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Paulo Cunha e Silva para além do "fetichismo da saudade”

Paulo Cunha e Silva no Castelo de Guimarães em 2012, onde comissariou o programa O Castelo em 3 Actos [Lara Jacinto/Nfactos]

Quatro meses depois da morte do vereador que a refundou, a Galeria Municipal do Porto inaugura P. – uma homenagem a Paulo Cunha e Silva, por extenso. Miguel von Hafe Pérez comissaria uma exposição que vai de João Louro a Joana Vasconcelos, sem passar pelas selfies.
Não é fácil mostrar numa sala o percurso de alguém que se movia em tantas dimensões e mantinha uma actividade intelectual e criativa tão frenética como a de Paulo Cunha e Silva (1962-2015). E é ainda mais difícil fazê-lo numa cidade a ressacar dessa espécie de anfetamina cultural em que se viciara neste últimos dois anos, e que passava também pela omnipresença física do vereador da Cultura, que o próprio aliás ia divertidamente atestando nas célebres selfies que publicava no Facebook.
A exposição P. – uma homenagem a Paulo Cunha e Silva, por extenso, comissariada por Miguel von Hafe Pérez, que se inaugura este sábado, pelas 15h, na Galeria Municipal do Porto, soube evitar os riscos do panegírico grandiloquente e dosear delicadamente a densidade conceptual do homenageado com a leveza e o humor que constituíam traços não menos relevantes da sua personalidade.

Quando lhe colocaram o desafio de fazer esta exposição, o crítico e curador – que trabalhou com Cunha e Silva na equipa de programadores do Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, e que era seu amigo desde os tempos em que este se dava a conhecer com os primeiros colóquios interdisciplinares em Serralves, no início dos anos 90 –, confessa que começou por ficar apreensivo, depois “disse logo que sim, por razões óbvias”, e finalmente pensou: “Como é que vou resolver isto?”.

A resposta que deu a essa pergunta, uma resposta visual, pode ser agora apreciada num espaço onde Von Hafe Pérez programou algumas das mais importantes exposições do Porto 2001, e que esteve uma década desaproveitado, até Cunha e Silva, já como vereador da Cultura de Rui Moreira, ter apostado na sua revalorização.

Dividida em dois núcleos principais, P. – uma homenagem a Paulo Cunha e Silva, por extenso inclui uma parte mais documental, que acompanha o percurso público de Cunha e Silva, e um conjunto de obras de artes plásticas, cuja escolha, explica o comissário, “advém de uma espécie de redução, no sentido culinário, das exposições que ele foi organizando e dos textos que foi escrevendo para artistas”.

Não podiam faltar os nomes envolvidos no programa de arte pública que o vereador lançara no Porto, como Dalila Gonçalves, Rui Chafes – com duas obras colocadas no exterior da galeria, nos jardins do Palácio de Cristal , Alberto Carneiro ou João Louro, cujo The Most Beautiful Man Names in the World – Curator’s Crashed Car (2013) é a peça que imediatamente atrai o olhar de quem entra na sala, que esta sexta-feira se abriu para receber a visita do novo Presidente da República mas não para os jornalistas. Trata-se de um Mercedes preto semi-destruído por uma acidente, no qual Louro colou umas tiras em que se lêem nomes como Elvis Presley ou Hugo Ball.

A obra acaba por ser também um testemunho “dessa auto-ironia tão característica do Paulo”, diz Von Hafe Pérez, já que este é o carro em que Cunha e Silva teve um gravíssimo acidente em Dezembro de 2011, quando ia para uma reunião em Guimarães, onde estava a preparar a exposição O Castelo em Três Actos, que incluía o próprio João Louro.

“Capotou três vezes na auto-estrada, e com esse hábito que tinha de tornar públicos episódios da vida dele, o que era mais uma estratégia de comunicação do que um fenómeno de exibicionismo, colocou fotografias do acidente no Facebook”, conta ao PÚBLICO João Louro. “Como eu já tinha feito obras com automóveis, lancei-lhe, em tom de graça, uma pequena provocação, e comentei que aquilo até parecia uma obra minha." Paulo Cunha e Silva respondeu de imediato: “Queres o carro?”. Louro quis. “Espalhei nomes de homens pelas cicatrizes do automóvel e transformei o lixo em luxo, numa obra de arte."

"Um homem da imagem"
Se a escolha desta obra é auto-evidente, os motivos que levaram Von Hafe Pérez a escolher outras são de diversa ordem. As telas de Albuquerque Mendes do início dos anos 90 coincidem cronologicamente com o momento em que Cunha e Silva se estreava como programador com a exposição e colóquio As Cores do Corpo, em Serralves; as peças de Cristina Mateus (como as de Chafes) evocam a exposição A Experiência do Lugar, que Von Hafe Pérez e Cunha e Silva co-organizaram em 2001.

A presença do vídeo Ornithes, de Gabriel Abrantes, não é alheia ao facto de ter sido produzido para a referida exposição que Cunha e Silva organizou para a Capital Europeia da Cultura de Guimarães. “E a Joana Vasconcelos está aqui [representada por Menu do Dia (2001), uma obra construída com portas de frigoríficos e casacos de peles] porque o Paulo lhe escreveu um texto muito importante para um catálogo, e porque sei que gostava dela”, acrescenta o comissário.

E há ainda, entre muitas outras, a peça que mais rivaliza com a de Louro para captar o primeiro olhar: a Plataforma (2008), de Miguel Palma, que se vai movendo no espaço, e por isso, embora concebida “num contexto que tinha a ver com o terrorismo e o 11 de Setembro”, pode adquirir, admite Von Hafe Pérez, “um elemento de ligação com a cidade líquida”, um conceito de Zygmunt Bauman que Cunha e Silva assumiu como uma espécie de divisa.

Na gigantesca vitrina da Galeria Municipal estarão expostos documentos que mostram o percurso público de Cunha e Silva. O comissário quis dar particular destaque aos cartazes das muitas iniciativas que este organizou, porque “ele era um homem da imagem, e quando organizava um colóquio, o cartaz era quase tão substancial como o programa”.

A parte mais próxima do conceito convencional de homenagem é transmitida em monitores que alternam excertos de coisas que Cunha e Silva disse e escreveu com imagens suas. “Claro que as imagens dele têm de aparecer, mão não ponho as selfies do Facebook, porque essas estão lá e toda a gente as pode ver”, diz Von Hafe Pérez, que usou estes monitores para “arrumar entre aspas a questão da homenagem sem criar uma coisa que pudesse levar a um fetichismo da saudade”.

Vários excertos testemunham de resto “essa capacidade do Paulo de brincar com a linguagem, desconstruindo conceitos de modo desconcertante e em fórmulas muitas vezes reduzidas”, observa o comissário, que quis assinalar o humor do amigo, “algo que as pessoas tendem a esquecer nestes momentos”. Já ele, pelo contrário, é o que mais vivamente recorda: “Quando as pessoas morrem, tentamos rememorar, e todos os episódios de que me lembro com o Paulo são de galhofa”, diz. “Apesar de termos trabalhado juntos como loucos, e de o Porto 2001 ter sido muito complicado, mesmo nos momentos de crise, com o [ministro da Cultura Manuel Maria] Carrilho e o [Artur] Santos Silva à pancada, só me lembro de nos rirmos os dois à gargalhada."

Um período que quase não pôde documentar nesta exposição: “No fim, o Porto 2001 foi catastrófico e ninguém quis saber dos arquivos, está tudo perdido; lá arranjei uma foto do Paulo a cumprimentar o Dalai Lama, mas foi cedida por um privado."


por Luís Miguel Queirós, in Público | 12 de março de 2016

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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