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Morreu a artista plástica Ana Vieira

Ana Vieira, autora de uma obra que cruza diversas disciplinas, morreu esta madrugada.

Ana Vieira fotografada em 2011 [Pedro Cunha] Ana Vieira, "A Arte da Fuga", 2016. Trabalho apresentado na ARCO Madrid [DR] Exposição "Muros de Abrigo" de Ana Vieira, no Centro de Arte Moderna CAM, na Gulbenkian em 2011 [Daniel Rocha] Exposição retrospectiva de Ana Vieira em Serralves em 1998 [Paulo Ricca] Exposição retrospectiva de Ana Vieira em Serralves em 1998 [Paulo Ricca] Exposição retrospectiva de Ana Vieira em Serralves em 1998 [Paulo Ricca]


Morreu na madrugada desta segunda-feira em Lisboa, vítima de cancro, a artista plástica Ana Vieira fez saber num comunicado a galeria que a representava, a Graça Brandão. Nascida em 1940, destacou-se no cruzamento das diversas disciplinas artísticas, criando um corpo de trabalho original e inspirador no conjunto da arte portuguesa contemporânea.

De origem açoriana da parte do pai e conimbricence do lado materno, Ana Vieira viveu toda a infância nos Açores, facto que marcaria indelevelmente o seu trabalho. Muros de abrigo, o nome escolhido para a grande retrospectiva que o Museu Gulbenkian lhe consagrou em 2011, refere uma característica específica da arquitectura rural açoreana: os muros construídos nas propriedades para protejer as culturas do ar salgado. Na altura, a artista contava que se passava de muro para muro por portas que se abriam nas paredes, sendo que a última porta dava para o mar. Já nessa memória se destacava aquela que seria uma das grandes constantes do seu trabalho plástico: a dialética entre a ocultação e a desocultação de um lugar, preferencialmente de um lugar privado, doméstico.

No começo dos anos 60 Ana Vieira muda-se para Lisboa para frequentar a Escola de Belas-Artes. Formar-se-ia em 65, tendo entretanto conhecido aquele que seria o seu marido, o pintor Eduardo Nery. Era mãe de Paula Nery e do arquitecto Miguel Nery.

Pouco tempo depois começa também a expor, primeiro colectivamente e, a partir de 68, individualmente em galerias e museus. Na Quadrante, na Quadrum, em diferentes instituições açoreanas, na Gulbenkian e no CAPC de Coimbra, antes de uma internacionalização que tardou a vir, apresentou obras e projectos que tinham em comum a recusa da facilidade comercial. Logo nos anos 70, criou, por exemplo, os Ambientes, entre os quais uma Sala de Jantarpertencente hoje ao Museu Gulbenkian.

Tratava-se de dispositivos formados por cortinas e véus onde se vislumbravam silhuetas de objectos característicos do espaço doméstico e feminino – mesas, cadeiras, armários -, sem que  contudo o visitante pudesse penetrar nesse espaço.  Muitas das peças de Ana Vieira, situavam-se nesta fronteira entre o que é acessível e visível e o que não é. Para além dosAmbientes, a grande antológica da Gulbenkian mostrou também corredores, salas escurecidas, e lugares com palavras escritas apenas legíveis graças a uma um tipo de iluminação especial. Estas últimas, de uma radicalidade pouco comum, obrigavam o visitante a um exercício de voyeurismo que replicava a própria experiência do objecto de arte.

Ana Vieira integra um grupo prestigiado e restrito de mulheres artistas que, em Portugal, souberam e sabem realizar uma obra artística sem cedências de qualidade. Lourdes Castro, Helena Almeida ou, numa outra geração, Ana Jotta têm tido uma actividade eticamente exemplar, tal como sucedeu sempre com Ana Vieira.

No caso desta artista, as memórias da infância em São Miguel aparecem pontualmente em alguns trabalhos, embora estas digressões conceptuais pelo passado não tenham que ser sistemáticas. No princípio dos anos 90, por exemplo, a instalação Pronomes, mostrava o capote-e-capelo do traje feminino tradicional de São Miguel em diversos exemplares. Penduradas do tecto, acopladas com uma instalação sonora que  enunciava pronomes pessoais, as peças revelavam uma qualidade dramática que era também, sociologicamente, a única possibilidade para a existência feminina fora do espaço doméstico.

É que, quase sistematicamente, a reflexão sobre o lugar da mulher, a sua imagem transmitida pela arte e a solidão que a sociedade patriarcal a condena são presenças constantes no seu trabalho. Enunciaremos, neste campo, uma instalação realizada num andar devoluto no centro de Lisboa, Casa Desabitada, produzida pelos Artistas Unidos em 2004; ou a sua participação em Acabamentos de Luxo, uma colectiva realizada em 94 na Associação de Arquitectos Portugueses, onde recriava uma sala de estar pequeno-burguesa, autêntica moldura para uma qualquer vida de mulher destituída de esperança. Ou ainda, mais recentemente, uma sala de jantar apresentada na Galeria Graça Brandão onde os móveis se decompunham e desfaziam como seres orgânicos mortos.

A radicalidade do trabalho de Ana Vieira acarretou consigo, como sempre sucede, um sucesso comercial mais que discutível. A artista contava, mesmo assim, que toda a vida tinha fugido do objecto artístico, e que não era nos últimos anos que iria ceder a essa facilidade. O seu trabalho mostrava-se a um ritmo muito próprio, com uma produção mais lenta que aquela que o sistema económico em que vivemos exige aos artistas.

O ensino, decerto como consequência do que dizemos, foi também uma constante durante toda a sua vida activa. Mas nem as instituições, nem os curadores, nem os artistas mais jovens a ignoraram por isso, sendo que a sua obra foi legitimada, através dos anos, pela principais instituições e autores portugueses: participou na  Alternativa Zero, em 77, organizada por Ernesto de Sousa, que introduziu a contemporaneidade no espaço artístico português. Recebeu o  Prémio AICA, o mais importante prémio de carreira em Portugal, em 1991. E, além da retrospectiva na Gulbenkian, realizou uma antológica, em 98, em Serralves. Ana Vieira: e o que não é visto foi, por fim, um filme sobre o seu trabalho assinado por Jorge Silva Melo em 2011.

 


por Luísa Soares de Oliveira, in Público | 29 de fevereiro de 2016

Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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