássicos. A ideia é haver voz direta em plateau ( o filme será essencialmente em exteriores) com playback instrumental já gravado de forma a que os sons de uma rua viva também sejam audíveis.

Como um musical à grande

Mesmo não sendo uma grande produção, Diogo Varela Silva diz que vai tentar filmar com as regras do musical, ou seja, uma aposta numa certa mise-en-scène operática, com movimentos de câmara, gruas e tudo o que tem direito: "sempre, claro, dentro da medida do possível. Não queria é nada fazer à videoclipe... Esse é o meu objetivo". Nesse sentido, é um filme que se afastará dos registos realistas, haverá inclusive um cuidado no guarda-roupa e na fotografia para que se crie um efeito reconhecível de musical.

João Figueiras, o produtor, diz--nos que esta aventura terá que ter apoio da população de Alfama, mas que o processo de filmagens não vai "fechar" o bairro este verão: "dada à estreiteza das ruas nunca vamos fechar grande parte do bairro. O que pode acontecer são filas e filas de turistas a espreitar as nossas filmagens. Este é um filme de e para Lisboa. Esperemos que tenha apoio da autarquia". Para já, Figueiras está também à procura de coprodutor francês para um projeto que, segundo ele, é de 1,5 a 2 milhões de euros. "Este é um filme que poderá ter um target muito alargado, inclusive no estrangeiro. O fado é um ativo muito interessante da nossa cultura. Não é à toa que é considerado Património Mundial da Humanidade e esta será uma boa forma de mostrar o fado de uma forma diferente".



Num cantinho de Alfama, junto ao Largo de São Rafael, o realizador e o produtor levam-nos até um dos futuros décors do filme. Está um sol apaziguador e uma sombra que faz um contraste lindo. É altura da pergunta da ambição: este será mesmo um filme para o grande público? "Acima de tudo, enquanto produtor, quero que seja um bom filme. Se for de grande público, melhor, mas isso não será prioridade. Se fizermos um bom filme, certamente que o público virá... Temos sempre a mais-valia do fado apelar aos sentidos e com o qual os portugueses se identificam. Neste momento temos distribuidoras interessadas, entre as quais a maior de Portugal".

Prosseguimos para um beco de Alfama, bem perto do largo de Santo António. Diogo Varela Silva garante-nos que ali perto vai ser um dos locais de filmagem. A presença de Kátia Guerreiro e Camané não passa despercebida a ninguém. A própria fadista Raquel Tavares vai ter com eles. Kátia, que já fez teatro em miúda, conta que a sua grávida é especial: " é uma grávida mundana! Trata-se de uma filha de um jogador inveterado. Parece-me que vai ser super divertido, sobretudo porque as pessoas vão ficar com um péssima ideia minha! A verdade é que nunca tinha pensado em representar num filme. De repente, põem-me nesta posição algo delicada!".

Fadistas que têm de ser atores

Camané, que ainda há bem pouco tempo teve um "cameo" em Cabaret Maxime, de Bruno de Almeida, interpreta o doutor que se apaixona por fado e vence preconceitos: "os cantores neste musical de fado têm de representar mas, ao mesmo tempo, têm de ser dirigidos. Acho que me vou divertir muito. Gosto imenso das pessoas que vão participar. Penso que podemos criar uma história fantástica e fazer algo que nunca foi feito. A ideia é muito original!"

Camané prossegue: "este é um local muito especial. Será importante este filme mostrar que o fado não acontece por acaso, é algo que vem do ambiente que é criado por uma série de gente que se relaciona todos os dias e que pensa a música de uma maneira única. Alfama em Si vai mostrar um bocado como os artistas do fado se relacionam e conjugam o seu quotidiano com a parte artística".

Celeste Rodrigues confia nos dotes de realizador do neto, ele que já a filmou em documentários: "ele é bom! Mas também sou suspeita... Aqui faço uma personagem romântica - tinha de ser: sou romântica. Antes de mais, isto é uma coisa inédita! Os puristas nem vão poder refilar pois cantamos à mesma o fado! Não estamos ali a cantar ópera e vamos ter a mesma emoção".

Num dos mais belos décors do filme, a lavandaria dos tanques típicos, Diogo Varela Silva fala do seu método: "vai ser realmente como uma ópera. As óperas resultam, não resultam?". Alfama em Si vai ser trabalhado para estar em Cannes. Precisamente daqui a um ano.

 


por Rui Pedro Tendinha, in Diário de Notícias | 7 de maio de 2016

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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