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Afonso de Albuquerque é o português mais conhecido no Sudeste Asiático depois de Cristiano Ronaldo

Afonso de Albuquerque morreu faz nesta terça-feira exatamente 500 anos e é recordado em Malaca, cidade que conquistou em 1511, pela sua visão estratégica.
Afonso de Albuquerque, que morreu faz esta terça-feira 500 anos, é recordado em Malaca (Malásia), cidade que conquistou em 1511, pela sua visão estratégica. “Tudo o que os descendentes de portugueses [de Malaca] sabem é que Afonso de Albuquerque era um grande homem”, diz Colin Goh, que é também membro do Clube da História e do Património Malaio.

A imagem que existe de Afonso de Albuquerque, provavelmente o português mais conhecido do Sudeste Asiático depois de Cristiano Ronaldo, é que “tinha uma mão forte aqui em Malaca”, mas não mostrava uma atitude tirânica. Enquanto muitos indonésios acreditam que os portugueses colonizaram o seu arquipélago, quando na verdade a presença lusa ali nunca assumiu contornos de colonização, na Malásia há livros escolares que justificam a tomada de Malaca como uma ação meramente religiosa, do catolicismo contra o islão, esquecendo os fins comerciais.

Para muitos habitantes de Malaca, Albuquerque é apenas o nome da rua principal do Portuguese Settlement, o bairro onde ainda hoje resiste uma comunidade de cerca de mil pessoas que se apresentam como os “portugueses de Malaca”. Mas, para Colin Goh, um malaio apaixonado pela história das conquistas na sua região e que tem sido convidado para dar palestras sobre a presença dos portugueses, Afonso de Albuquerque era muito mais que isso: “Era um homem bom” com uma estratégia eficaz.

Afonso de Albuquerque, que foi nomeado vice-rei e governador da Índia Portuguesa, desenhou uma política de expansão para o Oriente e foi o responsável pelas estratégias que permitiram consolidar o império luso na região, defende o investigador. Era conhecido por ser implacável com os traidores do reino, mesmo quando lhe ofereciam avultadas somas de dinheiro para os poupar, e temperamental, sendo-lhe inclusive atribuída por algumas fontes a ideia de tomar Meca, a cidade mais sagrada do islão.

A porta de Santiago que resta da antiga fortaleza portuguesa DR

Joseph Sta Maria, que faz parte da comunidade portuguesa de Malaca e que hoje é o representante das minorias junto daadministração de Malaca, realçou que “Albuquerque era uma pessoa muitíssimo honesta” e “nunca trairia” o rei de Portugal.

Os dois especialistas destacaram a estratégia de miscigenação iniciada por Afonso de Albuquerque para defender a posição portuguesa em Malaca, na altura um dos locais mais estratégicos do mundo devido ao lucrativo comércio das especiarias. “Foi ele que entendeu que Portugal não tinha mão-de-obra para um império. Logo depois da conquista de Malaca, ele começou a encorajar a miscigenação”, contou Colin Goh.

Os homens e mulheres portugueses que chegaram à região com o propósito de constituir famílias aumentaram a população de origem portuguesa na região e “em tempos de batalha todos os mestiços ou casados eram chamados a defender Malaca”, explicou Colin Goh. O especialista recordou ainda que esses mestiços acabaram por tornar-se pessoas influentes, porque “tinham a capacidade de comunicar com diferentes comunidades”.

O idioma kristang


Mapa com a planta da fortaleza de Malaca, cerca de 1600

Os portugueses perderam Malaca a favor dos holandeses em 1641, mas mesmo depois disso o idioma kristang (cristão-português) — que ainda hoje é falado por uma minoria dentro da comunidade portuguesa de Malaca — continuou a ser uma das línguas de negócios. Joseph Sta Maria concordou que, para além dos casamentos mistos, o que favoreceu a continuidade da presença portuguesa, mesmo contra a vontade holandesa, foi a cultura, presente não só na língua, mas também na religião.

Os descendentes de portugueses em Malaca, uma comunidade iniciada com a conquista da região por Afonso de Albuquerque em 1511, herdaram do conquistador do Oriente a lealdade a Portugal, um país que nunca conheceram. “Nós queremos ser portugueses”, justificou Christopher De Mello, um dos promotores da herança de Portugal naquele canto do mundo. E dá um exemplo quotidiano que é visível nas ruas de Malaca: aqueles que se afirmam descendentes de portugueses continuam a cumprimentar-se com dois beijos, uma saudação que não é vulgar na Malásia.

“Não queremos saber do país, se é rico ou pobre, não interessa”, diz, referindo-se a Portugal. “O mais importante é quem somos. Isso é a riqueza que temos em nós”, acrescenta. No bairro dos portugueses, o idioma está a perder espaço para o inglês, num país onde o malaio é a língua oficial, mas o orgulho em ser português é passado de geração em geração através da música e dos costumes.

Para Joseph Sta Maria, a lealdade a Portugal é uma herança de Afonso de Albuquerque, embora não tenha a ver com patriotismo, mas com uma ligação cultural. “Nós nunca morremos, nós somos portugueses. Amamos os portugueses, ainda que eles não tenham feito assim muito [por nós]. É a afinidade e o orgulho de nos chamarmos portugueses”, vincou, reconhecendo ainda que “Portugal tem os seus próprios problemas” e está “muito longe de Malaca”.

“Repare em quanto os portugueses fizeram por Timor-Leste: foram 450 anos de administração e quando eles devolveram Timor-Leste, o país estava em ruínas: logo, eu não espero que Portugal faça muito [pelos portugueses de Malaca]”, diz.

A visão que os portugueses de Malaca têm de Portugal é muito própria e, ainda que exista um desejo de um contacto maior com os portugueses de Portugal e o sonho de visitar terras lusas, há também um orgulho em manter a portugalidade específica de Malaca.

Um padre português?

Joseph Sta Maria, autor do livro Pessoas Proeminentes na Comunidade Portuguesa em Malaca, acredita que o seu povo nunca irá desaparecer, a menos que o Portuguese Settlement, o bairro onde residem, seja destruído. Também a religião católica os mantém unidos, segundo destacou, defendendo que para quem não é católico é difícil fazer parte da comunidade, porque tem de comemorar o Natal, o São Pedro ou o São João”.

O forte catolicismo leva Christopher De Mello a pedir a Portugal um padre português — “talvez reformado, para viver connosco no Portuguese Settlement e para nos ensinar” — porque há poucos presbíteros na Malásia, país de maioria muçulmana.

O padre Michael Mannayagam, de origem indiana, é um dos sacerdotes da região que se desdobram em celebrações numa cidade com “cerca de 20.000 católicos”, sobretudo de origem chinesa e indiana, dado que os portugueses não representam mais do que mil. O presbítero considera que a expansão do catolicismo através dos portugueses não foi muito notória na região, já na altura maioritariamente muçulmana, mas destaca a resistência dos católicos durante as perseguições holandesas. “Alguns fugiram da cidade. Dispersaram-se por aqui e ali. Mantinham-se clandestinos e onde houvesse um padre, eles teriam uma missa”, recordou.

Na visão de alguns malaios, disse Christopher De Mello, o povo português adora beber e, tendo dinheiro ou não, sabe divertir-se e “celebra um Natal muito bonito”, convidando toda a gente a participar e oferecendo comida e bebida nas suas casas. “Na verdade, os malaios admiram-nos e também têm inveja de nós, porque tudo o que fazemos em Malaca é diversão, é festa, é prazer, mas algumas coisas são demasiado sensíveis para nós falarmos aqui”, referiu.

Um museu


A Igreja de São Paulo JANEK SKARZYNSKI/AFP


Um museu preserva, desde há três anos, a memória portuguesa num canto de Malaca. Há três anos, Christopher De Mello, juntamente com Jerry Alcântara, decidiu pegar num museu antigo que tinha "apenas fotografias" e transformá-lo num espaço de exposição de memórias que hoje recebe pessoas de todo o mundo.

O Portuguese Settlement Heritage Museum (Museu da Herança do Povoado Português), como é conhecido localmente, fica precisamente no centro do Portuguese Settlement, situado a cerca de três quilómetros de centro de Malaca, que foi criado na década de 1930 para os descendentes de portugueses espalhados pela região.

Entre o espólio, com largas centenas de peças, há objetos e coleções pessoais, como biberões e fotografias, e artigos comprados ou "encontrados no mar" pelos pescadores, que podem ser "portugueses, chineses ou indianos", conta Christopher De Mello.

Após ter ficado desempregado, o engenheiro de manutenção, que agora trabalha em part-time, encontrou uma oportunidade para "melhorar o museu" fazendo uso dos seus variados talentos, como a carpintaria para montar expositores e a comunicação para contar as histórias da comunidade que não cabem no museu. É também ele o responsável pelo barco de madeira Flor de la Mar (Flor do Mar, em português), que se encontra no centro do museu para lembrar a famosa nau com o mesmo nome que naufragou em 1511 no estreito de Malaca, com um imenso tesouro, que nunca foi encontrado.

Afonso de Albuquerque também está representado, porque foi ele um dos "primeiros pais da aldeia". "É por causa dele que estamos aqui hoje", frisou Christopher, que se sente "incomodado" quando lhe dizem que se assemelha aos malaios. "Prefiro que digam que eu pareço mais português. Nós aqui nunca dizemos que somos malaios, dizemos que somos malaio-portugueses", sublinhou, explicando que, apesar do sangue português já se ter perdido há muito, ainda predominam os sobrenomes lusos na comunidade de cerca de mil habitantes, como Sousa ou Gomes.

No museu, encontram-se mobílias, louças, redes de pesca, fotografias, documentos históricos e até vinho produzido pelo próprio Christopher, uma bebida alcoólica feita de maçã que dizem fazer lembrar "o vinho do Porto". Aos trajes tradicionais lusos oferecidos por portugueses juntam-se trajes semelhantes desenhados e usados pelos grupos de música e de dança locais que disseminam o folclore português na Malásia e no exterior.

Além das três salas de exposição, há ainda um espaço que guarda dezenas de prémios conquistados por pessoas da comunidade em concursos de beleza ou de fatos de Pai Natal ou em torneios de futebol durante os santos populares. Entre os visitantes do museu, que nem sempre está aberto, há grupos de estudantes de todo o país e turistas estrangeiros, que vêm conhecer o Portuguese Settlement, localmente famoso pelo ambiente de festividade no Natal, no Carnaval e nos Santos Populares.

Os visitantes pagam dois ringgits malaios (0,42 cêntimos) de entrada, um valor insuficiente para sustentar o projecto, que precisa do apoio de voluntários.

O governo local já apresentou uma proposta para apoiar o museu, mas com a condição de assumir a administração do espaço e pagar um salário aos voluntários, algo que os promotores recusaram. "Eu não quero que no futuro a história malaia entre no Portuguese Settlement. A nossa história portuguesa seria abolida", justifica. Pedir apoios a Portugal também é visto com algumas dúvidas, pois essa eventual ajuda implicaria o envolvimento das autoridades malaias no museu, acrescentou.

Malaca, que em 2008 foi declarada Património Mundial pela UNESCO, é hoje uma cidade fortemente turística, retratando a história dos vários povos que por aqui passaram. Entre as grandes atrações figuram o Museu Marítimo, a Igreja de São Paulo e a Porta de Santiago, o que resta da fortaleza mandada construir por Afonso de Albuquerque.

 


por Andreia Nogueira (Lusa, Malaca), in Público | 15 de dezembro de 2015
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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