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Inhotim? Um museu fora dos padrões, até para a sua nova curadora portuguesa
Depois de cinco anos no Museu de Arte Moderna do Rio, a portuguesa Marta Mestre é a nova curadora de arte do Instituto Inhotim, o maior centro de arte contemporânea ao ar livre da América Latina.
Quando Marta Mestre chegou ao Brasil pela primeira vez, foi logo para viver. Só não imaginava que fosse por tanto tempo. “Eu nunca tinha vindo ao Brasil, não conhecia o Brasil e não pensei que iria ficar aqui muito tempo”, diz a curadora portuguesa de 35 anos, sentada no café do Parque Lage, no Rio de Janeiro, à beira da piscina de água verde que o cineasta Joaquim Pedro de Andrade transformou numa feijoada humana em Macunaíma (1969).
Depois de uma experiência de cinco anos no Museu de Arte Moderna do Rio, Marta Mestre é, desde o início de abril, a nova curadora de arte do Instituto Inhotim, o centro de arte contemporânea inaugurado há dez anos em Minas Gerais, que tem obras inéditas de Hélio Oiticica, Cildo Meirelles, Olafur Eliasson, Dan Graham e Matthew Barney, entre muitos outros.
Idealizado por Bernardo de Mello Paz, um milionário que fez fortuna na mineração, Inhotim é um lugar único, fora do modelo dos museus urbanos e do eixo cultural do país, que se tornou visita obrigatória tanto para brasileiros como para estrangeiros. Em agosto, alcançou a marca dos dois milhões de visitantes. Localizado em Minas Gerais, um estado vizinho do Rio de Janeiro, conhecido sobretudo pela exploração mineira e pelas cidades históricas de arquitetura colonial (Ouro Preto, Tiradentes, Diamantina), Inhotim é uma espécie de parque temático da arte contemporânea, com pavilhões permanentes dedicados a artistas individuais e obras site-specific, e é também um jardim botânico, com lagos e a maior coleção de palmeiras do mundo. Muito provavelmente é o único museu do mundo onde os visitantes são incentivados a trazer fato de banho: existem duas piscinas que são também obras de arte.
Marta Mestre visitou Inhotim pela primeira vez em 2010, pouco depois da sua chegada ao Brasil. “Tive a sensação de que estava a entrar num lugar muito especial, muito diferente, num espaço-tempo distinto do resto dos museus que eu estava habituada a ver”, diz. “Para mim, mais do que qualquer outra coisa, Inhotim tem um dado muito importante. Toda a cadeia produtiva do artista assenta numa escala muito específica que condiciona a obra de arte. As galerias replicam o tamanho da casa do colecionador, que, por sua vez, replica o tamanho do atelier do artista. Há uma padronização. A ideia curatorial de Inhotim é encomendar projetos para uma escala fora dos padrões museológicos. As obras ali extravasam um padrão que sempre foi o padrão da arte, até mesmo da arte contemporânea. Para um visitante, Inhotim propõe um deslocamento desse padrão – vinculado a um outro, que é a natureza.”
Marta Mestre vai integrar a equipa curatorial formada pelo norte-americano Allan Schwartzman, o curador principal, baseado em Nova Iorque, e pelo alemão Jochen Volz, que é também o curador da Bienal de Arte de São Paulo (a ter lugar entre setembro e dezembro deste ano). Foi sondada diretamente pelos curadores, já depois de ter deixado o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio, e passou por um processo seletivo de entrevistas, juntamente com outros candidatos, antes de ser escolhida.
Marta vai ser a curadora residente e, como notava recentemente o jornal carioca O Globo num perfil sobre ela, tem “um discurso pouco estridente para o museu em que tudo é grandioso”. E que continua em expansão: a 19.ª galeria permanente, dedicada à fotógrafa suíço-brasileira Claudia Andujar, abriu em novembro do ano passado, e estão planeados quatro novos pavilhões de artistas, já definidos, embora ainda sem data prevista – Ernesto Neto, Olafur Eliasson, Anish Kapoor e Nuno Ramos.
Mas a curadora portuguesa prefere falar dos seus planos para “consolidar a coleção” e “ativar” as quatro galerias de exposições temporárias. Com 75 artistas brasileiros e 190 internacionais – incluindo a dupla portuguesa João Maria Gusmão e Pedro Paiva, com uma série de vídeos –, a coleção de Inhotim é “muito maior do que aquilo que está exposto”. Marta quer criar exposições temporárias que reforcem os conceitos fundamentais do projeto e proporcionem diálogos entre as obras de diferentes artistas. “Para mim, o projeto agora é reforçar todas essas sinalizações que foram feitas matricialmente, há dez anos: arte site-specific, relação arte-natureza, botânica. Como tudo isto pode ser consolidado? Que artistas podem resignificar estas sementes que foram plantadas? Como ligar Tunga [artista brasileiro] com Victor Grippo [artista argentino]? É esse tipo de costura subterrânea que eu gostaria, juntamente com a equipa de curadores, de priorizar.”
O trabalho que desenvolveu como curadora assistente no MAM, programando artistas brasileiros e internacionais e organizando exposições temporárias a partir da coleção que propunham leituras mais amplas do que um simples alinhamento cronológico, terá sido determinante para o convite de Inhotim.
“A curadoria apreciou essa capacidade de criar linhas narrativas entre Brasil e arte estrangeira. Fiz alguns projetos em que era essa a minha prioridade. Dar a ver a história brasileira através de um olhar estrangeiro, por exemplo: é possível contar a colonização, a tropicalidade, a antropofagia, não só através do olhar brasileiro, mas também estrangeiro.” Ela também acredita que o seu background institucional foi um ponto a favor. “Para trabalhar em lugares destes é importante uma curadoria que pensa institucionalmente, que não é só uma curadoria de projetos autónomos, independentes, mas que pensa o todo – serviço educativo, botânica, captação financeira para projetos.”
Antes de Inhotim
Natural de Beja e formada em História de Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, antes de ir para o Brasil Marta Mestre coordenou durante três anos, entre 2005 e 2008, o Centro de Artes de Sines, onde dirigiu a programação do centro de exposições, auditório e serviço educativo. Foi o momento em que, aproveitando o último grande ciclo de fundos europeus, a rede cultural do país se expandiu e cada autarquia procurava ter o seu próprio centro cultural. “Faço parte desses técnicos de curadoria e de programação que fizeram essas redes para a cultura”, diz. Marta estava no segundo ano do doutoramento quando se candidatou e ganhou uma bolsa do programa Inov-art – iniciativa do Ministério da Cultura – para fazer um estágio remunerado no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio.
“Essas bolsas permitiam uma experiência de trabalho num outro país, um estágio para especialização e formação na área cultural. Eu estava a querer ter uma experiência fora de Portugal, fora da Europa. Estava interessada em conhecer outras formas de trabalho, menos hierarquizadas, menos europeizadas”, explica. “Nesse momento, em 2010, ainda não se falava muito de crise em Portugal. Claro que a cultura nunca foi um campo muito privilegiado, mas ainda assim havia uma situação mais estável [do que atualmente].” Marta lembra-se de Beatriz Batarda dizer num encontro com os bolseiros do Inov-art no Palácio de S. Bento: “Vão e não voltem.”
No final de um estágio de nove meses, o curador do MAM, Luiz Camillo Osorio, convidou-a para trabalhar como curadora assistente. Nos últimos cinco anos passaram pelo MAM mostras de Alberto Giacometti, Louise Bourgeois, Ron Mueck, Nan Goldin, entre outros, e a arte contemporânea brasileira foi enfatizada. A programação foi dinamizada com ciclos de debates e os programas educativos foram reforçados. Quando Luiz Camillo Osorio e Marta Mestre anunciaram a sua saída do MAM, no final de 2015, o Globo elogiou o trabalho dos curadores, que descreveu como “responsáveis por anos áureos” no museu carioca. A saída foi voluntária, diz Marta. “Teve que ver com uma relação de confiança: o Camillo chamou-me para trabalhar com ele e o Camillo ia sair para ser professor a tempo integral e diretor do Departamento de Filosofia na PUC [universidade privada no Rio de Janeiro]. Uma vez que ele ia sair, para mim não fazia sentido ficar. Eu queria também mudar, ter outra experiência. Há um tempo útil nas coisas, para estabelecer um projeto.”
Apesar de já se interessar por arte brasileira em Portugal, o Brasil expandiu naturalmente o seu universo de possibilidades artísticas. Desde logo, porque percebeu que, se insistisse em olhar para muita da arte brasileira a partir de uma perspetiva europeia, e portanto mais formal, nunca deixaria de ser outsider. “Há um lado enxuto, muito formal, na arte portuguesa, especialmente a contemporânea. Tunga é o contrário disso: há um barroquismo, um excesso que tem que ver com o inconsciente.” O pernambucano Tunga (n. 1952) é um dos artistas mais representados em Inhotim e o único com dois pavilhões dedicados à sua obra. “Se a gente olhar para Tunga com um modelo europeu, vai perder muito”, diz Marta Mestre. “Não é que tenha de me libertar das referências europeias, mas tenho de abrir um espaço. Tenho de... kill my darlings [matar os meus preciosismos]. Caso contrário, não vou conseguir entender. Isso, para mim, foi uma aprendizagem fundamental.”
por Kathleen Gomes (no Rio de Janeiro), in jornal Público | 12 de abril de 2016
no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Público