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O museu onde se ia ver como a língua portuguesa é gostosa
Destruído por um incêndio esta segunda-feira, o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, “inspirava as pessoas a gostarem da língua portuguesa”. Portugal chegou a pensar em criar um museu parecido.
Antes que algum português reclame da existência de um Museu da Língua Portuguesa no Brasil e nenhum em Portugal: São Paulo, onde se encontrava o museu inaugurado em 2006, é a cidade com maior número de falantes de língua portuguesa no mundo (12 milhões de habitantes). O Brasil teve a ideia primeiro, Portugal limitou-se a imitar: o primeiro-ministro português José Sócrates visitou o museu em Agosto de 2006, poucos meses após a inauguração, e logo declarou a sua intenção de fazer algo parecido no seu país. Dois dos seus ministros da Cultura, Isabel Pires de Lima primeiro, e José António Pinto Ribeiro a seguir, defenderam a criação de um Museu Mar da Língua Portuguesa em Belém, nas instalações do desprezado Museu de Arte Popular, com o intuito de abordar a língua portuguesa no contexto da história dos Descobrimentos. A crise e a austeridade enterraram definitivamente o projecto, que nunca passou disso mesmo.
São Paulo perdeu o seu Museu da Língua Portuguesa na segunda-feira à tarde, destruído em grande parte por um incêndio que deflagrou no primeiro piso e se propagou rapidamente por todo o edifício de três andares. As causas do incêndio continuam por apurar. Um bombeiro civil, que trabalhava no museu e foi o primeiro a tentar deter as chamas, morreu, vítima de paragem cardio-respiratória.
“Não consigo entender a rapidez com que esse fogo dominou o prédio”, diz ao PÚBLICO o designer e curador Marcello Dantas, que, enquanto diretor artístico do Museu da Língua Portuguesa, desenhou todo o espaço de exposição permanente. “Me parece louco que tenha ido tão rápido para o terceiro andar. O corpo de bombeiros fica a dois quarteirões do museu. E o museu tinha sprinklers [chuveiros de água para extinção de incêndios]. Em meia hora o prédio estava queimado.”
Incêndios em equipamentos culturais que fazem parte do património paulista não são novidade. O Teatro Cultura Artística, em 2008, o Memorial da América Latina, em 2013, e o Centro Cultural do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, em 2014, sofreram incêndios. Estes incidentes expuseram irregularidades burocráticas na fiscalização das condições de segurança desses espaços, como parece ser mais uma vez o caso. Segundo a imprensa brasileira, o Museu da Língua Portuguesa não tinha o atestado de inspeção do Corpo de Bombeiros em dia. O último expirou em Agosto.
“É uma perda terrível de um dos maiores equipamentos de educação que o Brasil tem”, diz Marcello Dantas. “Era um museu que inspirava as pessoas a gostarem da língua portuguesa. Foi imediatamente acarinhado e adotado pela população.” Foi o quinto museu mais visitado de São Paulo em 2014, com 386 mil entradas.
“Era um importante instrumento turístico em São Paulo”, continua Marcello Dantas. “Mesmo as pessoas que não falam a língua se entretinham tremendamente dentro do museu porque viam a beleza da língua e a maneira como a gente brinca com a língua. O brasileiro tem isso muito forte. A língua é um playground [recreio].” O português “leva a língua muito a sério”, conclui, rindo.
“Nunca se fez um museu assim, voltado para uma língua”, diz a encenadora Bia Lessa, que comissariou a exposição de abertura do museu, em 2006, sobre Guimarães Rosa. “Abriu caminho para vários outros museus no Brasil”, como o Museu do Amanhã, inaugurado no fim-de-semana no Rio. “Era um museu de algo inusitado, que é a língua. É o primeiro que não tem um acervo material. Não tem artes plásticas, não tem escultura.”
Era um museu interativo, high-tech, multimédia que explorava a língua em todas as suas expressões, do quotidiano à poesia, e celebra a sua diversidade, do que o português tragou a outros idiomas aos muitos sotaques e falares que existem mundo fora. Tanto se via e ouvia Chico Buarque declamar como o rapper paulista Rappin’ Hood.
“É, de facto, uma estrutura que não tem paralelo, nem substituto, no espaço da língua portuguesa no mundo. É a única que presta uma atenção especial às expressões contemporâneas do português pelo mundo fora e às suas formulações mais desafiantes”, diz a ex-ministra portuguesa da Cultura Isabel Pires de Lima, que esteve presente na inauguração do museu, em Março de 2006.
“Estava sempre cheio de escolas, de excursões escolares”, lembra o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, que em 2013 assinou a curadoria de uma exposição sobre Rubem Braga. “A grande lição do Museu da Língua Portuguesa foi transformar a língua, a cultura em algo lúdico, que pudesse interessar e impressionar uma geração mais jovem, habituada aos media digitais”, diz. “Apesar de ter esse nome – Museu da Língua Portuguesa –, que podia assustar um pouco, quando o garoto chegava ali via que era quase um jogo.”
Nada contra, mesmo sendo de outra geração. “O negócio é você começar de alguma maneira a perceber que é gostosa a língua portuguesa.”
A perda maior é arquitetónica. O museu estava instalado num edifício do início do século XX acima da plataforma de comboios da Estação da Luz, terminal ferroviário por onde circulam milhares de pessoas diariamente. Tinha sido restaurado e adaptado para museu pelos arquitetos Paulo e Pedro Mendes da Rocha, pai e filho.
“O lado positivo é que, por ser um museu de base digital, ele é plenamente reconstituível”, lembra Marcello Dantas. Existem cópias de segurança dos conteúdos guardadas fora do museu. “É apenas uma questão de dinheiro.”
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, prometeu reconstruir o museu, com o apoio da iniciativa privada. E o ministro da Cultura português, João Soares, disse à Lusa que já entrou em contacto com a secretaria de Estado da Cultura do Brasil para apoiar na renovação do museu, que visitou há anos.
“Quando a gente pegou o prédio, em condições habitáveis, demorou cinco anos. Do jeito que está destruído pode demorar isso ou mais”, antecipa Marcello Dantas. com Sérgio Costa Andrade
Kathleen Gomes (no Rio de Janeiro), in Público | 22 de dezembro de 2015
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público