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Dias do Desassossego - Fernando Pessoa está em todas as esquinas de Lisboa
Os Dias do Desassossego começam hoje para unir a Fundação Saramago à Casa Fernando Pessoa.
A placa no número 44 do Largo de São Carlos assinala o local de nascimento de Fernando Pessoa, a 13 de junho de 1888. É aqui o ponto de encontro do roteiro "A Lisboa de Fernando Pessoa" que acontece no sábado, dia 21, às 10.00. Tem 13 paragens previstas, três horas de percurso a pé (e de elétrico) e é uma das propostas do programa "Dias do Desassossego", que começam hoje, dia em que José Saramago faria 93 anos, e terminam no dia 30 de novembro, dia em que passam 80 anos da morte de Fernando Pessoa. O programa une a Casa dos Bicos, sede da Fundação Saramago, à Casa Fernando Pessoa, em Campo de Ourique.
A cada paragem corresponde um poema. "Ó Terras de Portugal, Ó terras onde eu nasci, por muito que goste delas, inda gosto mais de ti." "É o primeiro que Pessoa escreveu, aos 7 anos, a propósito da sua mudança para a África do Sul, com a família." Cláudia Leal dá os dados biográficos. Ela e o irmão, Tiago, são a Miss Lisbon, criadores de roteiros para conhecer Lisboa a pé. "A Lisboa de Fernando Pessoa" foi buscar o nome a um livro homónimo de Marina Tavares Dias, e foi a sua inspiração.
Pessoa tinha 4 anos quando se mudou para outra casa, "mais modesta", após a morte do pai. Quando a mãe volta a casar-se, mudam-se para Durban. O Largo de São Carlos marcou-o. "O sino da minha aldeia é o da Igreja dos Mártires", escreveu. Foi aí que o batizaram a 21 de julho de 1888.
A viagem segue Rua Garrett abaixo, depois subindo a Calçada do Sacramento até ao Largo do Carmo, para chegar a uma das 16 casas em que viveu. Na descida é obrigatório passar pela Brasileira. "Toda a gente quer tirar uma fotografia com o Pessoa", diz Tiago Leal. E também faz parte do roteiro "O Ano da Morte de Ricardo Reis", que acontece a 28 de novembro, às 14.00, e que passa por todos os locais da história escrita por José Saramago.
Nunca lhe faltou trabalho
Na Baixa percorrem-se os locais de trabalho. Um deles, com vista para o Tejo, fica na Rua do Ouro, n.º 87, onde está a placa que assinala a passagem do ilustre funcionário, em 1918-1919, na firma de "comissões e consignações".
Rua Augusta acima, Cláudia Leal relembra que Pessoa "nunca teve dificuldade em encontrar trabalho. Sabia escrever e falava inglês. Trabalhou como secretário, como tradutor, como correspondente comercial". E chegamos à Rua da Assunção, n.º 42, um lugar mais do que um escritório. Foi aqui que conheceu Ofélia, o único amor que lhe é atribuído.
Ofélia e Abel
Mantiveram uma intensa troca de cartas nos dois momentos do romance: entre março e novembro de 1920; e quase dez anos depois, entre setembro de 1929 e janeiro de 1930. Foi sempre ele quem terminou o namoro.
A caminho da Tasca Abel, que teria um papel determinante no reatar do romance, fica um dos restaurantes que o escritor mais frequentou, Pessoa. O nome é coincidência. Fica na Rua dos Douradores, aquela a que o heterónimo Bernardo Soares dedica linhas no Livro: "Esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução."
A antiga tasca é agora um prédio abandonado com licença para obras. Restam a fachada e um "selo" de mármore dos vinhos Abel Pereira da Fonseca. A fotografia do escritor ao balcão a beber um copo de vinho é das mais emblemáticas de Pessoa. A legenda, não menos famosa, "flagrante delitro" foi escrita para Ofélia, a quem chamava "bebé fera" na carta escolhida para ler neste local. Diz-se que Pessoa morreu de cirrose, um mito que a sobrinha tem procurado contrariar. Tinha também o hábito de pôr os nervos em franja aos médicos: fumava 80 cigarros por dia.
Na Rua da Prata ficava a Ourivesaria Moutinho. Pessoa trabalhou nos seus escritórios, no 1.º andar, com vista para a Rua da Conceição. "Os investigadores dizem que pode ter sido aqui que escreveu o poema Tabacaria." No prédio em frente, hoje emparedado, ficava a Havaneza. A funcionar também como agência de publicidade, foi aqui que nasceu o slogan "Primeiro estranha-se, depois entranha-se", da Coca-Cola.
À mesa do Martinho da Arcada
A ourivesaria foi o local onde trabalhou mais tempo (1924 a 1933), quando já morava na casa da Coelho da Rocha, última paragem desta visita, depois de espreitar o Hospital São Luís dos Franceses, onde morreu em 1935 (faz parte do roteiro habitual, deverá sair no sábado, afim de abreviar o percurso). Deslocava-se no elétrico 28 e frequentava o Martinho da Arcada, no Terreiro do Paço, que mantém intacta a mesa habitual do poeta. Está em todos os guias e é obrigatório também quando se passeia pela cidade "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (as 40 inscrições possíveis estão feitas).
Pela mão de Saramago
Este passeio literário revive a história do livro de José Saramago, de 1984, o primeiro livro que Pilar del Río leu do escritor. O Cais das Colunas é o ponto de encontro, com as primeiras páginas do livro abertas (a obra começa no Cais de Alcântara, mas foi necessária a troca para poupar tempo). Delas sai o contexto do passeio: Ricardo Reis, que fora viver para o Brasil, segundo os escritos de Pessoa, regressa após a morte do escritor, em 1935. Passa-se nos nove meses seguintes, aqueles que, segundo Saramago, se demora a fazer o luto (o mesmo que se tarda em nascer). "Vamos lendo o trecho correspondente", explica Cláudia Leal.
No cais, Ricardo Reis entra num táxi e pede para ir para um hotel. "Perto do rio, só se for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não sei se conhece", recomenda o condutor. O hotel existia em 1935, mantém a função mas não o nome. Fica na Praça Duque da Terceira, Cais do Sodré.
As musas Lídia e Marcenda
A história leva-o à Rua Nova do Carvalho, que o protagonista vê da janela da cozinha do hotel. A mesma onde vê pela primeira vez Lídia e a jovem Marcenda, que está hospedada no hotel com o pai. Há 80 anos, a rua não era cor-de-rosa (mas vai receber programação de "Dias do Desassossego", mantém-se porém inscrito na pedra o anúncio à Clínica de Ojos, a que a personagem faz referência.
Ricardo Reis troca dinheiro na Rua do Comércio, virá a arranjar trabalho num edifício do Largo de Camões. Aquele em que se vê o autor de Os Lusíadas de costas, como vem descrito no texto. A Rua Áurea (ou do Ouro) leva Ricardo Reis até ao Rossio, onde a personagem come um bife no Martinho antes do início de um espetáculo. Marcenda Sampaio, por quem se apaixona, também lá está. "Vão encontrar-se frente a frente daqui a pouco."
Saramago fez uma pesquisa intensa para o livro, leu os jornais da época, sabe-se que foi um ano anormalmente chuvoso. Os detalhes são contados por Ricardo Viel, da Fundação Saramago, a propósito do ambiente "húmido" do livro. A viagem continua pelo Alto de Santo Catarina, onde Ricardo Reis aluga uma casa, passa pelo Adamastor e termina na Casa dos Bicos, como a de Pessoa termina na sua última casa. Em ambas, decorre "Dias do Desassossego".
in Diário de Notícias | 16 de novembro de 2015
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Diário de Notícias