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Lembrar António Alçada Baptista...
O município de Lisboa homenageou António Alçada Baptista (1927-2008), atribuindo-lhe o nome de uma rua da cidade.
É uma lembrança justa de um homem generoso que sinceramente acreditava na liberdade.
A epopeia de O Tempo e o Modo, iniciada em 1963, foi fundamental. Após o terramoto político de 1958 (candidatura de Delgado, carta do bispo do Porto), à frente dos católicos inconformistas, António Alçada pôs mãos à obra na editora Moraes. Com alguns amigos, vindos dos movimentos católicos, como João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Helena e Alberto Vaz da Silva, Nuno de Bragança e José Domingos de Morais concretizou uma revista de "pensamento e ação", aberta, crítica e necessária - tal como foram em Espanha os Cuadernos para el Diálogo, de Joaquín Ruiz-Giménez. Mário Soares, Francisco Salgado Zenha e Jorge Sampaio apoiaram a iniciativa, conscientes da importância do diálogo democrático da oposição clássica e dos católicos. Mas são obrigados a usar eufemismos de escrita, que hoje quase nos fazem sorrir, para iludir a censura, falando Alçada de "instituições que pressupõem uma certa dialética" em vez de democracia. A censura não dava tréguas - contra quem designavam como perigosos "peixinhos vermelhos em pia de água benta". Nas artes e letras, a revista revelou um forte sentido de atualidade e inovação, rompendo com a predominância de um certo neorrealismo. Jorge de Sena, Vergílio Ferreira, Agustina Bessa Luís, Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo, Eduardo Lourenço ou até António Sérgio são alvo de especiais atenções, estudo e reflexão. O autor de Labirinto da Saudade disse então: "É para trazer à luz, mostrar aos outros, e a si mesmo, o que ainda não era visível, palpável, audível, que a obra nasce" (n.º 6, junho 1963).
Ao projeto da revista somaram-se, por ocasião do Vaticano II, a revista Concilium, bem como a colaboração com o Congresso para a Liberdade da Cultura de Pierre Emmanuel. Lendo hoje a coleção da revista, fácil é de confirmar a extraordinária importância dos textos e das colaborações. Era a sociedade portuguesa que se abria. Denunciava-se a desordem estabelecida. Se dúvidas houvesse, valem "os depoimentos das gerações que nos seguiram, para quem essa aventura foi um acontecimento-referência que acordou alguns e confortou outros perante um tempo carregado de dúvidas e inquietações". E a tal certa dialética virou democracia.
António quis acreditar numa evolução serena, que seria impraticável. Depressa se desiludiu. Mas, para si, o mais importante era a abertura, o sentido crítico, o inconformismo! Coerentemente, continuou a remar contra a maré. De acordo com o saber náutico sempre achou que se todos se juntam a bombordo ou a estibordo, a embarcação naufraga. É sempre indispensável que alguém fique do outro lado, mesmo que as incompreensões continuem. Aos banquetes de sabedoria pura, o António contrapôs o diálogo dos afetos, com elevação e sabedoria. E invocava amiúde Jorge Luis Borges: "Creo que un dia mereceremos que no haya gobiernos." E insistia: precisamos de merecer.
Oiçamos, no entanto, a tia Suzana: "Julgo que o mais importante são as palavras. Quando se vive a solidão, sabe-se que, por causa duma palavra verdadeira, caem muitas vezes as muralhas que levantámos à volta das nossas almas. Uma palavra verdadeira pode ser um milagre: é a solidão derrotada." Essa solidão derrotada é porventura a principal marca da obra do António Alçada Baptista e da sua vida. Com as suas depressões cíclicas, a verdade é que foi sempre a busca das palavras e das pessoas que o ocupou para nos levar à compreensão do tempo e do mundo. Se alguns procuram "a verdadeira relação com Deus", o certo é que se voltam para "as ideias, os silogismos, as lógicas, as abstrações. Ora, uma teologia abstrata é uma idolatria". Foi contra essa tentação que António sempre pôs em primeiro lugar a liberdade e a vida das pessoas comuns...
Guilherme d'Oliveira Martins
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