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A Barraca: há 40 anos a sobreviver ao "austeritarismo"

A companhia de Maria do Céu Guerra e Helder Costa estreou-se há 40 anos.

Maria do Céu Guerra e Helder Costa [Reinaldo Rodrigues/ Global Imagens]

Quando em dezembro estreou o espetáculo Claraboia, com um cenário monstruoso e quase 20 atores em cena, Maria do Céu Guerra contava como pôr de pé esta produção tinha sido a maneira de celebrar os 40 anos da companhia de teatro A Barraca, contrariando o medo, as contas, o pessimismo: "Desta vez, decidimos arriscar. Vamos fazer, mesmo que a gente sofra as consequências disso. Não vamos continuar nesta apagada e vil tristeza de fazer peças com duas personagens e sem cenário. Vamos dar um pontapé na lua."

Hoje chegou o dia de cantar os parabéns. Logo à noite, a sala vai encher-se de amigos para verem o espetáculo e logo a seguir brindar à Barraca. No domingo, será a última vez que se vai ver Claraboia naquele palco. "Correu muito bem", dizem satisfeitos, Maria do Céu Guerra e Helder Costa, os dois responsáveis da companhia. As sessões têm estado esgotadas. Valeu a pena correr o risco. E agora é aproveitar o entusiasmo e seguir em frente: o próximo espetáculo, a estrear em abril ou maio, será O Ano da Morte de Ricardo Reis, novamente de Saramago, com adaptação e encenação de Helder Costa. Em Outubro, Maria do Céu irá protagonizar A Incrível e Triste História de Cândida Eréndira e da Sua Avó Desalmada, de Gabriel García Márquez. E venham mais 40 anos.

O sonho de um teatro popular

Foi com A Cidade Dourada - encenação coletiva de uma adaptação de um texto do grupo La Candelária, da Colombia - que A Barraca se estreou, no Incrível Almadense, a 4 de março de 1976. Mas o grupo já tinha sido criado em 75 e, se formos ver bem, as origens da companhia são muito anteriores. "Havia um grupo de pessoas que não estavam satisfeitas. Trabalhávamos com vários grupos mas ficávamos sempre com a sensação de que isto ainda não era exatamente o que queríamos e que tínhamos de fazer um grupo. Mas havia os impedimentos da censura, as peças que propúnhamos eram recusadas, e isso era um enorme desincentivo", lembra Maria do Céu. "Queríamos fazer um teatro mais popular, mais comunicativo, que incluísse a improvisação e aproveitasse a vitalidade dos atores."

"Quando aconteceu o 25 de abril já não tínhamos desculpa. Tínhamos mesmo que criar uma companhia." Nessas discussões iniciais juntaram-se Maria do Céu Guerra, Mário Viegas, Manuel Marcelino, José Manuel Osório, Samuel, Fernanda Alves, e depois também o músico Fernando Tordo, o poeta José Carlos Ary dos Santos, o dramaturgo Virgílio Martinho, o cenógrafo Mário Alberto (autor do logótipo). "Fomos nós que escrevemos o texto que definia o que era A Barraca, um grupo popular, que estimulasse a discussão, que afrontasse claramente o pensamento anterior." Hélder Costa juntar-se-ia mais tarde. "Pouco a pouco, o grupo foi excluindo coisas, definindo coisas, foi um processo muito bonito. Houve muita gente que se envolveu e houve muita gente que naturalmente se afastou." Houve digressão nacional e internacional, fez-se Zé do Telhado, Gil Vicente e Dario Fo, Brecht e Woody Allen, Boal e Ionesco, houve portas arrombadas pelo público que queria ver Fernão Mentes? (em 1981).

Em 1989 mudaram-se para o Largo de Santos, em Lisboa, com a missão de reconstruir o abandonado Cinearte. Foi um desafio enorme. "Achava que esta casa era grande demais para nós. Costumava dizer: só vou ser feliz quando não conhecer a maior parte das pessoas que andar por aqui, as pessoas do público, as pessoas a quem abrimos as portas para virem cá apresentar os seus projetos. Não queria nada que isto fosse o sítio onde estamos só com os nossos amigos. Gosto de casas abertas."

A lutar para continuar

Às 11.30 da manhã de uma segunda-feira, a sala mais pequena do Teatro Cinearte enche-se de jovens de 15 anos, com os telemóveis em punho e phones nos ouvidos. "O que é que eles estão a dizer?", sussurra um rapaz para o companheiro do lado. Gil Vicente não é fácil para os ouvidos contemporâneos. Mas os miúdos dão boas gargalhadas sempre que há insinuações sexuais e a Farsa de Inês Pereira está cheia delas. Já é a segunda sessão do espetáculo naquele dia, na terça há mais duas sessões para escolas. Nas manhãs de quinta e sexta, a sala recebe Felizmente Há Luar, de Sttau Monteiro, também para os mais novos. E de quinta a domingo, os mesmos atores sobem ao palco principal para fazer A Claraboia, sendo que ao fim de semana há duas sessões, à tarde e à noite.

"Temos sempre programação. Nunca estamos fechados", diz Maria do Céu Guerra. Mesmo nos tempos difíceis. A Barraca tem um financiamento de 40 mil euros da Direção-Geral das Artes e um apoio da Câmara de Lisboa, que deveria ser para a recuperação do espaço mas "quando chegou a voragem do austeritarismo foi transformado em apoio à criação". "Não chega", queixa-se a diretora. De 22 pessoas fixas passaram 14 (atores, técnicos, empregados vários). Adaptaram-se. "Mas a verdade é que nos ressentimos. E estamos a sofrer muito há anos. Com a luz que avaria. Com a água que pinga. Com os espetáculos que queríamos fazer e não conseguimos", diz Maria do Céu.

Em 2014 anunciaram que iam desistir. "Estávamos muito tristes mas decidimos acabar. Houve uma petição que foi assinada por mais de 8 mil pessoas a dizer que a situação da Barraca era inaceitável. A petição foi discutida no Parlamento e todos os partidos, com exceção do CDS, aprovaram uma declaração a dizer que algo tinha que ser feito. Achámos que devíamos continuar, mas até agora não aconteceu nada, nada mudou."

Estamos sentados a uma mesa, no meio do cenário de Claraboia. Um prédio lisboeta, nos anos 50. "É cansativo. Mas é o público que nos faz continuar", diz Maria do Céu Guerra. "Precisávamos muito de um êxito assim para reanimar. Vamos ver o que vai acontecer daqui para a frente."

 


por Maria João Caetano, in Diário de Notícias | 4 de março de 2016

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias

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