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História de uma gata sem dono

Foi Grande Prémio EDP em 2014 e é agora também Prémio AICA. Ana Jotta, 70 anos: a artista que Portugal devia ter descoberto na década de 1980 está entre nós e é um poço sem fundo.

Entre exposições e distinções como o Grande Prémio EDP, em 2014, ou o prémio de carreira da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte, no final de Dezembro, neste arranque do século XXI, o nome de Jotta ganhou uma centralidade inaudita [Ricardo Campos]

São três da tarde de um sábado de sol quando nos sentamos num dos sofás da Culturgest Porto. Ana Jotta afasta o cabelo da cara e a olha-nos através dos seus óculos de armação grossa. Este sorriso que deixa escapar já lho conhecemos – pequenino, vagamente mordaz. Vibra irrisão – como a obra dela. Como o corpo todo dela.

“Então o que é que quer saber desta vez?”, pergunta a artista. Não hesitamos: “Tudo.” Ela baixa os olhos baixos e ri para o lado, “coquette”. Mas é para rir, de facto. Afinal, que, é Ana Jotta? Alguém sabe? Os amigos próximos, sim, talvez. E fora das fronteiras restritas desse circulo de afectos íntimos? Alguém? Não é evidente.

É que é bastante clara a intencionalidade do distanciamento que a artista mantém dos circuitos dos seus pares. Apesar das suas mais de três décadas de trabalho continuado. E apesar da vertigem de descoberta – tão tardia – que tem rodeado o seu nome nos últimos anos.

Entre exposições e distinções como o Grande Prémio EDP, em 2014, ou o prémio de carreira da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte, no final de Dezembro último, neste arranque do século XXI, o nome de Jotta ganhou uma centralidade inaudita. Derrisória – sempre –, em 2014, a artista, então com 68 anos, dizia ao PÚBLICO ter percebido estar afinal enganada ao pensar que continuava a ser “um bocadinho marginal”: “Pelos vistos, já estou integrada. Nunca me passaria pela cabeça.”

Ana Jotta integrada? Há que conceder: apesar da qualidade da sua obra e da sua clara e crescente influência em gerações mais jovens, não parecia uma ideia linear. Por vários motivos. Entre eles a estranha capacidade que obra e autora parecem ter em escapar-se-nos por entre os dedos.

Na altura do Grande Prémio EDP, o crítico de arte francês Frédéric Paul, que foi membro do júri, falava numa “impertinência” e num humor em que o antigo, o novo e o “kitsch” se misturam num trabalho “muito livre”: “Tem a particularidade de tocar a arte popular mas também as referências mais eruditas. Ela não está entre as duas linguagens: resolve ambas.”

Nesta obra “muito profunda e crítica, no sentido da sua independência”, ao recuperar, modificar e recontextualizar objectos e referências visuais, Ana Jotta “fala do cliché, mas desloca-o para um grande sentido”, dizia Paul na altura. Terminando com um quase suspiro: “A Ana é tão livre…”

Livre. E poliédrica. Em 2005, quando escreveu para Serralves a “Biografia Alternativa” desta sua amiga dos tempos das Belas Artes, Gaëtan foi buscar a ideia de um labirinto: Ana Jotta, nem pintora, nem desenhadora, nem escultora; tudo isso, mas, sobretudo, uma especialista em jogos de claro-escuro, aproximação e fuga, sedução e despiste, exposição total e ocultação absoluta.

A descrição serve à obra e serve à mulher por detrás. Ambas sempre surpreendentes e desconcertantes, avessas a catalogações. E, por isso, avessas a algum tipo de integração total.

Apropriação, descontextualização, transformação, subversão: é disto que é feita grande parte da contemporaneidade – é disso que tem sido feita a obra desta artista. E talvez seja isso, esse delapidar e acumular heteróclito e voluntarioso de géneros e estilos sem reverência a nenhum, mas com reverência a todos, que a foram tornando num modelo para um número crescente de artistas mais jovens a partir de finais dos anos 1990.

Outros conceitos ligados ao seu trabalho, eminentemente associativo: por exemplo, o de apagamento da autoria, lente através da qual a sua obra tem sido mais frequentemente lida.

Num texto sobre a artista, o curador Ricardo Nicolau, um dos seus cúmplices mais próximos, explicou como Jotta se escapa sempre pelas fissuras do que se tem entendido como sendo a “figura do autor”, nomeadamente como agente definidor de “um certo campo de coerência conceptual ou teórica”. Escapa, “vestindo um ‘scramble suit’ ou um disfarce de dominó”, diz Ricardo Nicolau, que aproxima a estratégia da artista à concepção de temporalidade vigente na Antiguidade Clássica, qualquer coisa ligada a uma noção de circularidade, sem princípio, meio nem fim, com tudo sujeito às leis de um eterno-retorno.

Miguel Wandschneider comissariou tanto “A Conclusão da Precedente”, a grande exposição que Jotta fez em 2015 na Culturgest Lisboa, como agora “Cassandra”, na Culturgest Porto. Acha que a artista não é propriamente elusiva ou esquiva – é, diz ele, um caso de “irredutível independência”: “Não se pode chegar aí sem mecanismos no próprio dia a dia, nas relações com agentes do contexto artístico que permitam defender essa integridade individual e fazer uso pleno da liberdade.”

“Liberdade”: É uma palavra que parece surgir sempre que alguém fala de Jotta. É uma palavra cara à artista. Está em tudo o que diz e faz. Está até no que não diz nem faz. Desde o princípio.

A feiticeira
Lisboa, 1946. “Nasci artista, já nasci assim”, diz-nos a dada altura. O que quer isso dizer? “É como viver, como respirar. Há pessoas que têm um ADN assim. Ser artista é ser uma espécie de feiticeiro da tribo. Uma espécie de mediador. Uma antena.”

Repare-se: não tem nada de religioso ou místico, diz ela. “Um artista é uma pessoa que consegue transformar a realidade. A vida é submissa, a arte é vital. Transforma o quente no frio, o distante no próximo. Faz-te passar de um lado a outro. Um artista é uma espécie de bruxo. Transforma as coisas.”

Não é um sopro peculiar – não tem a ver com “inspiração”: “Só se faz com trabalho. Sendo viver e trabalhar absolutamente a mesma coisa. Sem diferença alguma. Por isso, umas vezes estou a viver melhor, outras pior. Mas sempre no meu tempo, aquele que o meu organismo manda.”

Ana Jotta diz que trabalha com o irracional: “Não é o inconsciente – é uma coisa que não está classificada nem se pode classificar. O mundo está feito para ter ordem. O racional está ordenado, até o inconsciente o está. O irracional é sem fim. Não é caótico. Não está é cartografado. É tão grande como deus – se ele existisse.”

É um poço sem fundo. O mundo de iluminação, mas também de sombras, desconhecidos e imponderáveis com que o modernismo se propôs acabar. Não? “Claro”, exclama Ana Jotta, “mas isso não me interessa nada. O mundo tem de estar ordenado, está todo engavetado, classificado, ordenado. Aliás, o resultado está à vista – tantos séculos de ordem são contranatura. Eu não preciso dessa tranquilidade. E não gosto de ser caçada. Sou muito organizada, nada caótica, não estou é classificada…”

Nunca esteve. Lisboa, 1963: Ana Jotta chega à Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Na altura, era possível chegar às Belas Artes apenas com o quinto ano do Liceu – o equivalente ao nono ano unificado, o fim do terceiro ciclo do ensino básico. Jotta vinha de “uma família burguesa”. Fez ainda mais dois anos de ensino regular. Mesmo assim, chegada às Belas Artes, era a mais nova da turma. “Entrei de soquetes.”

 

Era o ano de Eduardo Batarda e Gaëtan. Batarda foi até ao fim. Gaëtan durou quatro meses, Jotta seis. Ainda fez o exame de acesso ao segundo ano, mas completou apenas o primeiro, “mal acabado” – é por isso que diz ser “autodidacta”.

As Belas Artes eram então “uma coisinha académica”, de “cavaletes, barro”. “São coisas que hoje prezo muito”, explica a artista, “mas, na altura tinha 16 anos, estava em plena crise de adolescência.”

Portugal vivia então uma ditadura sem fim à vista. E a política era o centro da vida dos jovens ligados às diferentes frentes de militância e luta antifascista. Jotta não estava entre eles. “Nunca votei nos dias da minha vida. Nem sequer sou recenseada. Sempre fui marginal.”

Depois do ano das belas Artes, em 1965, rumara a Bruxelas, tornando-se aluna da École National Supérieure d´Architecture et des Arts Visueles L’Abbaye de la Cambre. Voltou em 1968, aos 21 anos. Para se deparar “com a mesma cidade, tudo praticamente igual”. E igual por uma quase década mais, até àquele ímpar dia 25 do mês de Abril de 1974.

“Lembro-me perfeitamente de me dizerem: ‘Está a haver uma revolução!’ Na altura eu estava a viver na Rua de São Mamede, ao Caldas. E tinha uma luneta. Era para ver a lua e as estrelas mas consegui ver o [Largo do] Carmo – todo de pernas para o ar. Depois lá fui ver ao vivo.”

Foram seis meses “a assistir a isso” que Jotta não considera poder dizer-se uma revolução. Foram “tempos absolutamente extraordinários” e implicaram “uma mudança grande”. Faltou-lhes porém sangue, diz a artista.

“Todos os meus amigos foram ensinar o povo de Trás-os-Montes. Achei puro paternalismo – espalhar a palavra de ordem pela população ignorante. Achei que o melhor era matar uma data de gente. Iam ensinar o ‘povo inculto’ enquanto todos os maus fugiam. Achei que se fosse uma coisa mais sanguinária, à espanhola, talvez tivesse mais utilidade. As classes sociais existem. É paternalista ir brincar ao povo. Achei que não devia meter-me onde não era chamada.”

Nessa altura foi considerada fascista, uma “marginal de direita”. “Tinha dois cães, ia à rua passeá-los e chamavam-me fascista, ia ao cinema e os arrumadores, os últimos arrumadores, daqueles com lanterna, sussurravam: ‘Fascista!’”

Ao contrário do que se posso imaginar, não há sombra de rancor nestas palavras. “Percebo. É natural. Foi a libertação do povo, o que viam de ligeiramente diferente… Apesar de tudo as classes sociais existem, e nota-se. Estava tudo de cabeça perdida. Estivemos todos metidos naquele caldo nojento durante muito tempo… Parecia o neo-realismo italiano. Nem me lembro, mas quando vês fotografias não parece a década de 1970, parece muito mais para trás. Percebo que chamassem fascista. Podiam. Tal como a vizinha do lado te pode chamar puta sem seres.”

Sim, a palavra em Ana Jotta pode ser crua. Tal como o seu pensamento – não guarda fantasmas. E pode ser de uma acutilância negacionista avassaladora. Quase niilista.

“Nunca tivemos uma guerra. Não ajuda. Nunca tivemos medo. Não aprendemos a sobreviver, a precisar de fugir. É uma coisa que faz avançar. Parece brutal, mas vivemos sempre num caldo. Fez com que ficássemos numa coisa mansa. Não ajudou muito”, diz ela.

Há muito quem pense o mesmo. Há até bastante quem o diga. Normalmente em bastidores.

Propomos outro tema: feminismo. Essas foram também as décadas do início da libertação da mulher portuguesa. “Pobres mulheres!”, exclama a artista. E não se refere apenas ao passado, mas também ao presente. “São percentagens. Pões umas mulheres no Parlamento, dás-lhes alguns direitos e percentagens, mas é falso. Isto é um mundo completamente masculino, temos milhares de anos de homens. [O feminismo é o tipo de] Manifestação que muito prezo, mas o mundo continua a ser completamente comandado por homens. Sinto-o todos os dias. Ninguém me ataca, mas está imbuído. Conto com isso. Não vejo mudança real.”

Como em tudo, “é preciso dar alguns direitos para dar ordem à coisa”.

É mais ou menos o que diz Don Fabrizio Corbera em “O Leopardo”: é preciso que tudo mude para que tudo fique igual? “Exactamente”, diz Ana Jotta. E, por entre as dezenas de recortes que a artista colige em “Cassandra”, lá está uma imagem da adaptação cinematográfica que Visconti fez do livro homónimo – Burt Lancaster, Claudia Cardinale e Alain Delon vestidos de cerimónia no meio da sala de baile.

Jotta anda sempre com um caderno, está constantemente a coligir recortes das mais diversas origens e a tomar pequenos apontamentos. Ao conjunto dessas imagens e palavras chama “notas de rodapé”. Em “Cassandra” está uma selecção dessas “coisas que fizeram um clique”.

Podem ser referências ditas “eruditas”, também pode ser o recorte de um anúncio a um detergente de roupa. Não há distinção, muito menos hierarquia. Há um diálogo a muitas vozes. De que trata? Cabe a cada um de nós responder.

“O que eu ofereço, isso é com as pessoas. Eu não estou nada interessada em oferecer seja o que for. O meu trabalho é uma conversa entre mim e mim. Completamente. É o que eu sei fazer. As coisas saltam-me. Aparecem-me. Uma pessoa com a quantidade de informação que devo ter cá metida… Ando pelas ruas e estou viva – as coisas entram sem dares por isso, ficas com um grande armazém. E a mim, de vez em quando, cai-me uma coisa da cabeça ou das mãos. Sai-me. Já cá está escrito. Entrou, esteve a cozinhar e sai. Não sei como nem me interessa. Ponho mãos à obra e sai.”

Não é sem esforço. Pelo contrário. É uma luta. O que faz a diferença é “fuçar”, diz a artista.

“Quando era miúda copiava notas de vinte escudos como se fosse um falsário. Sempre foi a coisa que mais gostaria de ter sido: um falsário, ou imitador. Não estou muito longe disso, porque trabalho com a representação. Sempre tive ‘jeito’, o que se diz ‘jeito’. Mas esse até convém eliminar, matar. Contrariá-lo talvez tenha interesse. Não dominar. A única coisa que pode ter alguma graça neste mundo é não dominar seja o que for e estar à mercê daquilo, não seres tu a comandante da barcaça.”

Comandar “não leva a lado nenhum, leva apenas a travessar o rio ou apanhar uma onda”. Mas é preciso mais, é preciso “contrariar a tendência para facilitar”, é preciso “fazermo-nos à vida”. “Se o fizer, pode ser que continue a pôr vida cá para fora e não produza naturezas mortas. Depois, o trabalho é que vai sozinho falar com as pessoas. Eu estou a ter uma pequena luta com um material. Isso depois sai como energia, que é o que vive para lá de mim e do que fiz. É isso que vai falar com as pessoas. Já não me diz respeito. O que me diz respeito é a luta.”

Na primeira imagem de “A Coragem de Lassie”, o documentário que Francisca Manuel fez em 2009 sobre Jotta, vê-se a artista a pintar. Aproxima-se e afasta-se da tela, observa-a de perto e de longe, fuma, ouve música, volta a olhar, retoca um pormenor, considera relações… A pintura está a nascer ali, sem parecer corresponder a um desenho prévio. A pintura está a nascer e a resolver-se a si mesma à medida que nasce. Vem do mesmo armazém para onde todas as coisas entram e de onde todas acabam por sair, mais cedo ou mais tarde.

Na verdade, passamos todos por essas coisas, diz Jotta, mas talvez a maior parte de nós não as veja, ou não as receba, ou talvez simplesmente não saibamos como as transformar. “Toda a gente recebe as mesmas notícias”, diz a artista, “depois, só um transformador transforma. Só um artista. Um artista transforma uma coisa comum numa coisa invulgar. Transforma o velho em novo, como as antigas solas dos sapatos. É o que um artista faz. Transforma o que está à frente do nosso nariz. Nem toda a gente consegue. E não é uma questão de querer. É assim.”

Ela começou a transformar cedo, mas dedicou-se a tempo inteiro às artes plásticas apenas já na década de 1980. No regresso de Bruxelas trabalhou em teatro e cinema. Primeiro com o professor, investigador e encenador Osório Mateus (1940-1996), depois com João Botelho e João César Monteiro (1939-2003), que a foi buscar para “Silvestre” (1981), o segundo filme da sua chamada “fase medieval”.

“Fui chamada de urgência. A equipa tinha gasto metade do dinheiro em Trás-os-Montes. Inicialmente era para ser filmado em ‘décors’ naturais. Chamaram-me. Disse: ‘A solução é fazer tudo na Tobis, um décor único, como um cenário de teatro, e tu andas com a câmara.” Fiz o cenário a partir de pinturas de Giotto, Fra Angelico, uma coisa muito bizarra e pobrezinha, feita quase à mão por mim e um ajudante de ajudante de ajudante, dos que iam à Baixa comprar elásticos.”

No festival de Veneza o filme foi considerado “um super luxo de elegância”, recorda Jotta. Mas foi também aí que ela disse “não mais”. “Disse: ‘Detesto trabalhar com equipas, detesto trabalhar com gente.’ E dediquei-me [a tempo inteiro] às artes plásticas, comigo própria.”

Até então, vendia a amigos, conhecidos. Sempre vendeu, porque “as obras de arte não são para ter em casa na toca, a olhar para elas. São para circular.” Mas esse foi o momento do assumir pleno, esse modo de estar em que viver e fazer artístico se confundem.

A arte de Ana Jotta não imita a vida, é uma manifestação de um modo singular de viver, escreveu em tempos João Fernandes: “Referências da história da arte misturam-se com referências da cultura popular do século XX numa permanente reciclagem. “Velázquez, Mondrian, Paul Klee, Edward Hopper, Mike Kelley, Stuart Carvalhais, Tom, Vilhena, Bill Watterson, imagens de livros de colorir, calendários, pintura vernácula… Os processos de Ana Jotta começam com a artista como respigadora das mais diferentes realidades plásticas para culminar num trabalho de ‘samplagem’ derrisória em que os mais diferentes elementos ganham nova vida.

Ana Jotta pinta, desenha e usa tudo o que vai vendo, lendo, experimentando e até roubando: “A pintura e o desenho são, precisamente, para ela, um território de iconoclastia e dessacralização.”

Foi João Fernandes que, em 2005, comissariou para Serralves “Rua Ana Jota”, a primeira retrospectiva dedicada a esta artista. E escreveu. “Ana Jotta é uma das artistas mais originais e surpreendentes no contexto artístico português. A sua obra, extremamente singular, utiliza suportes como a pintura, a escultura, o bordado ou os objectos do quotidiano, num exercício diarístico em que a artista contrapõe a intimidade do dia-a-dia à assunção das suas realizações enquanto obra de arte. A irrisão de uma atitude quase Dadaísta com que materializa os seus projectos suscita o humor ou a crítica distanciada dos universos da arte e das suas mitologias. A construção de um discurso feminino sobre a arte é simultaneamente praticada e criticada, num exercício de distanciação das retóricas do feminino no mundo da arte.”

Terá sido então que o hoje director-adjunto do Museu Reina Sofia de Madrid fez um comentário que encantou a artista. “Foi o comentário mais impecável que alguma vez fizeram sobre mim, a minha vida e o meu trabalho. Disse: ‘É uma gata sem dono.’ Não é uma gata vadia, é ‘uma gata sem dono’. É na ‘mouche’. É verdadeiramente o meu retrato. Resume exactamente tudo o que tenho estado a dizer.”

Talvez passe uma imagem de nomadismo, mas não é disso que se trata. Pelo contrário. Miguel Wandschneider, por exemplo, fala numa artista “muito sedentária”: “A Ana vive há muitos anos no seu apartamento de Campo de Ourique, não tem qualquer necessidade de estar sempre a viajar para se sentir cosmopolita. Na verdade, diria que cidades como Paris, Londres ou Nova Iorque representam para ela uma sobrecarga de estímulos, incluindo visuais. Mas, ao mesmo tempo, está em constante movimento. A dela é uma viagem mental, que se sente no trabalho que faz e que passa por ter um espírito muito irrequieto e activo.”

Em “A Coragem de Lassie” vemos a artista essencialmente em casa. A própria explica como obedece a uma rotina praticamente invariável. “Vou todos os dias ao cinema. Todos. À uma da tarde. Vou por salas. Amoreiras, Corte Inglés… Dá-me uma tranquilidade imensa estar às escuras com um ecrã que se ilumina e ninguém em volta. É uma perfeição total. Independentemente do que esteja a ver. Mesmo os filmes que me dão nervos ao fim de meia hora.”

Acordar cedo, por volta das sete, levantar com calma. “Posso estar a olhar para os azulejos durante meia hora, porque sou patroa de mim própria. Não tenho de ir a correr não sei para onde.” Depois trabalhar. E então cinema. “Às quatro deito-me. Leio, vejo televisão, arrumo… Não durmo, mas encerrei. O meu último pensamento é [sobre a manhã seguinte]: pão ou croissant, com compota ou com queijo? Isto faz-me uma alegria imensa, o pequeno-almoço.”

Às vezes há “essa coisa terrível de ter de ir jantar fora”: “Fico sentada à espera, chateada que nem uma perua. É um pesadelo. Raramente vou. Digo com o maior à vontade que não vou porque não me apetece.”

Para Jotta as “prisões” são inconcebíveis – “prisões” como a ideia de um emprego ou família: “As prisões contínuas são muito úteis para pôr as pessoas na ordem. Como é que se vive? Como se pagam as contas? É pôr as pessoas na ordem. Mas o que é preciso é fazer o que nos apetece. É ir fazendo uma coisa após outra, como se põe um pé à frente do outro para andar. Eu faço sempre só o que me apetece. É preciso pensar: uma gata sem dono.”

A sociedade, a organização do mundo contemporâneo surge como máquina repressora. “Sempre foi”, diz a artista, “se não, não funcionava”. Agora, porém, parece chegar ao fim, com “o último estertor”. “Começa a notar-se. As pessoínhas, a maravilhosa raça humana…”, ironiza Jotta. “Ainda vou ver, porque esta linda coisa que fizemos ao longo de milhares de anos está a dar os últimos gritos.”

O que condena a raça humana, perguntamos-lhe. “Nós!” O quê em nós? “Tudo! A começar pela ordem que nos impomos.”

Sim, para ela impomo-nos ordens inconcebíveis, entre elas formar família: “É tão aberrante como todas as outras coisas. Nunca me passou pela cabeça fazer família. De maneira nenhuma.”

Jotta esboça agora um sorriso ao falar em Miguel Nabinho, o seu galerista. “O Nabinho fica sempre muito chocado quando lhe digo que não gostei nada que me tivessem feito. Se me tivessem perguntado se eu queria cá vir eu tinha dito: ‘Não quero.’ Não quer dizer que esteja triste ou magoada ou zangada por estar a viver. Vou estar cá a fazer o melhor que posso com isto. Mas se me tivessem perguntado tinha dito: ‘Não!’ Tinha dito: ‘Vão fazer outra coisa.’ O Nabinho acha: ‘Esta não gosta de viver.’ Não é nada disso. E se não quisesse estar cá tinha bom remédio. Mas preferia não ter vindo. Acho uma brutalidade porem uma pessoa neste mundo. Eu não punha.”

Bartleby, a personagem de Melville, dizia: “Preferia não.” Bartleby não aparece em “Cassandra”, mas poderia aparecer. “Tal e qual”, diz Jotta, seríssima.

O que sim está em “Cassandra” é um recorte onde se lê “movo-me apenas o suficiente para que ninguém me tome por morto antes da minha hora”.

“Exactamente. É como os pássaros”, diz a artista. “A minha gata apanhou um, uma vez. Vinha com ele na boca, as asas uma de cada lado. Era para depois brincar com ele e tratar-lhe da saúde com mais calma, mas, quando o largou, o pardalito ficou ao pé da janela, hirto. Jurarias que estava morto e seco há já algumas horas. E, de repente, pirou-se a alta velocidade. Estava a fingir de morto. Os animais fazem isso constantemente uns com os outros para não serem caçados. É o mínimo possível. Se eu pudesse resistir e parar e não fazer mais nada…”

 


por Vanessa Rato, in Público | 15 de fevereiro de 2016
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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