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Martinho da Arcada quer ocupar sobreloja e assumir-se como “café literário”
Espaço sobre o café frequentado por Fernando Pessoa pertence à Direção-Geral do Tesouro.
Por cima do histórico café Martinho da Arcada, na Praça do Comércio, Lisboa, existe uma sobreloja com uma entrada direta a partir da rua, que se faz por uma grande porta verde mesmo ao lado da esplanada. É nessa sobreloja, atualmente propriedade da Direção-Geral do Tesouro, que o proprietário do Martinho, António de Sousa, e o escritor Luís Machado pretendem instalar o espaço Pessoa Plural – projeto que o ministro da Cultura, João Soares, considerou “de elevado interesse cultural”, num despacho que já seguiu para o Ministério das Finanças, segundo confirmou ao PÚBLICO Elísio Summavielle, adjunto do ministro (e entretanto nomeado presidente do Centro Cultural de Belém).
A ideia, explicam os dois promotores da iniciativa, sentados a uma mesa do Martinho, é “preservar a memória do poeta Fernando Pessoa" através de uma programação com conferências, mesas-redondas, recitais de poesia, espetáculos, projeção de filmes e “eventualmente uma livraria pessoana”. Pretendem também, mensalmente, organizar no restaurante um jantar com uma “ementa pessoana”, criada por Luís Machado, autor do livro À Mesa com Pessoa.
Para isso precisam apenas que o Ministério das Finanças ceda o espaço, que, segundo afirmam, tem atualmente um “arquivo morto”. Houve também já um encontro com a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, para apresentar a ideia. O gabinete da vereadora lembra, contudo, que “o deferimento desta pretensão depende do Ministério das Finanças”.
Há muitos anos – mais exatamente desde 1991 – que Luís Machado e António de Sousa colaboram no esforço de manter atividades culturais no café (hoje restaurante, com um espaço de cafetaria à parte, com entrada própria mas sem mesas) que Pessoa frequentava assiduamente e onde, lembram, “combateu a solidão”, especialmente no final da vida. Questionados sobre se um espaço ligado ao autor do Livro do Desassossego não colidiria com a programação da Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique, defendem que se trata de duas coisas diferentes.
“A Casa Fernando Pessoa é sobretudo uma casa-museu”, argumenta Luís Machado. “O Martinho está aqui num dos eixos mais nobres da cidade, por onde passam diariamente muitas centenas de turistas”. António, que é proprietário do Martinho desde 1989, diz que todos os dias recebe visitantes estrangeiros, entre os quais muitos brasileiros, que querem ver “a mesa de Pessoa” e conhecer o local onde o poeta passou muitas horas da sua vida. “Há choro aqui, há abraços, há muita emoção”, descreve.
O Martinho da Arcada – assim conhecido porque um dos seus antigos proprietários, Martinho Rodrigues, do qual recebeu o nome que mantém até hoje, tinha outro estabelecimento no Rossio, chamado precisamente Martinho do Rossio – é o mais antigo café de Lisboa sempre em atividade. Foi um dos primeiros edifícios a nascer na Praça do Comércio quando a própria praça se ergueu após o terramoto de 1755.
A 7 de janeiro de 1782, poucos meses antes da morte do Marquês de Pombal, o Martinho abriu pela primeira vez as portas, sendo inicialmente conhecido como Casa da Neve, por aí se vender gelo e gelados. Ao longo de dois séculos, sublinha Luís Machado, “foi poiso de jacobinos, liberais, maçons, anarquistas e republicanos”, tendo por tudo isto “um valor histórico indiscutível”.
A ideia de aproveitar a sobreloja foi apresentada pela primeira vez ao anterior Executivo, de Pedro Passos Coelho, mas com as eleições e a mudança de Governo o assunto foi adiado e só agora, já com João Soares, foi retomado. Luís Machado afirma que a lei prevê a possibilidade de cedência de um espaço sem concurso público se os fins a que se destina não forem comerciais e houver o reconhecimento do interesse cultural.
O Martinho foi classificado como local de Interesse Público em 1978, mas nos anos 80 tinha entrado em decadência, receando-se então que viesse a encerrar ou a ficar totalmente descaracterizado. Foi graças aos esforços da Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada, que iniciou a dinamização cultural do espaço, que se conseguiu chamar a atenção para o problema e reunir fundos públicos para a reabilitação, da responsabilidade do arquiteto Raul Hestnes Ferreira.
Mas depois disso o espaço mudou de mãos, tendo sido comprado por António de Sousa. Agora, diz o proprietário, o Martinho quer “assumir a função de café literário, que é a sua verdadeira vocação”. “Para esta casa seria uma nova respiração”, garante.
Por Alexandra Prado Coelho, in Público | 7 de março de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público