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Paula Rego já caçou na National Gallery e tinha uma toca na cave

Exposição na Casa das Histórias reúne cem obras feitas durante ou pouco depois de uma residência artística da pintora no museu londrino em 1990. Crivelli, Mantegna e Hogarth andam por lá.

Durante a sua residência de 18 meses na National Gallery de Londres, que começou em 1990, Paula Rego ficou uma ou duas vezes a desenhar até depois do encerramento. Noutros dias deixava o seu estúdio no piso inferior para percorrer as salas apinhadas de visitantes e as reservas desertas. Sempre à caça de imagens entre os pintores antigos: Carlo Crivelli, Antonello de Messina, Andrea Mantegna...

“É extraordinário quando se copia uma pintura, descobre-se o quanto é diferente daquilo que tínhamos pensado que era. E depois, passado algum tempo, volta a ser aquilo que era no início”, diz Paula Rego a propósito do tempo passado a trabalhar a partir da coleção do museu londrino, numa entrevista ao historiador de arte e comissário Marco Livingstone, profundo conhecedor da sua obra.

Duas das pinturas que fez durante este período em que foi artista associada deste museu britânico, assim como muitos desenhos exploratórios, estão a partir desta quinta-feira e até 24 de Abril expostos na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais. Fazem parte de um núcleo de 100 obras – pintura, desenho, gravura – oriundas de coleções públicas e privadas portuguesas e estrangeiras que evocam a iconografia com que a pintora se cruzou na National Gallery (NG) e noutros museus, como a Dulwich Picture Gallery, a partir da década de 1990.

Quem percorre hoje as salas da Casa das Histórias encontra muitas vezes a artista portuguesa radicada em Londres desde a década de 1970 em discurso direto, em frases retiradas de entrevistas e catálogos. Catarina Alfaro, comissária da exposição Caçadora Furtiva quis que assim fosse, para que a pintora “falasse” ao visitante, no seu jeito muito peculiar, tantas vezes desarmante. “Temos de encontrar a nossa própria entrada para as coisas…”, diz Paula Rego, descrevendo assim o seu trabalho na residência da NG e os trajetos frequentes entre o seu atelier e as galerias de exposições: “Assim posso trepar lá acima, apanhar as coisas e trazê-las comigo para a cave, onde posso comê-las. E o que trago aqui para baixo varia imenso, mas trago sempre alguma coisa para a minha toca. Aqui sou uma espécie de caçadora furtiva.”

Num mundo de homens
Paula Rego tem hoje 80 anos e continua a manter a sua rotina diária de trabalho. Chega ao atelier às 10h, pára para almoçar por volta das 14h e sai às 18h. Uma pintora com horário, ao contrário do estereótipo que atribui a artistas e escritores ritmos desregrados.  

É precisamente Paula Rego que a figura que aparece ao centro da composição de A Artista no seu Atelier (1993) evoca. É uma mulher de perfil, fumando cachimbo, numa pose bastante masculina. Esta pintura, uma das cerca de 30 obras da exposição oriundas de coleções inglesas, incluindo a da própria artista, nunca foi mostrada em Portugal, mas encerra temas e métodos que lhe são habituais.

Parte de Sonho de uma Noite de Verão, peça de William Shakespeare que cria um universo de deuses, fadas e elfos, combina fragmentos de pinturas (há uma mulher que parece saída d’As Meninas, de Velázquez, diz Catarina Alfaro), e reflete sobre o papel da mulher no mundo das artes, dominado por homens. “A postura desta mulher ao centro é muito provocadora e crítica. É como se Paula Rego mostrasse que, por vezes, as artistas têm de fingir ser homens para verem o seu talento reconhecido”, explica Alfaro, lembrando que é ela quem costuma dizer: “Quando estou a pintar sou um homem – ponho os pés bem assentes no chão e faço muita força.”

Foi também Paula Rego quem lhe confidenciou que, no canto inferior esquerdo do quadro, onde hoje se podem ver três couves, devia estar um homem, figura que a pintora abandonou porque não conseguiu pô-lo ajoelhado como inicialmente imaginara.

Olhar assombroso
Até aos anos 1990, a obra de Paula Rego tinha a arte popular por referência mas, a partir da residência da National Gallery, essa tradição passa a conviver com a pintura antiga e os seus mestres, assegura a comissária, também coordenadora da programação da Casa das Histórias.

Na coleção do museu londrino interessaram-lhe, como sempre, as mulheres, mesmo quando se apresentavam sob a forma de santas, que Paula Rego fez questão de humanizar na grande obra que resultou deste projecto e que se encontra hoje num restaurante do museu – o mural O Jardim de Crivelli – e nos estudos que a antecederam.

Philippe de Champaigne, Salvator Rosa e William Hogarth – a artista partilha com este último o gosto pelo trabalho de temas relacionados com a moral e os costumes, como a infidelidade e a perfídia – são alguns dos artistas que visita, em obras como O Sonho de José (1990), Bruxas nas suas Feitiçarias (1991) e After Hogarth (2000), representadas na exposição através de desenhos e gravuras. Sendo que as suas visitas, alerta a comissária, são sempre subversões, assim como os seus referentes literários são por regra uma oportunidade para recriar narrativas, chegando a reinventar-lhes o final, como acontece na série que se inspira no romance O Crime do Padre Amaro (1875), de Eça de Queirós, centrado na história de amor trágica entre um sacerdote e uma jovem mulher, presente na exposição em três pinturas. Paula Rego acrescenta-lhe um anjo protetor que é também capaz de vingar e que traz consigo os símbolos da Paixão, a espada e a esponja.

“As histórias tornam-se mais universais quando são transformadas em pinturas”, diz a artista, defendendo que não é preciso ter lido a obra de Eça para reconhecer nas imagens que cria algo de “opressivo, nocivo, egoísta e cruel, mas com muito amor”: “Não tem importância que não se conheça a história. Muitas das cenas que pintei não existem no livro. Claro que será enriquecedor ler um romance notável, mas na verdade isso não explicaria as pinturas.” Explicá-las, aliás, não é coisa que lhe interesse, garante Alfaro, embora seja “fascinante” ouvi-la falar de pintura, antiga ou não, porque Paula Rego tem “um olhar assombroso, vê pormenores que mais ninguém vê”. E tem a capacidade de tornar universais fragmentos de histórias que alguém viveu (e vice-versa).

É assim em O Tempo – Passado e Presente (1990), totalmente executada no atelier da pintora na cave da National Gallery. A obra parte daquilo a que Paula Rego chama uma “pintura mágica”, São Jerónimo na Sua Biblioteca, de Antonello de Messina (século XV), para chegar ao retrato de um dos seus amigos, o artista e crítico Keith Sutton, sentado com as suas memórias, umas saídas de quadros do museu, outras inventadas.

Sutton, explicará mais tarde a comissária, era marinheiro e é por isso que a artista lhe dá um barco nesta pintura que pertence ao Centro de Arte Moderna da Gulbenkian e em que estão representadas três gerações, com uma porta ao fundo aberta para a praia. “Esta obra mostra muito bem como Paula Rego se apropria dos mestres da pintura antiga sem nunca os copiar, sem nunca os ilustrar. Eles estão lá como referências, na composição espacial que evoca Messina ou nas pinturas junto à porta que nos lembram [Francisco de ] Zurbarán. Sem esquecer as suas próprias memórias.” Isto porque, sublinha a comissária, em Paula Rego as histórias que vêm de fora, saiam de uma pintura do Renascimento, de um poema de Blake Morrison ou de um romance de Charlotte Brontë, só fazem sentido quando se cruzam com as histórias pessoais.

 


por Lucinda Canelas, in Público | 17 de dezembro de 2015
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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