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Uma arquitetura para reinventar o universalismo

Os universalistas – 50 anos de arquitetura portuguesa é uma exposição que vai ser inaugurada esta terça-feira em Paris.

Sede da Fundação Calouste Gulbenkian, LisboaGONÇALO SANTOS Bairro da Malagueira, Évora ANTÓNIO CARRAPACHO Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, Coimbra ADRIANO MIRANDA Piscina das Marés, Leça da Palmeira ADRIANO MIRANDA Museu Iberê Camargo, BrasilDR Edifício Franjinhas, Lisboa CARLOS LOPES Câmara de Matosinhos FERNANDO VELUDO/NFACTOS Casa das Mudas, Madeira MIGUEL SILVA Estádio Municipal de Braga PAULO PIMENTA Hotel Dom Henrique, Porto PAULO RICCA Nuno Grande, comissário da exposição MARTIN HENRIK

Nuno Grande é o comissário da mostra, que continua a assinalar o meio século da presença da Fundação Gulbenkian na capital francesa.

A sede da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, projetada pelos arquitetos Alberto Pessoa, Ruy d’Athouguia e Pedro Cid; o Estádio do Povo, em Bagdad (Francisco Keil do Amaral e Carlos Manuel Ramos); a Embaixada de Portugal em Brasília (Raul Chorão Ramalho); a Igreja da Machava, em Maputo (Pancho Guedes); o Orfanato Helen Liang, em Macau (Manuel Vicente); o Edifício Bonjour Tristesse, em Berlim (Álvaro Siza); a sede do Governo do Brabante Flamengo, na Bélgica (Gonçalo Byrne); o Teatro-Auditório de Poitiers, em França (João Luís Carrilho da Graça); o Museu da Fundação Iberê Camargo, no Brasil (Álvaro Siza); o Crematório de Uitzicht, na Bélgica (Eduardo Souto de Moura). Dez exemplos de como a arquitetura portuguesa é universalista. É-o não apenas porque está presente nos quatro cantos do mundo, mas porque simultaneamente expressa uma autoria portuguesa e adequa-se ao lugar e à cultura que a encomendou e acolhe.

Este é o princípio aglutinador das 50 obras com que o arquiteto e professor Nuno Grande (n. Luanda, 1966) quis contar a história do último meio século da arquitetura portuguesa, numa exposição que esta terça-feira é inaugurada em Paris, na Cité de l’Architecture & du Patrimoine, mesmo em frente à Torre Eiffel.

Trata-se de mais uma iniciativa do programa com que, desde o ano passado, a Gulbenkian vem assinalando os 50 anos da inauguração da sua delegação na capital francesa, e que na próxima semana, a 20 de abril, se prolongará com a retrospetiva da obra de Amadeo de Souza-Cardoso, no Grand Palais.

O comissário da exposição de arquitetura chamou-lhe, de resto, Os universalistas. Mas com “u” minúsculo. Por um lado, retomando “a relação aberta que os portugueses têm com o mundo” e que esteve expressa em diferentes momentos da História, desde os Descobrimentos até ao fenómeno da emigração, passando pela colonização e pela diáspora, e com expressões que “chegam à literatura e ao cinema”, nota Nuno Grande, lembrando textos de Agostinho da Silva, José Gil e Eduardo Lourenço, ou os filmes de Manoel de Oliveira e de Miguel Gomes.

Mas “universalistas” também por contraposição com o correspondente francês deste conceito fundado com o iluminismo do século XVIII, e que “de alguma maneira foi imposto de cima para baixo, o que hoje já não colhe”, acrescenta Nuno Grande ao PÚBLICO, exemplificando com a perda de influência que a França vem sofrendo no contexto geopolítico mundial.

“É preciso repensar a ideia de cidadãos que vem da Revolução Francesa; nós não queremos ser todos iguais; o que é interessante, hoje, na Europa, é cultivar as diferenças culturais entre os vários países”, diz o comissário, chamando a atenção para o esgotamento do modelo francês. “Esta exposição tenta, de uma forma algo provocadora, interpelar e questionar a arquitetura francesa, e a França, a partir [da produção arquitetónica] deste povo pequenino do canto sul da Europa”, que historicamente se tornou universalista “por defeito”, como explica Eduardo Lourenço.

O filósofo e ensaísta é, de resto, uma espécie de “guia” desta exposição, através de uma seleção de textos e entrevistas que Nuno Grande dispôs no percurso da mostra que vai ocupar 450 metros quadrados na Cité de l’Architecture – e cujo auditório vai acolher esta segunda-feira um colóquio com vários críticos portugueses e franceses, e alguns dos arquitetos representados em Les universalistes.

Os últimos 50 anos da arquitetura portuguesa serão mostrados numa seleção de documentos, reproduções de projetos originais e plantas, fotografias, e ainda uma série de caricaturas de João Abel Manta e um diaporama fotográfico de Alfredo Cunha, que contam a história do país desde a década de 1960.

A exposição inclui ainda a edição de um catálogo com as obras representadas, e com textos de arquitetos, historiadores e críticos portugueses (Ana Tostões, Ana Vaz Milheiro, José António Bandeirinha, Jorge Figueira e Ricardo Carvalho) e franceses (Francis Rambert, diretor do Instituto Francês da Arquitetura, Jean-Louis Cohen, Dominique Machabert e Jacques Lucan).

 

Cinco capítulos

Desafiado pela Gulbenkian a mostrar em França os profissionais que foram centrais para criar as gerações de arquitetos que temos hoje, e de como eles, de Távora a Siza, de Teotónio Pereira a Byrne, “cumpriram o desígnio histórico” da arquitetura portuguesa, Nuno Grande decidiu privilegiar na sua seleção “arquitetos acima dos 50 anos, com obra consolidada e com algum prestígio internacional”.

“Não sou um ‘olheiro’ do futebol para descobrir novos valores, e esta não é uma exposição de futurologia”, justifica o comissário, explicando ter pretendido mostrar “como é que essa herança se vai transmitindo de geração em geração”.

Assim, Les universalistes começa por elencar alguns nomes já desaparecidos, mas que fizeram parte desse “período heroico” da arquitetura portuguesa que passou pela crítica ao movimento moderno e pelo pós-modernismo, “regressando à cultura popular e dando sempre atenção às geografias do outro”. E também autores que nunca tinham sido publicados em França.

Na Cité de l’Architecture, ao lado dos históricos Keil do Amaral e Távora, e dos “Pritzkers” Álvaro Siza e Souto de Moura, estão os “africanos” Vasco Vieira da Costa e Fernão Simões de Carvalho, Carlota Quintanilha e Pancho Guedes, mas também figuras com obra mais circunscrita à “metrópole”, como José Carlos Loureiro ou Alcino Soutinho.

Numa seleção onde contou com a colaboração de Souto de Moura como consultor científico, Nuno Grande alinhou o último meio século da arquitetura portuguesa em cinco capítulos, com a marca comum do universalismo. O primeiro aborda o Internacionalismo (1960-74), e abre com o edifício-sede da própria Fundação Gulbenkian, em Lisboa, que o comissário classifica como “um encontro alquímico” de três arquitetos de formação moderna: Ruy d’Athouguia, Alberto Pessoa e Pedro Cid. Construído ao longo de uma década (1959-69), o edifício reflete essa passagem do tempo, tendo começado como um projeto modernista e acabado num complexo orgânico, próximo duma estética brutalista, bem equilibrado com os jardins e o lugar de implantação.

Este capítulo, que associa o universalismo ao internacionalismo e ao mesmo tempo a linguagem popular à erudita – a “terceira via” perseguida por Távora –, fecha com a Embaixada de Portugal em Brasília, obra de Raul Chorão Ramalho inaugurada em 1974.

A Igreja da Machava (Pancho Guedes), na periferia de Maputo, abre o segmento do Colonialismo (1961-75), com referências a outros arquitetos que, tendo sido formados em Portugal ou na Europa – Vasco Vieira de Almeida e Fernão Simões de Carvalho, por exemplo, trabalharam no atelier de Le Corbusier –, marcaram as principais cidades de Angola e Moçambique com uma linguagem integrada na paisagem do lugar.

O capítulo da Revolução (1974-79) – do conjunto habitacional Pantera Cor-de-Rosa, em Chelas (Gonçalo Byrne e António Reis Cabrita), ao Bairro da Malagueira, em Évora (Álvaro Siza) – é marcado pelas experiências do SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), programa de alojamento e habitação social possibilitado pela revolução do 25 de Abril – o que permitirá fazer um paralelismo com experiência idêntica em França nos anos 60, com os bidonvilles e o alojamento das pessoas regressadas da Argélia, após a independência.

A entrada de Portugal na Comunidade Europeia na década de 80 abre novas oportunidades de trabalho para os arquitetos portugueses, dentro e fora de portas. É o tempo do Europeísmo (1980-00), que “vem substituir o mito do Império”, nota Nuno Grande, e do pós-modernismo. Mas é também o tempo em que se aproveitaram os dinheiros europeus para construir novas infraestruturas públicas, com apostas no património e no turismo, mas também em novos espaços de cultura – do Convento de Santa Marinha da Costa, em Guimarães (Távora), ao Teatro Municipal de Almada (Manuel Graça Dias, Edgar José Vieira e Gonçalo Afonso Dias).

Com o novo século, chega a Globalização (2001-16). Uma das novas expressões desse mundo global é o futebol, cujo Euro 2004 permitiu escavar o Estádio Municipal de Braga (Souto de Moura) a partir de uma pedreira, mas também aproveitou à internacionalização cada vez mais sustentada dos arquitetos nacionais, como o prova o novo Centro de Criação Contemporânea que os irmãos Aires Mateus estão a concluir em Tours – mesmo se a França não é dos clientes mais fiéis da arquitetura portuguesa. Mas disso vai certamente falar-se ao longo das próximas semanas, em Paris, nas várias iniciativas que vão acompanhar a exposição Les universalistes, que vai ficar patente até 29 de agosto.

 

50 projetos:

1 – Sede e Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa (1959-69), Alberto Pessoa, Ruy d’Athouguia e Pedro Cid.

2 – Hotel do Mar, Sesimbra (1959-67), Francisco da Conceição Silva.

3 – Pousada de Santa Bárbara, Oliveira do Hospital (1955-71), Manuel Tainha.

4 – Casa em Albarraque, Sintra (1959-61), Raul Hestnes Ferreira.

5 – Convento das Irmãs Franciscanas de Calais, Gondomar (1961-71), Fernando Távora.

6 – Piscina das Marés, Leça da Palmeira (1961-66), Álvaro Siza.

7 – Complexo desportivo do Estádio Al-Shaab, Bagdad – Iraque (1961-66), Francisco Keil do Amaral e Carlos Manuel Ramos.

8 – Igreja do Sagrado Coração de Jesus, Lisboa (1962-73), Nuno Portas e Nuno Teotónio Pereira.

9 – Edifício Franjinhas, Lisboa (1965-69), Nuno Teotónio Pereira e João Braula Reis.

10 – Hotel Dom Henrique, Porto (1965-72), José Carlos Loureiro, Luís Pádua Ramos e Chaves de Almeida.

11 – Agência bancária, Oliveira de Azeméis (1971-74), Álvaro Siza.

12 – Embaixada de Portugal no Brasil, Brasília (1971-74), Raul Chorão Ramalho.

13 – Igreja da Sagrada Família, Machava – Moçambique (1961-64), Amâncio “Pancho” Guedes.

14 – Estação Ferroviária da Beira – Moçambique (1964-66), João Garizo do Carmo, Francisco José de Castro e Paulo Melo Sampaio.

15 – Tesouraria da Fazenda, Vila Cabral (atual Lichinga) – Moçambique (1961-68), João José Tinoco e M. C. Quintanilha.

16 – Liceu do Lobito – Angola (1962-67), Francisco Castro Rodrigues.

17 – Radio Nacional de Angola, Luanda (1963-69), Fernão Simões de Carvalho e J. P. da Cunha.

18 – Edifício da Praça Mutamba, Luanda – Angola (1968-70), Vasco Vieira da Costa.

19 – Orfanato Helen Liang, Macau (1963-64), Manuel Vicente.

20 – Conjunto de habitação coletiva A Pantera Côr-de-rosa, Chelas – Lisboa (1971-75), Gonçalo Byrne e António Reis Cabrita.

21 – Bairro das Antas, Porto (SAAL – Norte, 1974-76), Pedro Ramalho.

22 – Bairro de São Victor, Porto (SAAL - Norte, 1974-76), Álvaro Siza.

23 – Bairro da Quinta das Fonsecas, Lisboa (SAAL - Lisboa e Centro Sul, 1974-83), Raul Hestnes Ferreira.

24 – Bairro do Casal das Figueiras, Lisboa (SAAL - Lisboa e Centro Sul, 1974-79) Gonçalo Byrne.

25 – Bairro da Malagueira, Évora (1977), Álvaro Siza.

26 – Pousada de Santa Marinha da Costa, Guimarães (1972-85), Fernando Távora.

27 – Reabilitação da Casa dos Bicos, Lisboa (1980-83), Manuel Vicente e João Santa-Rita.

28 – Agência bancária, Aviz (1983-90), Raul Hestnes Ferreira.

29 – Câmara de Matosinhos (1980-87), Alcino Soutinho.

30 – Edifício Bonjour Tristesse, Berlim – Alemanha (1982-88), Álvaro Siza.

31 – Casa das Artes, Porto (1981-91), Eduardo Souto de Moura.

32 – Casa na Quinta do Lago, Algarve (1984-89), Eduardo Souto de Moura.

33 – Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (1986-94), Álvaro Siza.

34 – Escola Superior de Comunicação Social, Lisboa (1988-93), João Luís Carrilho da Graça.

35 – Igreja de Santa Maria, Marco de Canaveses (1993-96), Álvaro Siza.

36 – Escola Superior de Arte e Design, Caldas da Rainha (1993-97), Victor Figueiredo.

37 – Sede do Governo da Província do Brabante Flamengo, Louvaina – Bélgica (1998-03), Gonçalo Byrne.

38 – Teatro Municipal Joaquim Benite, Almada (1998-05), Manuel Graça Dias, Edgar José Vieira e Gonçalo Afonso Dias.

39 – Estádio Municipal de Braga (2000-04), Eduardo Souto de Moura.

40 – Centro das Artes Casa das Mudas, Calheta – Madeira (2001-04), Paulo David.

41 – Teatro Auditório de Poitiers – França (2000-07), João Luís Carrilho da Graça.

42 – Museu Iberê Camargo, Porto Alegre – Brasil (2000-08), Álvaro Siza.

43 – Museu Marítimo de Ílhavo (1999-12), ARX (Nuno Mateus e José Mateus).

44 – Remodelação do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, Coimbra (2002-08), Atelier 15 (Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez).

45 – Casa das Histórias Paula Rego, Cascais (2006-09), Eduardo Souto de Moura.

46 – Conservatório de Música de Coimbra (2007-10), J. P. dos Santos.

47 – Crematório de Uitzicht, Kortrijk – Bélgica (2008-11),Eduardo Souto de Moura.

48 – Casa em Ovar (2011-13), José Paulo dos Santos.

49 – Centro de Arte Contemporânea Arquipélago, Ribeira Grande – São Miguel, Açores (2010-15), João Mendes Ribeiro e Menos é Mais Arquitetos.

50 – Centro de Criação Contemporânea Olivier Debré, Tours – França (2012-16), Aires Mateus.

 


por Sérgio C. Andrade, in jornal Público | 11 de abril de 2016

no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Público

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