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A Vida dos Livros

Miguel de Cervantes e William Shakespeare

Miguel de Cervantes (1547-1616) e William Shakespeare (1564-1616) apenas coincidem na circunstância da morte. Os seus passos não se cruzaram em vida, mas aparentemente morrem no mesmo dia, o que permite uma associação de lembranças. Contudo, o certo é que são referências fundamentais na literatura moderna, na sua criação e consolidação.

Foto: DN

A VIDA DOS LIVROS, por Guilherme d'Oliveira Martins

De 25 de abril a 1 de maio de 2016

 

UMA COINCIDÊNCIA DE DATAS

Começando pelas datas, a verdade é que no curioso ponto de encontro das datas da morte – 23 de abril de 1616 - temos um pequeno equívoco, de facto sem importância. Enquanto a Inglaterra seguia o calendário juliano, a Península Ibérica adotava já em 1616 a contagem gregoriana. Eis por que razão, o dia 23 de abril, que os biógrafos referem como data possível do falecimento, de ambos não corresponde ao mesmo momento, mas sim a uma diferença de dez dias…

O certo, o certo é que, apesar dessa divergência momentânea, podemos associar as duas grandes figuras, pois representam, nas respetivas singularidade e originalidade, o início, cada um a seu modo, de uma nova literatura, que convencionamos designar de moderna… Miguel de Cervantes é, pode dizer-se, o introdutor do romance moderno – e, falando da língua portuguesa, podemos acrescentar que D. Quixote é com a «Peregrinação» de Fernão Mendes Pinto o começo de um novo capítulo extraordinário na história das narrativas… Com efeito, mais do que um relato autobiográfico, a «Peregrinação» é uma prodigiosa apresentação, picaresca e trágica, de uma vida de aventuras, que pressupõe a multiplicação das personagens e das respetivas peripécias. Os contemporâneos julgaram ser mentira essa prodigiosa proliferação de experiências, mas hoje sabemos que foi a criação literária a estar em causa, centrada na diversidade dos testemunhos que contêm um inequívoco fundo de verdade… Assim, D. Quixote e a Peregrinação são duas obras centrais na construção da moderna literatura ocidental… E lembramo-nos do surpreendente epílogo da obra-prima de Cervantes: «Senhores, mais devagar! (…) – O que lá vai, lá vai. Ontem fui louco, hoje estou são de juízo. Fui D. Quixote de la Mancha e sou agora, repito, Alonso Quixano, o Bom. Possam Vossas Mercês perante o meu arrependimento e verdade restituir-me à estima que lhes merecia e o senhor tabelião tenha a bondade de continuar…». Apesar desta tentativa de D. Quixote renegar a ponta de loucura que dominara a sua movimentação, os seus companheiros irão desejar que tudo continue na mesma, como se de um sonho se tratasse que deveria continuar… A verdade é que, se Cervantes faz a crítica, certeira e indesmentível, dos males dos romances de cavalaria – sendo o cavaleiro da triste figura a personificação de uma doentia figuração de quem se deixara arrastar por aventuras fantasiosas retiradas de uma mistura ilusória da imaginação e da vida -, o certo é que estamos perante uma outra atitude que tem a ver com a realidade que nos cerca. O quixotismo é o enfrentamento da realidade com sonho e sentido utópico – mas Sancho Pança procura reconduzir as coisas ao concreto e ao senso comum. Daí o paradoxo existente entre a recusa de continuar a loucura e o desejo dos circunstantes que tudo se mantenha…

 

ALMA DE UM POVO

Miguel deUnamuno disse um dia que a filosofia em Espanha se lhe apresentava na «alma» do seu povo como «a expressão de uma tragédia íntima análoga à tragédia da alma de D. Quixote, como expressão de uma luta entre o que o mundo é, tal como no-lo mostra a razão da ciência, e o que queremos que seja, segundo o que nos diz a fé da nossa religião. E nesta filosofia reside o segredo do que nos é apontado, mas que estamos longe de saber o que é». Miguel de Cervantes faz-nos o relato das desventuras de alguém que, a um tempo, nos fala de um tempo passado, assim como sonha com conquistas inverosímeis… Diversa é a atitude de William Shakespeare, ainda que haja uma evidente convergência no sentido crítico. É a alma do povo que ambos, o espanhol e o inglês, procuram…
De facto, as obras do britânico, centradas na procura de compreender o género humano, ora usando das referências míticas ou históricas (Hamlet, Otelo ou o Rei Lear), ora recorrendo a temas intemporais (como em «A Tempestade»), procuram sensibilizar o público para uma reflexão crítica do mundo da vida. E que é o teatro senão o meio por excelência para a representação crítica da humanidade? Apesar de a narrativa romanesca e o teatro terem destinatários e ritmos algo diversos, a verdade é que, desde o registo picaresco até à máxima circunspeção, do que se trata é de olhar a sociedade e de ver os caminhos diversos que a mesma pode trilhar. O caso de Próspero, duque de Milão, em «A Tempestade» é significativo. Aí sentem-se as influências de Erasmo de Roterdão ou de Montaigne, mas também do Ovídio de «Metamorfoses». É uma tragicomédia com laivos de commedia dell’arte – muito se aproximando da ideia do romance crítico. Talvez este seja um caso muito especial na obra de Shakespeare, em que há uma aproximação à narrativa… Para não falar de «Hamlet», importa lembrar «Lady Macbeth» e «O Rei Lear», onde os temas do poder e da sua atração estão bem presentes. O velho rei da Bretanha decide dividir o seu reino pelas três filhas – Goneril, Regan e Cordélia. Esta última, porque não segue a atitude aduladora das irmãs é expulsa da corte. A ambição, a cegueira, a corrupção do poder conduzem o reino pelos caminhos indesejados pelo rei Lear, que enlouquece, procurando reencontrar Cordélia. Esta será condenada à morte com o seu próprio pai, que assiste desesperado as este desenrolar dos acontecimentos, nada podendo fazer para reparar o seu tremendo erro de ter julgado erradamente Cordélia… Há um sério contraste entre a loucura do rei Lear, que presencia a vitória de tudo aquilo que desejaria combater e a apoteose de «A Tempestade», numa ilha perdida, pela mercê de um mago, em que os vivos saúdam a alvorada de uma idade de ouro… Também o quixotismo revela essa contradição entre o sonho e o absurdo – o que, à distância, permite ver a força da literatura, a unir os geniais trajetos de Cervantes e Shakespeare…         

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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