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Eis os demónios de Bosch em exposição: 500 anos depois
Duas grandes exposições assinalam o aniversário da morte do pintor.
A primeira, na cidade holandesa que deu nome ao mestre da pintura, já abriu portas. E polémicas. Segue-se o Prado em maio.
Saber-se-á de quem se trata ao falarmos de um pintor que toda a vida representou o mundo como "um sítio de demónios, onde os perigos e as tentações estão à nossa volta e só o caminho da santidade, tendo a imagem de Cristo como referência, nos permite percorrer esse caminho que leva à salvação"?
Hieronymus Bosch. Este é o ano em que se assinalam os 500 anos da sua morte e o pintor anda por aí. Não num sentido fantasmático, mas através das suas obras que se reúnem em duas grandes exposições, uma já inaugurada no holandês Noordbrabants, e outra que abrirá portas a 31 de maio, no Museu do Prado.
Comecemos por uma pequena cidade na Holanda. Aquela, aliás, que deu o nome ao mestre. Den Bosch, como vulgarmente é referida Hertogenbosch, a cidade natal de Hieronymus. Cidade onde, sem existir qualquer obra do seu pintor no museu Noordbrabants, foi decidido que, reunindo obras emprestadas, ali haveria uma grande exposição para comemorar o 500.º aniversário da sua morte.
Um especialista em Bosch, Jos Koldeweij, e o diretor do museu, Charles de Mooij, apresentaram uma proposta à câmara da cidade. Nasceu o Projeto de Investigação e Conservação Bosch (PICB), cujos investigadores partiram Europa e Estados Unidos fora para estudar e, caso fosse necessário, restaurar as obras do mestre medieval.
E assim aconteceu. As portas de Hieronymus Bosch - Visões de Génio estão abertas desde dia 13 e assim vão permanecer até 8 de maio. Há um catálogo e um volume de estudos técnicos. No total: mil páginas. 17 pinturas, das 24 que o PICB atribuiu a Bosch, e 19 desenhos, dos 20 identificados, compõem as paredes de Bosch na exposição.
Dezenas de quadros outrora espalhados pela Europa e EUA estão, portanto, agora reunidos naquela pequena cidade holandesa. Entre eles contam-se algumas daquelas que são consideradas obras-primas de Bosch. Carro de Feno, um empréstimo do Museu do Prado, Navio de Loucos, do Museu do Louvre, ou quatro painéis de Visões do Além, vindos de Veneza, da Gallerie dell"Accademia.
Prado recuou no empréstimo
Contudo, confrontando o catálogo da exposição com as paredes do museu, há dois quadros em falta. Não se encontram ali As Tentações de Santo António Abade, tão-pouco A Extração da Pedra da Loucura, ambos do Prado, que possui a maior coleção do mundo de obras do pintor - em parte graças ao grande colecionador que foi Filipe II (I de Portugal). A razão: os investigadores do PICB concluíram que essas obras, a par de A Mesa dos Sete Pecados Capitais, não são de Bosch, mas de um seguidor ou de alguém da sua oficina. Não do mestre flamengo.
A decisão do empréstimo estava "tomada desde setembro" quando a pinacoteca espanhola soube do parecer do comité holandês através de "uma reportagem da televisão holandesa". Foi então decidido que, "postas em dúvida", "o melhor era não emprestá-las", para evitar que fossem "desautorizadas" na mostra, explicou o Prado em comunicado.
Especialista em pintura do Museu Nacional de Arte Antiga, Joaquim Caetano estranha que o facto de "obras de Bosch que são consideradas claramente obras menores" terem sido "agora tomadas como sendo dele". Sobretudo, explica, a que veio do Kansas: "Uma obra que sempre foi considerada absolutamente menor, muito repintada."
Todavia, guarda a discussão conclusiva para o momento em que for publicado o catálogo da exposição de Madrid, e então "se puder comparar com o desta exposição".
Bosch português vai ao Prado
O "nosso" Bosch, As Tentações de Santo Antão, que em maio rumará ao Museu do Prado - onde ficará até ao fim da exposição, a 11 de setembro -, foi ratificado pelo comité holandês em 2011. O tríptico cujo primeiro registo que se conhece data do século XIX, no Palácio da Ajuda, onde faria parte da galeria do rei D. Luís, é um dos exemplos maiores de tudo o que está em causa em Bosch, explica Caetano.
São dele, aliás, as palavras com que aqui se começou. O professor explicava a visão que une os enormes painéis de Bosch, para que não nos percamos entre os monstros, as tentações, os demónios multiplicados que eles representam. Dizia que, "por vezes, a única figura bela no meio de tudo aquilo é a da santidade. Tudo o resto é monstruoso, é híbrido. O bem, criado por Deus, só tem uma possibilidade. Enquanto a possibilidade do mal é infinita, podem ter seis pernas, três cabeças".
Caetano relativiza o facto de essa leitura da obra de Bosch poder ser, ou não, feita na contemporaneidade, cinco séculos depois. "O que dá o estatuto de obra de arte a uma obra antiga é que ela é nossa contemporânea. E continua a agir sobre nós. O Bosch como experiência visual é sempre uma experiência fascinante, porque é sempre um pintor em que cada olhar nos traz uma descoberta da sua obra. Eu já fiz dezenas e dezenas de visitas sobre As Tentações de Santo Antão e de cada vez que olho para a obra descubro uma coisa que ainda não tinha descoberto."
O melhor exemplo? Mostrar as obras às crianças. "Elas deliram com o carácter imaginativo, monstruoso, do estranho que aquela pintura tem."
por Mariana Pereira, in Diário de Notícias | 23 de fevereiro de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias