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Reabilitar o Porto para além do turismo
Houve um concurso de arquitetura que permitiu a novos arquitetos demonstrarem o potencial adormecido da cidade.
A nova sede da Ordem dos Arquitetos demonstra como o financiamento europeu pode contribuir para reabilitar a cidade para além do turismo.
A recuperação do património edificado tem feito correr rios de tinta. Com a euforia turística que tomou conta dos centros urbanos de Lisboa e do Porto não há assunto que esteja mais em voga, apesar de ser um assunto velho. O problema parece ser simples: como assegurar que novos usos (como o turismo) não desfiguram o encanto do passado? A solução é que é mais complicada: como compatibilizar interesses contraditórios (como o conforto e a funcionalidade) sem descaracterizar a qualidade construtiva do legado arquitetónico? No Porto, a nova sede da Secção Regional Norte da Ordem dos Arquitetos, que ocupa duas casas na Rua Álvares Cabral e cuja obra foi projetada pelo escritório NPS - dos arquitetos Rui Neto, Odete Pereira e Sérgio Silva -, é uma obra de síntese capaz de trazer a debate muitos ingredientes relevantes. Esta obra demonstra vários aspetos do que pode e deve ser feito. Uma demonstração fundamental porque, apesar dos tais rios de tinta, o património edificado tem sido paulatinamente destruído, sem que sequer haja consciência da expressão dessa destruição.
Uma obra, duas casas, três exemplos
A rua Álvares Cabral resultou de um loteamento que, no final do século XIX, ligou a velhinha igreja de Cedofeita à Praça da República. A operação imobiliária foi sistemática e, seguindo standards construtivos correntes na cidade, construiu-se um conjunto urbano com uma coerência exemplar. Aí habitaram algumas gerações da burguesia portuense. Ao longo das décadas de 70 e 80 do século XX, com a terciarização do centro urbano, estas casas transformaram-se nas coisas mais variadas, até serem, já neste século, sobretudo ruínas. Em 2002, a Ordem dos Arquitetos adquiriu duas casas desse conjunto, simétricas, para aí instalar os seus serviços regionais. Catorze anos mais tarde as obras estão concluídas, e correspondem a três edifícios: uma casa, que estava em melhor estado de conservação, foi literalmente restaurada; a segunda casa, que estava completamente arruinada, foi reconstruída; no quintal, construiu-se um pavilhão novo, em forma de U, que junta as duas casas. Ou seja, uma obra de conjunto que articula três formas de intervenção no construído, duas casas que se transformam em três exemplos com qualidades construtivas distintas.
As casas são generosas, com um pé-direito alto, salas grandes, relativamente indiferenciadas e escadas ao centro que configuram um espaço para o lado da rua e outro para o lado do quintal. Estão presentes as convenções habituais, alguns degraus à entrada para subir o piso nobre em relação à cota da rua, alguns espaços menores de serviço entre as escadas e os espaços maiores, escadas de serviço para a cave e varanda com sanitário do lado do quintal. Estas qualidades genéricas das casas do século XIX, ao contrário das estratégias específicas do funcionalismo do século XX, permitem que o que era uma sala passe a ser, simplesmente, uma secretaria. Ou o que era um quarto se transforme sem dificuldade numa sala de reuniões ou num gabinete de trabalho. Essa polivalência parece dar sentido à opção do restauro na casa que ainda estava em condições, mas a opção radical do projeto, aparentemente óbvia mas longe de ser automática, consistiu em repetir essa estrutura e a natureza da compartimentação na casa que foi preciso reconstruir. A nova escada ocupou o lugar da velha, a nova biblioteca o lugar da sala antiga, o chão ao mesmo nível onde estava antes. As pedras das fachadas foram preservadas, as marquises reconstruídas, e o novo edifício reconstituiu (e era apetecível que não o fizesse) a estrutura espacial do edifício antigo. Então, onde está a diferença? Nos detalhes, nas voltas dos torneados dos rodapés, nos lambrins, em alguns materiais, nos acabamentos é percetível a diferença subtil entre o novo (reconstruído) e o velho (restaurado).
Essa diferença é mais óbvia no terceiro edifício, um grande salão que encerra o conjunto. Se as duas casas são perpendiculares à rua, com um portão ao meio que dá acesso a um pátio, no fundo do terreno construiu-se um novo edifício com dois pisos. A cada piso corresponde um salão com as dimensões que as casas não podiam oferecer.
Desse bloco, revestido a pedra nas fachadas e na cobertura, saem dois braços com corredores que se agarram a cada uma das casas, transformando o conjunto numa unidade. Na ponta desses braços, quando tocam as casas, concentram-se as infraestruturas técnicas, a chave que permite deslindar o mistério desta obra.
Não é demais assinalar que os materiais e a construção deste edifício são visivelmente distintos dos anteriores: onde num o chão era madeira restaurada, noutro madeira nova, aqui o chão é em marmorite; as caixilharias são metálicas, os vãos são maiores e a expressão é a de uma obra nova, do nosso tempo.
Mas essa alternativa formal não se faz através do choque ou da diferença, faz-se apenas pela natureza da construção e da organização dos espaços. Ou seja, os três exemplos, apesar de distintos, não são contraditórios e agregam-se de um modo unitário, gerando uma forma coerente.
Haja concursos
Quando a Ordem dos Arquitetos procurou um projeto para a obra que pretendia levar a cabo, fez um concurso. Um concurso de projetos aberto a todos os arquitetos, um concurso como os que hoje rareiam - a propósito de concursos, veja-se a importante exposição que inaugurou no passado dia 29 de Março, na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, em Lisboa - e que há época ainda existiam.
Entre as muitas propostas havia alternativas e a escolha pelo resultado que hoje se observa resultou desse debate entre soluções. Quem ganhou o concurso - o escritório NPS - era à época um grupo de novíssimos desconhecidos e, a encomenda que conquistou através da solução original proposta, permitiu angariar trabalho e consolidar uma prática que conta já com outras obras relevantes, entre as quais o trabalho de requalificação da Avenida Egas Moniz, em Penafiel, também ele angariado através de concurso.
Observar a obra que agora se inaugura é um momento singular para avaliar as mais-valias de atribuir uma encomenda de projeto através de um concurso aberto. Quem se lembraria de recrutar, para uma obra desta natureza, um trio de arquitetos que, à época, tinha apenas acabado a formação académica e estava a colaborar com outros arquitetos já estabelecidos? Esta encomenda permitiu-lhes crescer como profissionais, demonstrar as suas competências e construir uma obra de qualidade, quer para o cliente, quer para a cidade. Desde há vários anos que são raríssimos os concursos públicos de arquitetura em Portugal. Isso pode ajudar a explicar porque é que hoje é tão raro encontrar novos arquitetos a fixar escritório em Portugal, apesar de ainda existirem competências para isso. O caso da sede da Ordem dos Arquitetos, como já o tinha sido nos idos anos 80 com as obras de Manuel Graça Dias e Egas José Vieira em Lisboa, e José Carlos Portugal, Helena Rente e Tiago Falcão, no Porto, é um exemplo das virtudes dos concursos como forma de acesso à encomenda.
Financiamento e função
Não foi por acaso que a obra demorou 14 anos a conseguir pôr-se de pé. A história é complicada mas acabou por acabar em bem, graças a um financiamento substancial do QREN para a região Norte que levou a várias revisões do projeto e ao esforço de várias direções da Ordem dos Arquitetos. Uma das questões relevantes para obter esse financiamento foi a possibilidade de transformar esta obra numa obra exemplar, cumprindo todos os requisitos energéticos para a nossa “era da sustentabilidade.” Um edifício com os melhores padrões de comportamento, classe A ou cor verde consoante as siglas com que a burocracia mecânica gosta de apodar os edifícios. Esse financiamento tornou imperativo transformar a obra num exemplo, recorrendo a ações de formação para restauro e técnicas de construção tradicional em pleno estaleiro mas, sobretudo, obrigando o projeto a adotar um sem número de soluções construtivas para responder aos novos padrões de comportamento energético dos edifícios. Pode parecer que não, mas isso tem um impacto substancial nas soluções construtivas. Imagine-se uma janela com um vidro simples de 4 milímetros, por onde passa um frio de rachar. Agora imagine-se redesenhar essa janela para ser igual a si própria, mas com um vidro duplo e caixa-de-ar, com 11 milímetros e mais do dobro do peso. Não é difícil imaginar que o caixilho tem de ser mais robusto, e provavelmente mais espesso, deformando as proporções e relações que tão bem caracterizavam as casas do Porto (e já nem sequer estamos a falar das imperfeições que os vidros antigos tinham, imperfeições que coavam a luz de um modo singular, gerando reflexos impensáveis nas chapas de vidro de hoje). Os arquitetos NPS responderam com mestria a esta e tantas outras exigências de conciliação técnica, fazendo o edifício resultar numa obra coerente.
Há muitas instâncias de legitimação das obras de transformação do edificado, desde os serviços municipais às comissões patrimoniais, mas neste caso, a batuta do financiamento por via do exemplo energético dá lugar à pergunta: o financiamento do projeto pode ter impacto na expressão das fachadas da cidade? A resposta é complexa, mas uma coisa é clara: as formas de financiamento têm um impacto direto no desenho da transformação da cidade e da arquitetura. Neste caso, porque os arquitetos foram capazes e competentes, essa exigência redundou em qualidade.
O último QREN foi pródigo no financiamento a operações de reabilitação do património edificado, sobretudo em operações ligadas ao turismo, fosse ele turismo-turismo ou residências-sénior, apartamentos de luxo, condomínios e tantos outros programas de promoção imobiliária abrigados sob o guarda-chuva turístico. Entre eles, são raros os projetos que tiveram a inteligência arquitetónica da nova sede da Ordem dos Arquitetos. E essa distinção não tem apenas a ver com o cuidado no desenho das caixilharias, na maior parte dos casos parodiadas em PVCs desengonçados. Sob a capa da proteção do património, e com financiamento abundante, a cidade tem-se transformado à custa da preservação de fachadas para camuflar construções medíocres, que em pouco ou nada consolidam ou preservam o edificado existente. Ao contrário da sede da Ordem, que traz à cidade funções capazes de criar emprego qualificado, a monocultura do turismo tende a expulsar do centro a diversidade funcional (para não falar da diversidade social da habitação) que ainda existia. Essa singularidade de um edifício de administração, capaz de concentrar emprego no centro urbano é, também, um aspeto exemplar desta obra.
Lições
Da visita à obra, convém reter algumas conclusões. A primeira é a possibilidade de incorporar nos edifícios (restauros, reabilitações ou construções novas) sistemas técnicos sofisticados (ventilações, redes de dados, energia, etc.) sem destruir as qualidades originais e únicas que caracterizam o património da cidade. A segunda é a possibilidade de fazer conviver, com harmonia e coerência, várias formas de intervenção no edificado, como os três géneros que aqui foram adotados. A terceira conclusão refere-se à resistência de soluções espaciais neutras, em que a indeterminação funcional permite aos edifícios adaptarem-se e serem úteis para muitas coisas, muitas delas que nunca se imaginariam à partida. Outra conclusão é que a experiência se consegue em obra, e que recompensa confiar na formação dos arquitetos, sendo fundamental abrir possibilidades de trabalho aos mais novos sob pena de estes terem de continuar a emigrar para construir.
Esta obra dos arquitetos NPS não brilha sob os holofotes apontados para as novidades transcendentes, não era essa a sua ambição. Mas apesar da sua singularidade, existem espalhados pela cidade numerosos exemplos como este, obras em que a inteligência da construção presta um serviço notável à consolidação da cidade. Em geral, são arquitetos discretos e novos, capazes disto e de muito mais. Haja oportunidades para fazer melhor.
por André Tavares, in Público | 13 de abril de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público