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Despedidas de Günter Grass

Livro póstumo de Günter Grass, que reúne poemas, histórias e desenhos sob o tema da transitoriedade da vida.

Numa prosa de frases simples, Günter Grass não deixa de fazer comentários aos problemas presentes

Publicado na Alemanha poucos meses depois da morte do seu autor, o alemão Günter Grass (1927-2015) – Prémio Nobel da Literatura em 1999 – o volume Sobre a Finitude reúne poemas, prosas curtas, e desenhos. Não se trata de um livro que aspire a algo mais do que deixar aos leitores alguns pensamentos sobre a precariedade da vida (quase sempre em forma de poema), umas quantas histórias avulsas onde tão depressa se evocam os tempos da infância, da juventude, ou os atuais, e ainda muitos desenhos — esses sim, todos sobre o tema da transitoriedade (folhas podres, cadáveres de rãs ou de pássaros, cogumelos, pregos dobrados, raízes, penas soltas, um auto-retrato com o último dente…). São desenhos escuros, a carvão ou sépia, obscurecidos por um propositado sombreamento. Mas não é um livro negro, longe disso, apesar de logo num dos primeiros poemas, Sepia Nature — onde fala do “mungir dos chocos”, e de como armazena a sua tinta (que usa para pintar) em frascos de rosca — se referir ao “negro leite”, uma “metáfora emprestada”, numa óbvia referência ao “leite negro da madrugada”, de A Fuga da Morte, de Paul Celan.

As histórias picarescas e ironicamente cómicas, tão presentes e tão características de algumas obras de Günter Grass — sempre atravessadas por elementos fantásticos e mágicos, em que recorre muitas vezes a alegorias e a mitos judaico-cristãos — não estão de todo ausentes do livro, e surgem na mesma linguagem deliciosamente barroca (digamos assim) e festiva que sempre o caracterizou; um dos exemplos dessa tendência para a “fantasmagoria” é a história em forma de poema titulada Visita Tardia, onde narra ter sido visitado “durante a noite de ontem para hoje” por Claude Lévi-Strauss, que “já em vida era antiquíssimo”, e a quem agradece a obra O Cru e o Cozido em que, confessa, se inspirou para a escrita do seu romance O Pregado.

Longe de um testamento literário (não aspira a isso, nem sequer ensaia essa possibilidade), Sobre a Finitude é um livro de despedidas de coisas simples, onde não faltam as saudades dos “amigos mortos”, o espanto perante o revolver das memórias e daquilo que nela encontra dos seus tempos de juventude enquanto estudante de belas-artes, as referências à falta que já lhe faz a Costa Vicentina (durante muitos anos Grass manteve uma casa em Portugal, no Algarve, onde passava parte do tempo). Há na escrita destas narrativas uma certa satisfação barroca, uma espécie de atração pela queda (ou talvez seja antes uma tentativa de se conformar com os factos da decrepitude), na evocação do fim dos prazeres físicos e carnais, nas lembranças de pitéus culinários, da vida simples. Admirável é a contemplação da sua própria decadência, o tom quase auto-depreciativo e jocoso que empresta, por exemplo, à descrição que faz do facto de lhe restar na boca apenas já só um dente, no poema Despedida dos restantes dentes.

Conta das mais recentes doenças que o apoquentaram, da maneira como com elas lidou e, como se tivesse de justificar a melancolia (apesar do humor) que atravessa quase todos os textos — ou não fosse ela uma característica da sua obra — refere a tristeza como um dos elementos essenciais ao facto de escrever: “A tristeza que lhe atribuem [à melancolia], embora escureça, também não deixa de esclarecer, aclarando abismos. Sem ela, não haveria arte. É ela o solo pantanoso onde apoio procuro.”

A autobiografia de Günter Grass ficou encerrada em três volumes, o último dos quais, Grimms Wörter Eine Lieberserklärung (As Palavras dos Grimm. Uma declaração de amor), mantém-se inédito em português, talvez por ser sobretudo um contar sobre a sua intensa atividade política durante várias décadas, e sobre a língua alemã. Sobre a Finitude nada acrescenta aos três volumes publicados, mas Günter Grass (apesar de ter perdido a ênfase de “autoridade moral” que o caracterizou durante décadas) nunca deixou de ser um homem atormentado pelas possibilidades catastróficas da História, e apesar do tom “leve”, numa prosa rítmica de frases simples, que parece ter querido emprestar a estes últimos textos, não deixa de fazer comentários (jocosos ou irónicos) aos problemas presentes: à crise económica e ao papel das instituições financeiras, à chanceler Merkel, aos refugiados, ao controlo “policial” a que estamos sujeitos pelas novas tecnologias (“Oh, querido Drone, torna-me crente, / ajuda a salvar / quem mente”).


 

por José Riço Direitinho, in Público | 25 de abril de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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