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Livraria Ulmeiro :: Os livros não têm prazo de validade

Entramos nesta livraria/editora de Lisboa que corre o risco de fechar à procura dos seus autores e encontramos um bocadinho da história do país.

Enric Vives-Rubio Enric Vives-Rubio Enric Vives-Rubio Enric Vives-Rubio Enric Vives-Rubio Enric Vives-Rubio

Os livros ainda podem ser uma forma de resistir. Há milhares de livros por toda a parte, em estantes, amontoados em balcões estreitos e cadeiras ou empilhados no chão. Pelo meio há vinis, pinturas, desenhos emoldurados, vidros decorativos e outros objetos vintage, a lembrar que a Livrarte não é só uma livraria e não é, sobretudo, uma livraria qualquer. Quem quer chegar às prateleiras da “Arte”, onde é possível encontrar grande álbuns de pintura francesa, roteiros muito antigos do Louvre e de Arte Antiga e biografias de El Greco, Fragonard ou Delacroix, precisa de contornar uma mesa com ficção portuguesa e estrangeira, uma mala de viagem em cartão, e caixotes e caixotes de livros de bolso e revistas dos anos 1960 e 70. Um pequeno labirinto que deixará a muitos saudades se as portas deste espaço no bairro de Benfica, em Lisboa, abertas há quase 50 anos, vierem a fechar.

José Antunes Ribeiro, o proprietário e editor da Ulmeiro (as duas casas confundem-se, sempre se confundiram), tudo fará para que esta livraria, misto de loja de “coisas antigas” e alfarrabista, se mantenha em atividade. E isso passa por dar entrevistas a jornais e revistas, por receber “clientes ilustres” como o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o poeta e crítico Pedro Mexia ou o humorista Ricardo Araújo Pereira, e por atender os “amigos de sempre”, que nunca deixam de aparecer para comprar livros. Isso passa, inclusive, por reuniões com o ministro da Cultura, João Soares, com quem ficou de voltar a conversar sobre eventuais apoios aos livreiros independentes.

“O negócio mudou muito nos últimos tempos e os portugueses perderam poder de compra, o que não é novidade para ninguém. Aquilo que já era difícil de segurar tornou-se nos últimos três, quatro anos, impossível de manter”, diz ao PÚBLICO, numa tarde de semana em que são muitos os que entram na loja, de estudantes africanos de Economia a professores de Direito que procuram poesia, passando pela Carminho e a avó, que vêm à procura de Salvador, o grande gato ruivo que costuma dormir na montra. “Esta é uma livraria de bairro que se orgulha muito de ser uma livraria de bairro. Muitos dos que entram na porta são nossos vizinhos, nossos amigos”, assume José Antunes Ribeiro, garantindo que naquele espaço “os livros não são coisa sagrada” que só se visita às vezes.

“Para muitas pessoas parece que o livro está numa espécie de capela onde só entram os fiéis, os eleitos. E a pensar assim não vamos lá. O livro tem de ser uma coisa que nos faz falta no dia a dia, é preciso dessacralizá-lo, dinamizar o acesso, baixar os preços. É preciso mostrar que os livros não mordem e não têm prazo de validade. Temos a vida toda para ler um grande romance ou um grande poeta.”

Foi no início de fevereiro que se tornou pública a difícil situação da Livrarte, indissociável da Ulmeiro, e desde aí as manifestações de apoio têm-se sucedido, na Internet e fora dela. Pessoas do Algarve e do Alentejo que nunca tinham estado na livraria deslocaram-se de propósito a Lisboa para as feiras que o editor tem organizado – não foi só Marcelo Rebelo de Sousa que comprou dezenas de livros, embora seja bem provável que só o chefe de Estado tenha juntado num mesmo lote antigos volumes de Direito Constitucional, folhetos políticos dos anos 1960 e 70 e clássicos juvenis intemporais de Enid Blyton – e até a Câmara de Lisboa já enviou um técnico para tentar perceber como se pode associar aos esforços para salvar aquele espaço ou, pelo menos, o que ele representa, diz José Antunes Ribeiro.

Na análise da situação a que a Livrarte chegou, o editor não poupa críticas à sua própria gestão nem à forma como os pequenos livreiros, “os poucos independentes que ainda restam”, trabalham: “Eu não sou o último dos livreiros, sou apenas um dos últimos. E o que vejo é que, mesmo sendo uma comunidade pequenina, cada um cultiva o seu quintal, sem olhar para os outros, o que não ajuda. Numa altura em que os livros praticamente desapareceram das televisões, em que já não há suplementos especializados nos jornais, e em que nós não temos dinheiro para anunciar como fazem os grandes conglomerados de editoras, temos de nos juntar para criar um circuito alternativo.”

Desse circuito alternativo fariam parte, por exemplo, feiras espalhadas pelo país – “há tanta pequena cidade que não tem uma livraria…” –, com livros “a bons preços”, que poderiam incluir leituras com os autores e concertos. “Tenho a certeza de que cada um dos milhares de livros que aqui estão têm no mundo um interessado. Tenho a certeza de que com livrarias e editores independentes teremos um mercado do livro que arrisca mais.”

Uma casa sem livros
José Antunes Ribeiro tem 73 anos e uma vida dedicada aos livros, com uma passagem breve pela propaganda médica, “um engano” que só teve a vantagem de lhe trazer um amigo, o compositor e guitarrista Carlos Paredes. A escolha de carreira, reconhece, não foi a mais óbvia para quem nasceu numa aldeia entre Tomar e Ourém, numa casa muito humilde, educado por uma mãe austera de fortes convicções religiosas, que o obrigava a rezar o terço todos os dias e que não sabia ler. “O meu pai, que trabalhava para a CP, lia alguma coisa, mas nós só tínhamos três livros lá em casa: um com uma ida à lua, que naquela altura só podia ser ficção, outro do Júlio Verne, Viagem ao Centro da Terra, e um outro, que nunca compreenderei como lá foi parar de tão erudito, Décadas da Ásia, de João de Barros [considerado um dos primeiros historiadores portugueses, nascido ainda no século XV]. O do Júlio Verne, claro, era o meu favorito.”

Foi graças à professora Maria dos Anjos e às bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, que apareciam na aldeia de Alburitel de 15 em 15 dias, que se apaixonou pela leitura. “Ficava à espera que a carrinha da Gulbenkian chegasse a saltava logo lá para dentro. Eles traziam livros de propósito para mim e tudo.”

O percurso nos livros começou na livraria Obelisco, na Amadora, e passou também pela fundação da Assírio & Alvim, no início da década de 1970, embora hoje o seu nome nem sempre apareça associado à história desta editora que tanto tem feito pela divulgação dos grandes nomes da poesia portuguesa e que desde 2012 integra o Grupo Porto Editora.

“No começo, a Assírio era uma editora muito contestatária”, diz, recordando que os primeiros comunicados que saíram da intersindical foram lá impressos. A contestação era, aliás, algo que partilhava com a Ulmeiro, que José Antunes Ribeiro cria em 1970. A edição, diz, via-a – parece vê-la ainda – como uma forma de militância.

Assumindo-se como um homem claramente de esquerda, nunca foi filiado em partido algum, mas sempre deixou claras as suas convicções, assinando em 1965, por exemplo, o manifesto contra a guerra colonial, em que o grupo dos chamados católicos progressistas, de que também faziam parte Nuno Teotónio Pereira, João Bénard da Costa ou Luís Salgado de Matos, denunciavam a cumplicidade entre a Igreja e o regime no que dizia respeito à guerra em África.

Por isso a Livrarte, que começou por ser o Espaço Ulmeiro, foi, desde que abriu, em 1969, um território de debate e de encontro entre escritores, artistas, poetas, críticos e outros intelectuais que se opunham ao Estado Novo. Nas suas tertúlias, onde se podiam encontrar músicos como Carlos Paredes, José Afonso e Vitorino, autores como Luiz Pacheco e Agostinho da Silva, discutia-se política “sem limitações”, conta.

A sua aposta na edição – “a militância contra a guerra colonial orientou muitas das escolhas”, diz – passava por autores africanos que considerava fundamentais para pensar a relação Europa-África, numa altura em que o governo português insistia “na ideia de um império ultramarino, contra tudo e contra todos”.

Esta atitude de resistência fazia com que, no final dos anos 1960, início dos 70, a PIDE, a polícia política do Estado Novo, entrasse com frequência na Ulmeiro e levasse edições inteiras, muitas vezes sem sequer um auto de apreensão. “Era uma coisa completamente abusiva e sem critérios minimamente lógicos. Eu costumava dizer que a trindade era sempre a mesma – Lenine, Estaline e Racine”, brinca José Antunes Ribeiro, garantindo que a terminação dos nomes dos autores e os títulos das obras, por mais inócuo que fosse o seu conteúdo, contava muito. A prová-lo, exemplifica, estão dois dos livros que a polícia do regime apreendeu: A Vida de Nijinsky e O Betão Armado. “Podia ser um livro técnico, de Engenharia, mas tinha 'armado' no título. E, para eles, o Nijinsky [bailarino e coreógrafo russo de origem polaca que foi um dos maiores e mais trágicos nomes da dança do século XX] só poderia ser um perigoso comunista, assim como o Racine [poeta e dramaturgo francês do século XVII]. A censura não olhava para o que lá estava escrito.”

Nesses anos, explica, a Ulmeiro era relevante em termos de “resistência e contestação” pelo que editava, mas também pelo que distribuía na língua original, sobretudo no que toca à literatura em castelhano, de autores como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar.

Em tribunal por um livro
José Antunes Ribeiro, que colaborara com jornais e revistas como o Comércio do Funchal, O Tempo e o Modo e O Diário de Lisboa, publica o primeiro livro na Ulmeiro em janeiro de 1970. Isto Anda Tudo Ligado, do jornalista e poeta Eduardo Guerra Carneiro, foi o título inicial da coleção Cadernos Peninsulares, que haveria de continuar com A Poesia Deve Ser Feita por Todos, obra de Carlos Loures que viria a figurar na extensa lista de obras da editora que foram apreendidas.

Entre os livros que editava e os que vendia na livraria, títulos houve, no entanto, que a PIDE terá considerado como ainda mais desafiadores do regime e dos seus valores, como Portugal Sem Salazar, de Mário Mesquita, O Casamento dos Padres, do padre Felicidade Alves, e Antologia das Mulheres-Poetas Portuguesas, organizada pelo também poeta António Salvado, que neste volume tinha a “veleidade” de mostrar, diz José Antunes Ribeiro, “que o lugar da mulher portuguesa não era a cozinha, ao contrário do que defendia o Estado Novo”.

A polícia chegava a levar 2500 livros, o que acaba por afetar economicamente a editora, recorda. “Queriam acabar com a editora e a livraria. E depois levavam-me também. A minha mulher ficava em pânico, mas a conversa era sempre a mesma: ‘Você é um comunista disfarçado de comerciante’, diziam-me eles.” Numa das vezes, “só para desafiar”, recusou-se a assinar o relatório da sua detenção, justificando-se com o facto de o português em que estava escrito ser mau de mais.

As apreensões foram muitas, mas nenhum dos livros da Ulmeiro, ou por ela distribuídos, teve tanta exposição mediática como o que levou o editor a tribunal militar. E já no pós-25 de Abril. Massacres na Guerra Colonial: Tete, um exemplo, volume com organização, introdução e notas de José Amaro, poeta e jornalista, foi publicado em 1976 e reúne um conjunto de documentos marcados como “secretos” e que dizem respeito a operações das tropas portuguesas na província de Tete, na região central de Moçambique, em dezembro de 1972. Massacres “desde sempre negados e dissimulados pelo Governo português”, lê-se nas primeiras páginas, e que deixaram para trás centenas de mortos, muitos deles mulheres e crianças.

“Ainda hoje me orgulho de ter editado esse livro. Ainda hoje me lembro bem de algumas passagens dos relatórios dos padres que deram conta dos massacres, da crueldade dos militares… É muito difícil esquecer as imagens que esses relatórios nos obrigam a criar na nossa cabeça”, acrescenta José Antunes Ribeiro, lembrando que o processo em tribunal acabou com ele amnistiado porque o que era preciso, diz, era tirar o livro e o que nele se mostrava das páginas dos jornais. “A imprensa pegava muito naquilo para responsabilizar os militares que tinham sido coniventes com o regime e o que interessava era calar-nos. Irritado, na altura, eu cheguei a dizer que queria ser absolvido ou condenado – que uma amnistia não era nada.”

Teotónio Pereira e frei Bento Domingues estavam entre as suas testemunhas de defesa, num julgamento que foi militar porque os documentos que a edição reproduzia deviam ter permanecido secretos. “Ainda hoje há muita coisa por discutir dessa guerra”, defende, com o espírito inquieto e insatisfeito que diz ser uma das marcas da sua personalidade. “Mas se calhar há quem ainda não esteja pronto para essa discussão.”

A Ulmeiro continua
Só “dentro de uma ou duas semanas” é que José Antunes Ribeiro saberá se tem condições para manter a livraria aberta em Benfica. Tem propostas para a levar para outras paragens, mas preferia ficar no bairro. Para já, a única certeza é a de que a editora, que publicou o seu título mais recente há já cerca de seis anos, vai continuar. Com ela gostaria de publicar ainda alguns dos seus autores de sempre, como Antero de Quental, Hélia Correia, Marguerite Duras e Ruy Belo.

Para fazer um bom livro, diz, o escritor não precisa de ter apenas uma boa história – “os melhores livros não têm só uma história, têm muitas, mesmo quando não parece” –, precisa de dominar a sua gramática, que não é só a da língua. O que é a gramática do livro? “Uma série de recursos, de conhecimentos, que o autor vai sedimentando depois de ter lido muitos outros. Não conheço nenhum grande escritor que não seja um grande leitor.”

Para já, José Antunes Ribeiro tem praticamente pronta uma nova revista, dirigida pelo poeta e pintor Hugo Beja, “homem de ciência que Portugal infelizmente não conhece como devia”, e que reúne poesia, conto, ensaio e desenho, tendo neste primeiro número colaboradores como Lídia Martinez, Juan Carlos Mestre, António Serra e Mário Rui Cordeiro.

Esta publicação, cujo lançamento não está ainda marcado, vai chamar-se O Voo da Coruja, a lembrar uma casa no meio da floresta, onde durante mais de 20 anos José Antunes Ribeiro criou estas rapinas que, diz ele, não se podem domesticar. “São como eu, sempre inquietas.”

 


por Lucinda Canelas, in jornal Público | 14 de março de 2016

no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Público

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