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A "verdade emocional" de Madama Butterfly abre temporada lírica no São Carlos

Fotografias: Daniel Rocha

Maxine Braham, a encenadora desta produção da famosa ópera de Giacomo Puccini, esta terça-feira no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, às 21h, falou-nos do génio musical do compositor italiano e da intemporalidade desta história dos desencontros entre dois amantes e duas civilizações.

Já não estamos a falar da densidade emocional de Madama Butterfly, de Giacomo Puccini (1858-1924), a discutir o encontro entre dois mundos, o japonês e o americano, que se olham com estranheza ali encenados ou o “libreto simplesmente deslumbrante” escrito por Luigi Illica e Giuseppe Giacosa.

Maxine Braham, a encenadora da produção que inaugura esta terça-feira, às 20h, a temporada lírica do Teatro Nacional de São Carlos (sete apresentações até 1 de Novembro), sentada numa esplanada no largo homónimo da casa fundada em 1793, observa o edifício a que regressou agora pela quarta vez e declara: “[A ópera] é um veículo para o coração humano. Vamos à sala para sermos acordados, para despertar partes de nós que estavam adormecidas. É profundamente importante para a psique humana perdermo-nos enquanto, ao mesmo tempo, nos encontramos. É profundamente importante para a saúde psicológica de uma cultura ter o teatro. E a ópera tem um sentido de teatro intenso, total. Não é só a palavra, é a música, o canto, os movimentos, o design, as luzes. É um formato impressionante e engloba todas as artes”.

Horas depois, testemunhámo-lo no ensaio a que o Público assistiu desta ópera que conta a história do romance entre uma jovem gueixa, Cio-Cio San, a Madama Butterfly, e Benjamin Franklin Pinkerton, o oficial da marinha que a desposa consciente que a abandonará em Nagasáqui para casar com uma “verdadeira mulher americana” – e Butterfly não sabe e recusar-se-á a acreditar que assim seja.

No palco do São Carlos decorre o ensaio. Em palco, Madama Butterfly (a soprana sul coreana Hye-Youn Lee) e o homem causa da sua esperança no amor e do seu desespero insuportável, o americano Pinkerton que a desposará e a abandonará de seguida (o tenor espanhol Antonio Gandía).

Eles e a casa no topo de uma colina de Nagasáqui, cenário minimalista, elegante e moldável, e o porto sugerido lá em baixo enquanto vemos as montanhas em tela atrás dela.

O coro (o do São Carlos), corpo coletivo que, na cena do casamento, olhamos atentamente até individualizar os rostos e as vozes que o compõem. A contínua tentativa de ser ponte para diálogo e razoabilidade por parte de Sharpless, o cônsul americano (Luís Rodrigues), a dança feliz de Butterfly e da sua fiel Suzuki (Cátia Moreso), no segundo dos três atos que compõem a ópera, lançando pétalas de rosa por toda a casa.

Isso e o drama que se desenrolará, inevitavelmente, no final, com a orquestra a acentuar toda a tensão da cena, essa mesma orquestra, dirigida pelo italiano Domenico Longo, a atravessar dois mundos com mestria, entre os motivos americanos que acompanham Pinkerton (o hino americano, Star Spangled Banner é presença recorrente) e as melodias japonesas que Puccini, conta-se, terá recolhido no início do século XX junto da esposa do embaixador japonês em Roma.

“Penso que Puccini escolheu esta história [criada a partir de um conto de John Luther Long, Madame Butterfly, e no romance Madame Chrysanthème, de Pierre Loti], para além de ser uma história fabulosa, por ser um veículo que nos permite uma série de experiências existenciais”, aponta Maxine Braham. “A esperança que muitos de nós tiveram, ou têm, em algum momento da sua vida, de que o amor romântico pode prevalecer uma vida inteira. E a destruição desse sonho, numa experiência de abandono e de traição a um nível muito profundo”.

A antiga bailarina, que enquanto encenadora e coreógrafa e diretora artística, juntou o seu nome a produções de Carmen, Sonho de uma noite de Verão, Billy Budd ou Don Juan, para além, claro, da colaboração na produção original, assinada por Tim Albery, desta Madama Butterfly que hoje chega ao São Carlos, procurou, no trabalho desenvolvido com coro, solistas ou orquestra, “chegar à verdade emocional desta obra”. É isso que permite a um clássico absoluto do repertório operático, representado centenas de vezes e visto e ouvido por milhões de pessoas, manter viva a sua capacidade de atingir o espectador como se acompanhasse a história pela primeira vez.

“Adoro revisitar obras, porque permite acrescentar novas camadas. É uma lasanha fabulosa que se torna cada vez mais rica”. Elogiando o libreto, “tem naturalidade, tem verdade e é conciso”, afirma que a forma correta de abordar uma obra desta dimensão artística e icónica passa pelo óbvio: “Temos que nos dirigir à música e escavá-la, ouvindo todas as camadas e tentando perceber o que sentia e o que queria Puccini quando a compôs. Isso irá depois ligar-se àquilo que é a nossa vida e aquilo que somos nesse momento”.

Nunca será igual, porque nós mesmos não somos iguais enquanto a vida avança, como não o são os corpos e vozes que dão vida as personagens. Certas coisas, porém, não mudam. “Na cena da carta, a orquestração de Puccini dá-nos, em curtos compassos entre as frases curtas trocadas, os pensamentos dos cantores em forma de música, de forma a poderem absorvê-los, identificar a transformação emocional operada e deixar que isso transforme a interpretação”, explica Maxine Graham. “Dispor deste tipo de detalhe na composição e encorajar os cantores a usarem-no, a perceberem o que Puccini ouviu e porque compôs assim, é absolutamente brilhante”, considera.

Para além de atingir aquilo que definiu como a “verdade emocional” desta ópera, foi fundamental para a encenadora trabalhar a “fisicalidade” dos cantores. Madama Butterfly é uma trágica história de amor não correspondido que se desenrola sob o pano de fundo de um encontro de civilizações, a americana e a japonesa, separadas por um mundo de diferenças. E isso, diz Maxine Braham, “precisa de ser sentido e expresso visualmente”: “O mundo japonês, com o seu lado minimalista e delicado; Pinkerton e o mundo americano, com a sua arrogância cultural e a cometer todas as gaffes imagináveis, e Sharpless, que consegue ver ambos os mundos e que tenta desesperadamente moderar o comportamento daquele elefante numa loja de porcelana”.

Madama Butterfly inaugura no São Carlos a temporada lírica 2015/2016 planeada pelo programador convidado Patrick Dickie em colaboração estreita com Joana Carneiro, maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa, Giovanni Andreoli, maestro titular do coro e João Paulo Santos, diretor musical de cena e de estudos musicais do teatro.

Estreada no Scala de Milão numa mítica noite de Fevereiro de 1904, “a ópera preferida de Puccini”, como nos diz Maxine Braham, ou “Puccini imerso em si mesmo”, como disse a Maxine o diretor musical Domenico Longo, chegaria a Portugal, ao São Carlos, precisamente, quatro anos depois.

Nessa altura, já o grande compositor italiano, depois da estreia desastrosa violentamente assobiada e pateada, procedera aos ajustamentos que fizeram dela o estrondoso e contínuo sucesso que mantém até aos dias de hoje (está, juntamente com a Tosca e La Bohéme, também de Puccini, na lista das 10 óperas mais apresentadas mundo fora).

A ária Un bel di, vedremo continuará a ser “extraordinária, provavelmente a mais famosa ária de soprano do repertório”. Maxine continuará a emocionar-se com a “longa espera” que encerra o segundo ato e a ouvir com atenção, embevecida, um “curto fragmento de clarinete assobiado entre aquele rolo compressor orquestral” que marca parte da sequência da carta. O impacto daquela música, na casa no topo do monte em Nagasaki onde se desenrola esta “tragédia japonesa em três atos”, manter-se-á ao longo dos tempos. E continuará a ser um pouco diferente do que foi antes. Mudamos e ela muda connosco.

“Puccini era um génio e, num trabalho de tamanha profundidade [como é Madama Butterfly], sei que o revisitarei daqui a dez anos e continuarei a encontrar novas coisas. Seria diferente se fosse mais modesta na sua intenção, se não contivesse tanto de tão universal. Não é o caso. Reencontrá-la resulta sempre numa colheita riquíssima”.

 


por Mário Lopes, in Público | 20 de outubro de 2015
Notícia no âmbito da parceria Centro Nacional de Cultura | Jornal Público

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