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O melhor do Mundo à procura da normalidade
Mais do que a história do menino que se fez homem no campo de futebol, Ronaldo é a história do homem à procura da sua normalidade. Cristiano Ronaldo filho, Cristiano Ronaldo pai, Cristiano Ronaldo irmão, Cristiano Ronaldo amigo.
"Tenho tudo, não me falta nada, mas as pessoas estão sempre à espera que parta um prato para me acusarem, para me criticarem. É muito difícil.” É assim, em poucas palavras, que Cristiano Ronaldo define a fama que atingiu. Para onde quer que vá, o que quer faça, as atenções viram-se para ele. É facilmente julgado, tão elogiado como criticado. Ronaldo, o filme que no próximo dia 9 tem uma exibição única nas salas de cinema (depois haverá um DVD), quer mostrar-nos o homem que existe para lá do futebolista que todos os dias luta para ser o melhor do mundo. Um retrato pessoal que põe o jogador português a falar da sua vida como antes não havia falado. Da mágoa de ter tido um pai ausente, à alegria que o filho lhe trouxe. A mãe, Dolores, sempre presente e o empresário Jorge Mendes como uma figura paternal. Nem Messi fica de fora.
Na época em que Cristiano Ronaldo ganhou com o Real Madrid a Liga dos Campeões, o Mundial de Clubes, a Supertaça Europeia e a Taça do Rei; na época em que foi eleito melhor jogador da FIFA, da UEFA e da Liga Espanhola, da qual se sagrou melhor marcador, e ainda conquistou a Bota de Ouro; na época em que tudo acontecia, até o final do namoro de cinco anos com a modelo russa Irina Shayk, Cristiano Ronaldo andou, sem quase ninguém saber, com uma equipa de filmagem atrás. Foi só em Junho que o internacional português revelou no seu Facebook que um filme sobre a sua vida chegaria aos cinemas, numa altura em que a longa-metragem estava já praticamente terminada.
A ideia partiu dos estúdios da Universal, que juntou na produção deste projecto nomes conhecidos do cinema documental: o produtor Asif Kapadia (realizador dos aclamados Senna, sobre o piloto Ayrton Senna, e Amy, sobre a malograda cantora Amy Winehouse). A realização foi entregue ao britânico Anthony Wonke, que assina documentários como Fire in the Night, Crack House USA ou Syria: Children on the Frontline.
“Nunca fiz um filme sobre alguém muito famoso, sobre um futebolista. Mas o que faço é olhar para as coisas que me interessam, focando-me nas pessoas. Procuro as suas histórias, os seus dramas. E foi isso que fiz com o Ronaldo, ele é um jogador de futebol profissional mas a sua vida tem muito drama”, diz Wonke por telefone à Revista 2. “Ele tem um passado muito humilde, todos os problemas que o pai teve com o álcool, e depois o seu irmão também. Foi sozinho para Lisboa em criança e agora é uma das pessoas mais famosas do planeta. É uma vida um tanto ou quanto dramática. É disso que se trata”, explica, contando que a proposta da Universal passava por fazer um filme “tão grandioso como Senna, mas que tivesse uma abordagem diferente de um habitual documentário desportivo”.
Agora com Ronaldo prestes a estrear-se em todo o mundo, Anthony Wonke não tem dúvidas de que a missão foi cumprida. “Uma das razões pela qual aceitei fazer este filme foi porque achei que isto nunca tinha sido feito antes, não como isto, com alguém tão famoso.” Quando lhe perguntamos o porquê de fazer o filme agora, com Ronaldo com 30 anos, o britânico não hesita: “Isso é só mais uma razão para o fazer.” “O que eu acho que é muito entusiasmante aqui é que nunca se tem acesso a alguém tão famoso como o Ronaldo durante um período muito ocupado da sua carreira”, conta. “Geralmente, os filmes sobre estas grandes estrelas são feitos quando estas acabam as carreiras. É só quando acabam que se sentam a falar a falar com nostalgia do que aconteceu”, continua, defendendo que aí o que vemos é “uma entrevista e muito material de arquivo”.
Em Ronaldo, as imagens de arquivo são apenas uma pequena parte. Vemo-lo ainda miúdo numa ou outra brincadeira em família, a jogar futebol na Madeira e mais tarde no Sporting, em Lisboa, e no Manchester United, em Inglaterra, e pouco mais. O passado aqui existe para nos dar o contexto para o presente, para a vida de agora. E é isto que define o documentário. Anthony Wonke procura mostrar “as coisas inócuas da vida quotidiana”. Afinal, é a essas coisas que muito raramente se tem acesso.
Não é por acaso que o filme começa com o jogador a acordar e a tomar o pequeno-almoço com o filho de cinco anos, para de seguida o levar à escola. “Tentei concentrar-me nas coisas normais que fazem, longe de todo o estatuto de celebridade. É uma coisa tão normal, acordar, tomar o pequeno-almoço com o filho, levá-lo à escola. Toda a gente faz isto, mas por ser o Ronaldo de repente torna-se tudo muito atractivo”, conta o realizador, para quem foi “muito encantador” observar a relação do jogador com o seu filho. “Acho que ele faz questão de manter algumas rotinas muito normais, no fundo só quer ser um bom pai”, diz Wonke.
Um pai que Ronaldo não teve. Ao longo da carreira têm sido várias as vezes que o jogador lembra o seu pai, Dinis Aveiro, que morreu em 2005 com problemas no fígado, consequência de alcoolismo. Ronaldo dedica-lhe golos, conquistas mas o que ouvimos neste documentário é a grande mágoa que ainda guarda. O pai é mais um exemplo do que Ronaldo não quer ser do que outra coisa. “Quase todos os dias estava bêbedo e quando assim é não é fácil”, conta. “Não tenho realmente vergonha de dizer que não conheci o meu pai de verdade, de coração”, continua, lamentando a ausência de Dinis Aveiro no seu crescimento. “Sinto uma frustração porque queria um pai diferente, mais presente”, conta.
É por isso que na sua vida agitada faz questão de guardar tempo para Cristiano Ronaldo Júnior, que completou cinco anos em Junho. Se nos primeiros meses o jogador tentou manter a privacidade do filho, cuja identidade da mãe se desconhece, agora o pequeno é a companhia constante de Ronaldo. Na vida pública e privada. “Sempre tive o sonho de ter um filho para ser o meu sucessor. Gostava de ser pai jovem para o poder acompanhar”, diz às tantas no documentário, contando que o filho o tornou um homem “mais calmo, cauteloso”.
Sobre a mãe do rapaz, Ronaldo continua a não revelar nada. É uma conversa que terá com Cristiano quando este crescer. “Sempre achei, e acho, que ele me vai compreender”, afirma. “Há filhos que nunca conheceram os seus pais, nem pai nem mãe, ter pai já é muito bom”, remata assim o assunto. Nem Dolores, a mãe de Ronaldo, quer saber quem é a mãe do seu neto. “Não me interessa”, diz no filme, explicando querer apenas educar a criança como educou Ronaldo: “Foi isso que o meu filho me pediu.”
Dolores é, aliás, presença constante no documentário. Tal como é na vida do craque. Assim como o restante clã Aveiro e, claro, o seu agente desde 2002, Jorge Mendes, que hoje é muito mais do que um parceiro de trabalho. É em Jorge Mendes que Ronaldo tem uma figura paternal. “É como um filho, é um filho para mim”, diz no filme o empresário, que é também o padrinho do pequeno Cristiano. “Jorginho, já viste, começámos do nada”, diz Ronaldo em tom de brincadeira, depois de receber a sua terceira Bola de Ouro no início deste ano. Já o agente afirma vezes sem conta que “nada é impossível” — uma lição aprendida com Ronaldo.
“Esse foi um lado que me surpreendeu. Ele gosta muito de brincar, de passar tempo com a família”, conta o realizador. “Uma das coisas que Ronaldo tem muito presente é que sem a família ele não seria quem é. Achei curioso o quanto ele depende da família, a estabilidade que lhe dão ajuda-o a viver com a pressão do quotidiano”, diz, com a certeza de que a família faz com que Ronaldo “mantenha os pés no chão”. “Dá-lhe alguma normalidade”, acrescenta o realizador, garantindo que o jogador não apresentou quaisquer restrições para a realização do documentário que o acompanhou durante 14 meses.
“Desde o início que Ronaldo se mostrou muito receptivo ao que dizíamos. Nunca aconteceu ele dizer que não. Nunca sentimos que existissem reservas mas ao mesmo tempo eu também não estava lá em casa todos os dias”, conta Anthony Wonke, explicando que foi preciso que tanto Ronaldo como a sua família se habituassem ao rodopio das câmaras nas suas vidas. “Foi preciso trabalhar nisso, fazer visitas, estar nos treinos. Eles sabiam o que estávamos a tentar fazer e respeitavam. Foram muito amáveis e incrivelmente acolhedores”, lembra.
Quando em Setembro o trailer foi divulgado, depressa se multiplicaram as críticas de que esta era mais uma forma de vender a marca “Ronaldo”. Mas o realizador não aceita tais afirmações. “É impossível fazer um filme sobre Ronaldo sem que digam isso porque ele é alguém que é patrocinado por imensa gente. Eu diria que isto é mais um documentário para fugir ao que de comercial há nele do que qualquer outra coisa”, diz Wonke, defendendo que o jogador não aparece em nenhuma sessão fotográfica ou algo do género propositadamente. “Estava interessado noutras coisas”, conta.
Uma das surpresas do filme talvez seja quando o argentino Lionel Messi aparece no documentário. O trailer já tinha intrigado os fãs. Há anos que a rivalidade entre os dois jogadores é conhecida, mas as imagens podem surpreender. Não há grandes conversas, é verdade, mas também não há inimizade. Há até um momento, que já havia sido revelado, nos bastidores da entrega da Bola de Ouro este ano em que os dois jogadores se cruzam e Ronaldo não perde tempo em apontar o jogador ao filho que, ao que parece, é fã do argentino. “A rivalidade no sentido da palavra foi formada pela imprensa”, afirma o português, contando que os dois se costumam falar normalmente.
“Há esta ideia de que eles não gostam um do outro, quando na verdade não é necessariamente o caso”, explica o realizador. “A impressão que tive, e falei com o Ronaldo sobre isso, é que ele sabe que não seria tão bom sem o Messi e vice-versa. Eles precisam um do outro.”
E é exactamente isso que Ronaldo diz no filme: não olha para Messi como rival mas para alguém que o torna melhor jogador. “Estamos sempre a partir pedra para ver quem é o melhor.”
“Provavelmente amadureceram com o tempo. Não tive de forma alguma a impressão de que ele sente alguma coisa pelo Messi que não respeito”, acrescenta o realizador, que deixou de fora do filme a vida amorosa de Ronaldo. Quando lhe perguntamos porquê, Wonke dá primeiro uma gargalhada, para depois contar que Irina chegou a fazer parte do documentário. “Mas durante esse tempo eles acabaram e no final tivemos de tomar decisões e achámos que não fazia sentido incluir. Não é possível ter tudo”, explica. “Tomamos decisões em função do que achamos que é melhor para o filme.”
por Cláudia Lima Carvalho, in Público | 3 de novembro de 2015
Fotografias: Cortesia da Produção
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público